Três décadas atrás, a Câmara de Santa Cruz do Sul vivia as horas mais nervosas de sua história. Em 21 de dezembro de 1990, quando o Legislativo sequer possuía sede própria e os vereadores se reuniam no segundo piso do Palacinho, um projeto de lei encaminhado pela Prefeitura foi o gatilho de uma mobilização sem precedentes e até hoje não superada, com direito a vereadores encurralados por manifestantes no plenário e tendo de deixar o prédio em meio a um “corredor polonês”.
O projeto tinha poucas linhas, mas representava uma revolução para a economia local. “É livre, no Município de Santa Cruz do Sul, o horário de funcionamento dos estabelecimentos comerciais de qualquer natureza”, dizia o primeiro artigo do texto, que se transformaria na histórica lei 2.341, conhecida como Lei do Livre Horário do Comércio. Até então, vigorava uma norma de 1965 do Código de Posturas que permitia o funcionamento das lojas somente até as 18 horas no inverno e até 19h30 no verão, enquanto os supermercados podiam abrir até as 19h30, exceto em datas especiais, e eram proibidos de abrir aos domingos.
Já o segundo artigo estabelecia que a nova regra passaria a valer tão logo a lei fosse sancionada: “Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.” A alteração na legislação santa-cruzense acompanhava um movimento que ocorria em vários municípios naqueles dias e costumava colocar entidades empresariais e representações de trabalhadores do comércio em forte oposição. O resultado foi um grande e ruidoso ato no dia da votação para pressionar a maioria dos vereadores disposta a apoiar a medida – que, no entanto, não conseguiu evitar a aprovação com folga.
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Funcionário da Câmara há quase 40 anos, Sérgio Böhm, então secretário executivo da Casa, observa que, em um tempo em que redes sociais não existiam e as informações circulavam apenas por rádio e jornal, manifestações desse tamanho não eram comuns no Legislativo local. “Aconteciam reuniões quentes, mas nunca houve uma participação popular tão intensa quanto nesse evento. No sentido de pressão, foi, com certeza, a mais tensa que eu vi”, recorda.
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Policiais à paisana e gritos de ‘traidores’
A votação aconteceu em sessão extraordinária em uma noite de sexta-feira, às vésperas do Natal e apenas quatro dias após o projeto ter sido remetido à Câmara pelo prefeito Arno Frantz. Apesar do pouco tempo, os líderes dos comerciários conseguiram mobilizar um grande número de pessoas junto ao Palacinho, como representantes da federação sindical de Porto Alegre e enviados de outras regiões do Estado, que costumavam apoiar os movimentos nos municípios.
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Embora outros protestos feitos nos anos seguintes tenham sido maiores em número de participantes, a manifestação daquela noite se agigantava diante da estrutura modesta de que a Câmara dispunha à época. O salão onde funcionava o plenário era acanhado e as 30 poltronas destinadas ao público ficavam muito próximas aos 21 vereadores – que, como ocorre até hoje, ficavam dispostos em um semicírculo. Os manifestantes não só lotaram as galerias como ocuparam as laterais, logo atrás dos vereadores. “O bafo era na nuca mesmo”, lembra a ex-vereadora Sidônia Goerck. Outra parte do grupo tomou as escadarias, enquanto alguns permaneceram na Praça da Bandeira ao longo das cerca de duas horas de reunião. O clima era hostil: o presidente Edmar Hermany conta que, quando subia em direção ao plenário, uma manifestante se aproximou e cuspiu em sua cara. “Não sei como não reagi”, disse.
Horas antes da sessão, os vereadores já tinham informações de que o protesto aconteceria, tanto que alguns resistiam em comparecer, por receio quanto à segurança. Isso levou Hermany a acionar a Brigada Militar. Conforme ele, embora alguns parlamentares não soubessem, entre os manifestantes havia policiais à paisana. Outros ficaram em compasso de espera em salas próximas e entrariam em ação caso a situação saísse do controle.
Os debates acalorados na tribuna eram acompanhados por vaias constantes e xingamentos contra os vereadores, acusados aos gritos de “pelegos”, “reacionários” e “traidores”. “A maioria dos vereadores não estava acostumado àquilo. Tinha um manifestante que dizia para mim: ‘o Brizola vai tomar conhecimento disso’”, recorda Nilton Garibaldi, que na ocasião era filiado ao PDT. Alguns parlamentares relataram ter ouvido palavras mais graves, incluindo ameaças.
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Apesar da pressão ensurdecedora, os trabalhos avançaram e o projeto foi aprovado por 16 votos a 4 – na condição de presidente, Hermany só votava em situações de empate. A proclamação do resultado insuflou ainda mais os manifestantes, que bloqueavam o único acesso ao plenário. Encurralados, os vereadores se refugiaram na sala da secretaria. “Chamei o (também vereador) Cláudio Grehs e disse: ‘Vamos puxar a frente’. Aí abrimos um corredor polonês para os vereadores passarem e descerem as escadas”, conta Garibaldi. A saída dos parlamentares se deu sob sonoras vaias. Conforme outro ex-vereador, Benno Kist, embora “inevitáveis”, as reações “estavam por um fio de passarem dos limites toleráveis”. “Foi uma das reuniões mais tensas de que participei em 16 anos de mandato”, afirma.
Nos dias seguintes, cartazes fixados em postes de luz pela cidade exibiam os rostos e nomes dos vereadores que votaram a favor. “Foi muito traumatizante. Saí atordoada daquela reunião”, conclui Sidônia.
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Articulação começou um ano antes
Um dos principais articuladores da lei foi Hildo Ney Caspary, que cumpria o segundo mandato na Câmara naquele início dos anos 1990. O movimento pela retirada das restrições ao horário do comércio havia começado cerca de um ano antes. Hildo Ney, com apoio de outros vereadores, como Nilton Garibaldi, havia tentado entrar com o projeto na Câmara, mas teve de recuar porque a iniciativa seria inconstitucional. Assim, iniciou a negociação para que Arno apresentasse a proposta.
Segundo Hildo Ney, a movimentação pró-livre horário foi iniciada pelos proprietários da antiga Padaria Disneylândia. Ao conceber o projeto de transformar o negócio em supermercado, eles se depararam com a limitação de funcionamento – tanto que os seu funcionários estiveram entre os que apoiaram a lei. Por outro lado, o parlamentar reconhece que parte dos lojistas era contrária à medida, receosos de que isso abrisse caminho para a vinda de redes de fora ao município.
A ideia com a alteração legal, conforme Hildo Ney, era atender à demanda sobre o comércio local, que crescia na medida em que Santa Cruz se consolidava como um polo regional. “É uma lei que acompanhava o crescimento de Santa Cruz. Os moradores de Vera Cruz queriam vir comprar aqui, mas não conseguiam. E mesmo os moradores daqui, muitas vezes, não conseguiam sair do trabalho a tempo de ir comprar”, observa. Na tentativa de afastar a ideia de que a norma poderia representar a extinção dos limites de jornada dos trabalhadores do setor, foi incluído no artigo 1º que a CLT deveria ser preservada.
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A pressão sobre os vereadores, porém, foi enorme. De acordo com Sidônia Goerck, o fato de ter sido comerciária pesou muito. “Eles olhavam para mim e diziam: ‘Tu, Sidônia, votando contra os comerciários’. Mas eu pensava que era uma oportunidade para o progresso”, comentou.
Conforme a ata da sessão, além deles, votaram a favor Ademir Müller, Baldur Lange, Benno Kist, Carlos Haas, Cláudio Grehs, Coraldino Silveira, Donato Glesse, Erni Wilges, José Paulo Rauber, Mário Rabuske, Nelsi Müller, Nilton Garibaldi, Roque Dick e Vergílio Peiter.
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“Me chamavam “Me chamavam de ‘colador de fechadura’”
Presidente do Sindicato dos Comerciários desde 1987, Afonso Schwengber teve participação dupla no episódio. De um lado, encabeçou a mobilização de funcionários de lojas e supermercados para pressionar os vereadores contra a aprovação. De outro, na condição de vereador suplente, acabou por participar da votação, ocupando a cadeira de Sérgio Moraes, que se licenciou na ocasião. Conforme Schwengber, a iniciativa partiu do próprio Sérgio. Mais de 25 anos depois, os dois se enfrentariam na eleição para a Prefeitura em 2016.
Para o sindicalista, a votação foi “um golpe” arquitetado pelo governo e por sua base de apoio. “Sequer fomos comunicados quando o projeto foi para a Câmara em regime de urgência. Ficamos sabendo pela imprensa. As sessões sempre começavam às 19 horas e aquela foi às 18 horas. Por conta disso, muitos comerciários não conseguiram ir”, critica.
Passadas três décadas, Schwengber diz que a lei, que chama de “lei da escravidão”, atendeu ao interesse de grandes redes de varejo. Inclusive, ele atribui a isso o desaparecimento de marcas locais fortes do passado. “Tínhamos empresas poderosas na cidade, como Zimmer Goettert, Knak, Keller Niedersberg, Waechter, Gruendling Irmãos, Casa Fuelber, que hoje não existem mais. Esse movimento fez mal para a nossa economia”, defende.
Schwengber nega que os vereadores tenham sido ameaçados pelos manifestantes, mas diz ter sido alvo de “perseguição” e “difamação” por seu posicionamento. “Me chamavam de ‘colador de fechadura’”, afirma, por conta dos casos em que lojas amanheceram com as fechaduras coladas, impedindo a entrada dos proprietários e funcionários. Embora tenha sido acusado, Schwengber garante que jamais participou desses atos. No ano passado, a batalha de 1990 foi revisitada quando a rede Havan impôs a liberação para abrir aos domingos como condição para instalar uma loja em Santa Cruz.
Além dele, votaram contra Doríbio Grunevald, Eloy Hirsch e André Beck, que à época tinha 24 anos. Hoje, Beck diz não se arrepender da escolha e considera que o debate “continua atual”. “A Havan veio com a promessa de gerar 150 empregos e gerou dois terços disso. Em países desenvolvidos, estão adotando jornadas diárias reduzidas. No Brasil, a mentalidade é de que as pessoas têm que trabalhar muito e serem privadas de lazer, de feriados”, comenta.
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“Forças estranhas”
A lei municipal 2.341 foi sancionada por Arno Frantz no fim da tarde do dia 26 de dezembro, no Salão Nobre do Palacinho. O primeiro impacto se deu sobre os supermercados, com o início da operação aos domingos. Até hoje, o Sindicato dos Comerciários defende a revogação da norma.
Antes de assinar a lei, Arno declarou à Gazeta do Sul que o tumulto na Câmara havia sido uma “preparação política” e pediu à comunidade que não se deixasse levar por “forças estranhas”. “Foi uma força que estava querendo se organizar contra a administração municipal e contra os vereadores que estavam de acordo com a mesma”, disse.
Apesar da repercussão que teve à época sobre a economia, hoje a lei não tem mais efeito prático. A Medida Provisória da Liberdade Econômica, sancionada no ano passado pelo presidente Jair Bolsonaro, garante que qualquer atividade empresarial tem liberdade para definir o horário de funcionamento.
Outras sessões históricas
2009 – Política Municipal de Saneamento
Em meados de 2009, o projeto de lei que instituiu as diretrizes para a Política Municipal de Saneamento causou imensa polêmica. Ele permitia que os serviços de abastecimento de água e tratamento de esgoto fossem geridos pela iniciativa privada, por meio de concessão pública. Grandes grupos de manifestantes ligados a entidades como o Sindiágua – que representa os servidores da Corsan – passaram a ocupar a Câmara para pressionar os vereadores contra a proposta. A votação só conseguiu ser concluída em 20 de julho daquele ano, após duas tentativas que tiveram de ser interrompidas sob alegação de falta de segurança. Do plenário, vereadores relataram ter ouvido xingamentos e até recebido moedas nas cabeças, lançadas das galerias. Para que a votação pudesse acontecer, a Brigada Militar chegou a ser chamada. A Câmara de Santa Cruz do Sul ficava à época na Rua Júlio de Castilhos, no prédio do antigo Cine Apolo.
2018 – Lei dos Vales
No dia 18 de julho de 2018, quando a Câmara já funcionava no endereço atual, os vereadores aprovaram a lei que retirou o direito dos servidores municipais a receberem auxílio-alimentação quando estão em férias e sempre que faltam ao serviço, mesmo com atestado médico. Com mais de 400 servidores nas galerias, a sessão teve direito a policiais militares dentro do plenário, vereadores xingados e bolinhas de papel atiradas contra as bancadas.
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