Muita luz é como muita sombra: não deixa ver. É comum associarmos falta de visão com escuridão e trevas, mas a luminosidade excessiva tem riscos. Olhar diretamente para o sol pode causar cegueira, como se sabe. É justamente uma inexplicável “treva branca” que atinge os personagens de Ensaio sobre a cegueira, romance do português José Saramago. A apocalíptica perda de visão coletiva descrita no livro não mergulha o mundo na escuridão, mas em um “branco absoluto” que apaga tudo ao redor.
Pergunto-me o que Saramago queria dizer. Talvez ele alertasse para um fenômeno que hoje conhecemos bem: a cegueira mental que vem disfarçada de “iluminação”. A rigidez de quem julga ter encontrado a verdade absoluta, de quem trata as próprias opiniões não como algo provisório ou sujeito a mudanças, mas como artigos de fé, fixos e imutáveis feito pedras. Nesse sentido, o pior cego é o que está convicto de que vê. Sua única preocupação é convencer os que ainda não alcançaram o mesmo nível de entendimento.
Mas não compreendemos, às vezes, nossas próprias atitudes, o que dizer do resto, então. “Eu não queria ter feito aquilo, mas…” Mas não há nada para dizer. Lembro de Rainer Maria Rilke, nas Cartas a um jovem poeta. “Se pensamos a existência do indivíduo como um cômodo de dimensões maiores ou menores, revela-se que a maioria de nós só chega a conhecer um canto de seu quarto, um local perto da janela, uma faixa na qual se anda para lá e para cá”, escreve. É pouco para quem pretende ter razão sobre tudo.
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E de certeza em certeza, eis que estamos em 2022, discutindo sobre a conveniência ou não de criar um partido nazista no Brasil. Nazistas se notabilizaram por matar judeus, ciganos, portadores de deficiência, homossexuais e adversários políticos de todo tipo, mas, como se nada tivesse acontecido, caímos nessa discussão surreal. As reações foram indignadas, mas como chegamos a tanto?
A liberdade de expressão é um valor de brilho intenso, solar, mas é preciso ter cuidado para não ficar cego. Há limites, pontos de referência que não há como esquecer ou ultrapassar. Quando esquecemos, flertamos e incentivamos o crime e a barbárie. Cheios de convicção.
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