A partir de Fortaleza, capital do Ceará, sua terra natal, uma romancista olha a cena cultural brasileira com amplo interesse, e a ela lega uma produção artística que enriquece (e muito) a literatura. Aos 73 anos, a escritora Ana Maria Nóbrega Miranda, ou Ana Miranda, como assina, traz na bagagem obras que granjearam elogios da crítica e dos leitores em geral (em paralelo a sua escrita, também protagoniza carreira como atriz). Em destaque está o romance de fundo histórico Boca do Inferno, ambientado na Salvador dos tempos de Gregório de Matos (1636-1696), que tinha como alcunha o título do livro, e de padre Antônio Vieira (1608-1697).
Lançada em 1989, essa sua primeira narrativa longa, publicada pela Companhia das Letras e premiada com o Jabuti, em 1990, projetou a autora na geração que se estabeleceu na reta final do século 20. Nos anos seguintes, sua obra foi sendo acrescida de mais de três dezenas de títulos, em diferentes gêneros, com livros voltados a público adulto e a crianças.
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Em 2014, ocupou-se de seu conterrâneo José de Alencar (1829-1877), em Semíramis, e novamente de Gregório de Matos, na biografia Musa Praguejadora. Já em 2017 tematizou Xica da Silva, a escrava mineira que, alforriada, fez história no século 18.
Sua produção tem tido continuidade em anos recentes. Em 2023, lançou Bionírica: uma biografia sonhada, ilustrado e bilíngue, em português e inglês, com tradução de Eneide Lima; e o volume Poemas adolescentes, ambos pela Armazém de Cultura, de Fortaleza. Em 2024, pela mesma editora, apresentou Crônicas do absurdo.
O Ceará ostenta conjunto literário do qual não é possível desviar-se em realidade de Brasil. E que, inclusive, “inventou” a imagem típica do gaúcho, tarefa que coube ao escritor José de Alencar (1829-1877), em romance de sua fase regionalista, publicado em 1870. Ao longo dos séculos 19 e 20, nomes como os do também regionalista Franklin Távora (1842-1888) ou da romancista Rachel de Queiroz, expoente da Geração de 1930, firmaram-se como porta-vozes desse Estado do extremo nordeste do País.
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De Rachel, a escritora Ana Miranda foi muito próxima, como conta em entrevista à Gazeta do Sul. Agora, Ana é quem faz o elo entre a geração do século 20 e a que pede passagem nessas primeiras décadas do século 21. Sobre sua caminhada, ela concedeu entrevista exclusiva, em trocas de mensagens por e-mail e por WhatsApp.
Entrevista – Ana Miranda, escritora
- Gazeta – A obra da senhora tem como característica o olhar voltado a autores brasileiros, como Gregório de Matos, Augusto dos Anjos, Gonçalves Dias e o seu conterrâneo José de Alencar, entre outros. Em que momento essa estratégia, por assim dizer, de tematizar escritores apresentou-se em seu trabalho? A literatura é um monumento da humanidade, e tudo vem passando por gerações. Você pensa que escolheu, mas foi escolhido, como naquela corrida de tochas na Grécia antiga. Você recebe a tocha e corre até passar adiante. O que determina nossos temas, não sabemos exatamente, mas são resultantes de nossa vida, história, época, nosso país e língua, aptidões, leituras, nossa personalidade e tantos outros fatores. A minha personalidade altruísta determinou o fato de eu escrever sobre o outro, e não sobre mim mesma. Como dizia o Guimarães Rosa, não escrevo sobre mim mesma. Tenho gosto por aprender, e aprendemos com o outro.
- Boca do Inferno teve ampla repercussão. O que levou a seu interesse e a seu esforço de pesquisa sobre Gregório de Matos naquele momento, uma vez que foi lançado em 1989, obra que, aliás, foi agraciada com o Jabuti? Ele chegou em minha vida por um sonho passado numa época antiga, eu via pelas roupas, sonhei que eu estava procurando alguém e subia por uma torre, lá encontrava uma mulher muito velha, cega como a minha avó, de tranças brancas, e ela me contava sua vida, dizia ter sido amante do poeta Gregório de Matos. Que sonho misterioso… De onde veio? Anotei o sonho, sempre anotei meus sonhos em cadernos. Com essa lembrança, fui procurar as poesias de Gregório de Matos, encontrei uma edição raríssima, com sete volumes organizados por James Amado. As palavras e expressões eram tão maravilhosas, a crônica tão avassaladora, as descobertas sobre nosso passado tão surpreendentes que me apaixonei, como que tomada por um incêndio. Passei dez anos escrevendo o Boca do Inferno.
- Como a senhora entende que esses autores clássicos, Gregório, Augusto dos Anjos, e mesmo os do Romantismo, repercutem nos dias atuais? Embora sejam do século 19, ainda há muito a aprender com eles? Vejo em muitos países as crianças e os adolescentes lendo na escola o tesouro literário, as obras fundamentais; faz parte da formação pessoal e da educação humanística. Como na Itália, onde as crianças leem e estudam Dante Alighieri, ou na Inglaterra, onde leem Shakespeare e outros autores do cânon. Quando uma pessoa lê o cânon literário, ela se torna um ser mais perceptivo, aprende a pensar, a se expressar, a viver em sociedade, e muito mais. Precisamos preservar e ler o nosso tesouro literário para sermos um País. Eu lembro de, menina, declamar: “Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá”; ou: “Ah que saudades eu tenho da aurora da minha vida”… e outros poemas. Li Machado de Assis no Ensino Fundamental, Guimarães Rosa no Médio. E tinha de escrever todos os dias uma redação de 15 linhas. Isso me ajudou imensamente em minha compreensão do mundo, de mim mesma, e em minha realização pessoal.
- Como vê o trabalho com esses autores em sala de aula? Em sua percepção, no estímulo à leitura, deve-se ou pode-se começar com eles, ou seria preferível começar com autores contemporâneos e então ir recuando? Não compreendo por que motivo o Ensino diferencia a literatura das outras matérias. Para aprender matemática, geografia, química, física, línguas, o aluno é levado a se esforçar, mas com a literatura espera-se que ele tenha prazer. A literatura não é um divertimento, ela é um instrumento de formação, de aperfeiçoamento, de conhecimentos, e um dos melhores exercícios para se aprender a pensar, ler e escrever. Um professor dizia que alunos muito bons em matemática tiravam notas ruins porque não sabiam ler corretamente o enunciado das questões. Meus netos, crianças, vinham passar as férias no Brasil e traziam livros de 400, 600 páginas para ler. Liam comigo 20 páginas por dia, Mark Twain, Victor Hugo, Mary Shelley, antes da piscina ou da praia. Era dever. Não se tornaram grandes leitores, preferem os recursos da informática, mas são capazes de ler, de se expressar muito bem por palavras, de analisar um assunto. A leitura é uma catedral dentro de nós.
- O que José de Alencar representou para a senhora, e o que ainda hoje representa para seu estado (em tempo: comecei minha vida escolar em pequena escola do interior chamada José de Alencar, em Agudo, aqui no Rio Grande do Sul)? Que bonito, o nome de sua escola unindo extremos do Brasil. Nasci na Praia de Iracema, nome inventado por Alencar, que dizem ser um anagrama de América. Conheci José de Alencar na escola, quando morava em Brasília, adolescente. Lia seus livros, eram assunto de estudo, análise, mas ele era para mim um escritor como outros, eu não percebia laços geográficos ou culturais. Com o tempo, com a leitura e releitura de seus romances, com a leitura do maravilhoso romance Iracema, com o conhecimento de sua biografia, com a minha volta ao Ceará depois de 50 anos fora, fui compreendendo a importância de Alencar como formador do romance brasileiro, e incorporando seus livros em meu altar de admirações. E fui descobrindo, pouco a pouco, uma relação profunda entre nossas obras, comportamentos semelhantes, interesses, sentimentos. Acredito que o romance brasileiro tem duas vertentes fundamentais, uma que segue a expressão telúrica e social de Alencar e outra mais psicológica, florescida de Machado de Assis. Guimarães Rosa é telúrico, social; Clarice Lispector é introspectiva, reflexiva. Sou dessa família alencariana. Evidente que não há fronteiras e as duas vertentes se interpenetram. Mas delineiam. Para o Ceará, Alencar é fundamento. Ele está por todo lado, em todas as camadas da sociedade e da cultura. Assim como sua descendente, Rachel de Queiroz. O Ceará tem um sonho literário muito forte.
- E com Rachel de Queiroz (na foto em detalhe), como era a sua relação? Fomos vizinhas, no Leblon. Rachel sempre me convidava quando recebia cearenses, sua casa era uma embaixada do Ceará no Rio. Ela gostava de me provocar dizendo que eu não era cearense, pois minha obra literária não pisava o Ceará. E me deu alguns livros sobre uma heroína republicana cearense, sua antepassada, dona Bárbara do Crato, para que eu escrevesse um romance histórico como o Boca do Inferno, que ela dizia muito apreciar. Cerca de 20 anos depois, escrevi um romance que começa com dona Bárbara e chega ao seu neto, José de Alencar, chamado Semíramis. Dediquei-o a Rachel. Quando escrevia o romance, sentia a presença de Rachel ao meu lado, aprovando ou não o que eu escrevia, guiando minha história. Sinto muito amor por Rachel. Ela é uma rainha no Ceará, amada e admirada; ela é nome de escola, de rua, sua obra é estudada, ela está sempre presente, é sempre lembrada pelos cearenses com um sorriso orgulhoso.
- Como a senhora vê o momento cultural e artístico em Fortaleza, no Ceará e no Nordeste, em especial na literatura? Moro em uma praia de Icapuí, distante de Fortaleza, ainda preservada na sua beleza selvagem, com falésias, o mar verde, o céu sempre limpo de nuvens. Mas tenho um pied à terre em Fortaleza, de forma que convivo também com essa metrópole. Fortaleza mudou muito desde que vim morar no Ceará, em 2006. Era uma cidade provinciana, habitada por uma população meiga, quase toda com um pé no interior. O sonho maior era um emprego público, e dormiam de janelas abertas ou em redes nas varandas. No fim da tarde, botavam cadeiras nas calçadas e ficavam fruindo a vizinhança, o entardecer. Hoje é uma cidade cosmopolita, tem restaurantes excelentes, empreendimentos, novos e maravilhosos museus de arte, como a Pinacoteca e o Mauc; editoras de livros charmosas, como o Armazém da Cultura, a Substânsia. A vida cultural é muito mais movimentada; turnês de grandes músicos, como Caetano Veloso ou Chico Buarque, passam por aqui. Mas a cidade sofre dores dos fenômenos urbanos. Ainda assim, é das mais agradáveis e acolhedoras. Calor e brisa, céu sempre azul. Risadas. Alegria. Boa comida. Bom humor.
- Qual a relação ao longo de sua carreira com a literatura gaúcha, e com autores gaúchos? Quem mais lia? Quando menina, li o maravilhoso Erico Verissimo, tanto para tarefas escolares como por meu desejo; ainda hoje penso se me apaixonei pelo romance histórico quando li O tempo e o vento, e se o nome de meu filho, Rodrigo, é inspirado no personagem de Verissimo. Adorava Clarissa, Olhai os lírios do campo e Música ao longe. Admiro demais o Moacyr Scliar, que foi um amigo muito importante em minha vida, e, além de grande escritor, admirável pessoa e médico social. Uma vez nos encontramos e eu estava em um momento difícil da vida. Ele me disse, e jamais esqueci: “Ana, tudo é fase”. É o meu mantra para os momentos difíceis. Adoro a poesia de Quintana, estou sempre citando o “eles passarão e eu… passarinho” assim como outros versos; gosto demais de Carpinejar, de sua literatura, somos amigos e lhe quero muito bem. E admiro tantos mais. Tenho viajado pouco nos últimos anos, por decisão pessoal, mas já fui vezes sem conta a cidades do Rio Grande do Sul. Minha última visita foi a Santa Maria, convidada pela professora Raquel Trentin. O extremo norte e o extremo sul se tocam em meu coração com afeto.
- Como a senhora vê a cena artística e cultural nacional? Alguma aspiração no sentido de um país que leia mais? Está ocorrendo um movimento de fascínio por livros e escritores, sucedem-se as feiras literárias, como as organizadas por Afonso Borges, e as bienais de livros, a festa de Paraty… Outro dia me dei conta de que alguns dos mais celebrados artistas e escritores brasileiros são indígenas e negros, com obras realmente maravilhosas, como Antonio Obá, Jaider Esbell, Ailton Krenak, Itamar Vieira Júnior, Davi Kopenawa Yanomami… Isso diz muito sobre o momento brasileiro. Viva o Brasil, mesmo tendo florestas tão devastadas e índices de leitura tão baixos. A cultura é a alma. Um país sem arte, sem livros, sem música, sem o cultivo de uma língua, é pobre, raso e infeliz. Sinto compaixão pelas pessoas que não leem; tenho pena, pelo que estão perdendo. Tenho ajudado a formar bibliotecas, primeiro uma aqui em Icapuí, na associação dos pescadores da Redonda; e agora uma infantil, na comunidade de Picos, dirigida por uma brava nativa chamada Luana. É o melhor que posso fazer, depois de ter escrito mais de 30 livros. Dar mais acesso a livros para pessoas sem oportunidades. É lindo, quando sinto que elas olham os livros como algo sagrado, algo que não é mais inatingível, como se tivessem Deus em suas mãos.
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