Tão logo o caso de sequestro do estudante universitário Alexandre de Paula Dias, o Zambinha, de 21 anos, em maio de 1994, ganhou as páginas da Gazeta do Sul, a reação da população santa-cruzense foi imediata. Não apenas pelo caráter inédito da ocorrência, mas pela sensação de mistério e de temor que se instaurou na cidade; afinal, sequestradores estavam à solta.
A Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), local onde ocorreu o rapto de Zambinha, anunciou providências para aumentar a segurança. O então reitor Wilson Kniphoff da Cruz revelou como prioridade a pavimentação, a sinalização e a iluminação do campus, que era precária. Na época, a instituição de ensino recebia cerca de 500 automóveis e 25 ônibus, diariamente.
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Há 30 anos, a cidade já possuía uma economia forte e diversificada, o que fazia com que muitos executivos e empresários morasses em Santa Cruz do Sul, e estes passaram a temer pela segurança de seus familiares. Em razão disso, o delegado Lionir José Lemes da Silva, em meio à intranquilidade, deu algumas dicas. Pediu para as pessoas tentarem sempre andar acompanhadas, se possível ter um guarda particular e evitar utilizar o mesmo percurso todos os dias.
Nas casas, a recomendação foi adotar alarmes. O estopim da divulgação do caso, que foi tema de reportagens em jornais de todo o País, marcava o início de uma pressão: a polícia precisava resolver esse fato único na história. Sob chefia de Lionir, uma dupla da antiga Delegacia Especializada em Furtos, Roubos, Entorpecentes e Capturas (Defrec) foi designada para investigar o sequestro.
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O jovem Celso Esperidião, então com 26 anos, e o experiente Paulo Calderaro, de 43, passaram a viver o caso quase 24 horas por dia. Depois de três décadas, a dupla conversou com a Gazeta para a segunda reportagem da série O sequestro – 30 anos, e contou alguns detalhes que fizeram a diferença na investigação, como a ida a uma boate da cidade para apurar informações importantes, e o fato de a principal pista estar na etiqueta de um cobertor.
Natural de Cachoeira do Sul e policial civil desde 1971, Paulo Calderaro era o típico investigador. Corpulento, geralmente de colete, cabelo comprido, bigode grosso, cigarrinho no canto da boca e cara de mau. Sem contar o sangue nos olhos para resolver os casos. “Eu gostava de ser policial. A investigação é uma cachaça. Assim como o crime não tem hora, a investigação também não tem. Eu brigava com os plantonistas para me comunicarem sempre na hora quando acontecesse a ocorrência que fosse”, disse o chefe do setor de investigações da Defrec em 1994.
Atualmente com 73 anos, ele recebeu a reportagem da Gazeta em sua casa, no Bairro Senai, e contou alguns dos bastidores jamais revelados na investigação do sequestro de Zambinha. Três anos antes do caso único em Santa Cruz, o Estado promoveu um treinamento antissequestro para os policiais civis gaúchos com a polícia francesa.
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De Santa Cruz do Sul, Calderaro foi um dos escolhidos para participar dos ensinamentos em Porto Alegre. Mal sabia o que iria investigar anos depois. “No dia do sequestro, um conhecido chegou na delegacia e falou comigo sobre um amigo dele que estava passando por um problema, pois seu filho havia sido sequestrado. Mas que esse amigo estava com medo de falar com a polícia, ameaçado de receber num dia um dedo, no outro uma orelha de seu filho”, contou Calderaro.
Foi então que o chefe de investigação falou com o delegado Lionir e ambos resolveram marcar uma reunião na casa de Carlos Mariano Dias, pai de Alexandre. Lá, o caso chegou de forma completa aos policiais civis. “A partir disso, começamos a pressionar os criminosos que conhecíamos. Fomos nas vilas procurar, e em flagrantes questionávamos os presos. Mesmo com a barganha de livrá-los de sanções mais pesadas por uma eventual colaboração, ninguém falava ou sabia de nada.”
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A chegada de agentes de outras cidades chamou a atenção dos sequestradores. Em uma das ligações para a família Dias, o aviso foi claro: “Se não mandar os Tempra embora, não tem mais negociação”. O criminoso referia-se aos veículos Fiat Tempra, transformados em viaturas, que eram o xodó da polícia nos anos 1990 e somente equipes das delegacias de Porto Alegre tinham o privilégio de dirigir. Algo sabido por todos, inclusive pelos bandidos.
Algo que chamava muito a atenção dos investigadores eram as ligações dos sequestradores. Com escutas, uma central da Companhia Riograndense de Telecomunicações (CRT) instalada em um apartamento ao lado do da família Dias apontava de onde vinham. No entanto, ao se deslocar até o ponto em busca pelos assaltantes, os agentes não encontravam ninguém.
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Em duas oportunidades, os policiais foram até o interior de Vera Cruz e em uma fazenda de Rio Pardo, mas não localizaram o cativeiro. “Teve um dia em que uma região toda de Vera Cruz ficou sem telefone. Começamos a suspeitar dessa situação”, disse o ex-inspetor Paulo, casado há 52 anos com Maria Eunice Garcia Calderaro, de 74, e pai do treinador de basquete Athos Calderaro. Sobre a noite da entrega do valor do resgate, Paulo foi junto com Carlos Mariano Dias na caminhonete Toyota até a ponte de Rio Pardo.
Viu quando o pai de Zambinha seguiu os passos pedidos pelos sequestradores, ao ouvir as fitas no gravador, fazer os gestos com a lanterna e soltar a bolsa com os 200 mil dólares. “Foi uma noite terrível. Quando voltamos ao apartamento, para aguardar o contato dos bandidos, tinha parentes chorando, e as horas não passavam.” A situação se tornou ainda mais dramática quando os criminosos ligaram e disseram que não encontraram a mochila com o dinheiro.
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No retorno à ponte em Rio Pardo, aconteceu um fato cômico em meio à tensão. “Havia um grupo de pessoas nas proximidades da ponte, naquela escuridão, e acabamos prendendo-as, por inicialmente acharmos que se tratava de envolvidos no crime. Rapidamente o mal-entendido foi esclarecido, pois o grupo era de uma religião e estava lá realizando um despacho.” Na manhã seguinte, todos souberam que Zambinha estava no hospital de Cachoeira do Sul.
Natural de Ibarama, na Região Centro-Serra, Celso Esperidião, hoje com 56 anos, foi policial militar entre 1987 e 1993 e policial civil entre 1993 e 1996, passando depois a dedicar seu tempo de forma integral para a instrução de autoescola – trabalho que já exercia desde 1989, nos horários de folga – fundando o CFC Celso. Curiosamente, a empresa passou a funcionar nas imediações do prédio onde era a antiga Defrec, na Rua Venâncio Aires, no centro de Santa Cruz do Sul, onde ele recebeu a Gazeta para a produção da série O sequestro – 30 anos.
No escritório dele, uma placa em acrílico chamava a atenção. Era o artigo “Sequestro nunca mais”, escrito por Paulinho Treib na edição da Gazeta do Sul de 10 de maio de 1994, que revelou o crime para todos. Com um ano na Polícia Civil, entrou na investigação que até hoje considera como a principal de sua vida. “Todo sonho de um policial é desvendar os casos mais misteriosos possíveis.”
Foi em uma reunião com o delegado Lionir e Calderaro, o chefe das investigações, que Celso descobriu que atuaria na apuração do sequestro. E na tentativa de buscar detalhes, o primeiro passo foi ouvir Zambinha no hospital. Bastante debilitado, após passar dias em cativeiro algemado, acorrentado, e depois de ter sido baleado no peito, o jovem de 21 anos revelou a informação mais preciosa de toda a investigação.
“Ele contou para o Calderaro e para mim que em uma noite no cativeiro fez frio. E o sequestrador entregou um cobertor para ele. Quando ele foi comer, no outro dia, e tiraram parcialmente a venda dos olhos, ele enxergou a etiqueta desse cobertor, que dizia Keller Niedersberg.” A única pista fornecida pelo debilitado Zambinha, do nome de uma das principais lojas de Santa Cruz no cobertor entregue a ele pelo sequestrador, era o fio da meada que os investigadores precisavam.
A dupla foi até a loja especializada em confecções, que funcionava na esquina das ruas Sete de Setembro e Venâncio Aires, e fez um pedido ao proprietário Maurício Keller. “Dissemos que nós precisávamos nos reunir com todas as vendedoras em uma sala separada, e ele aceitou. Diante de todas, a pergunta foi: quem comprara cobertor na loja naquela semana”, contou Celso.
“Só duas compras haviam sido feitas. A Souza Cruz havia adquirido dez cobertores para uma ação, e um homem tinha comprado uma peça”, complementou o ex-inspetor. A vendedora então deu detalhes. “Ela nos disse que era seu vizinho, que chegou rápido e disse que precisava de um cobertor para uma pescaria que ia fazer. Logo pensamos: quem compra um cobertor novo para ir a uma pescaria? Aí pedimos o nome dele e ela nos disse: Carlos Ivan Fischer.”
A compra do cobertor foi feita com cheque. Rapidamente, os policiais localizaram a nota fiscal e os dados do cliente. O primeiro suspeito, que tinha 27 anos na época, estava identificado. Soube-se depois que o homem tinha habilidade em elétrica e eletrônica, o que explicava as ligações. “Aquilo até então era um mistério pra nós. Com a identificação, descobrimos que ele ia onde passava a fiação do telefone, cortava os fios, conectava um aparelho, puxava uma linha e ligava”, disse Celso.
“Isso fazia com que nós fôssemos até o local onde apontava a ligação, mas ele havia ligado de outro. Encontramos nas buscas alguns fios caídos”, complementou. Dias antes de saber quem era o sequestrador, o inspetor, que conhecia Teco pelo trabalho que fazia de eletricidade em empresas, encontrou-o almoçando no Parque da Gruta.
“Ele era bem relacionado e conhecido na sociedade. Naquele dia, estava cheio de policiais de fora almoçando na gruta. Perguntei o que ele estava achando do sequestro. Ele só me disse: ‘Bá, esse cara é bom, heim’”, sorriu Celso, relembrando o episódio inusitado. As pistas adquiridas dias depois desse encontro no restaurante embasaram um pedido de prisão, que foi aceito. No entanto, Carlos Ivan Fischer não foi encontrado em sua casa, no Bairro Pedreira. Na edição de 17 de maio da Gazeta do Sul, a foto de Teco estampou boa parte de uma página, colocando-o como foragido.
“No outro dia, nos ligou um senhor dono de uma mecânica, contando que tinha visto no jornal que o Teco era o sequestrador, e contou que na noite anterior havia ido socorrê-lo em Herveiras, após o veículo dele furar o carter”, revelou Celso. O carro ainda estava na oficina e foi apreendido. Os policiais descobriram que Teco mentira para sua noiva e para a família que iria viajar por dois meses, pois tinha fechado um contrato grande para fazer painéis eletrônicos, e que ganharia muito dinheiro.
O cerco ao sequestrador estava se fechando. “A parte mais importante da investigação foi a etiqueta. Ele planejou não sei quanto tempo, talvez três ou quatro meses, e caiu num erro amador, que ele não tinha programado. Depois de mentir para a família que ia trabalhar longe num grande serviço, ele não podia aparecer em casa para pegar um cobertor velho. Na ansiedade, comprou, mas esqueceu de tirar a etiqueta”, comentou Celso Esperidião.
Nas buscas por Teco, Calderaro descobriu que ele frequentava uma boate que ficava próximo da Avenida do Imigrante. “O Celso era meu camarada na investigação. Falei para ele para irmos na boate investigar e ele topou”, contou o chefe da apuração. “Disse pro Celso que iríamos de forma ostensiva, com nossas armas. Tentaram nos cobrar ingresso, mas eu falei que era polícia e fui entrando. Largamos as nossas armas na mesa e ficamos lá. Pouco a pouco, a boate foi esvaziando. No outro dia fomos de novo. Até que o dono nos pediu por favor para irmos embora, pois estava tendo prejuízo. Foi então que pedi algo em troca.”
O experiente investigador perguntou quem era próximo de Teco que frequentava o lugar. Foi quando o dono da boate revelou que o primo dele, Luciano, então com 21 anos, morador de Candelária, ia seguido no estabelecimento. “Fomos embora dali direto para a casa do juiz Luís Felipe Paim Fernandes, que morava na Rua Borges de Medeiros. Ele não queria me dar o mandado. Pedi um voto de confiança.” O magistrado deu um mandado de prisão temporária, mas não sem antes deixar um aviso a Calderaro. “Se não me convencer, solto ele e prendo tu.”
Os dois foram direto a Candelária e localizaram a casa de Luciano. Após falar com a mãe dele, a mulher acabou descobrindo a verdade. O rapaz, que estava dormindo, após retornar no dia anterior para casa, foi chamado e soube que seria preso. No caminho para Santa Cruz, ele confessou o crime e revelou onde era o cativeiro, pois foi ele quem ficou com Zambinha no local. Descobriu-se que o ponto ficava na localidade de Cava Funda, em Sinimbu.
“Passei um rádio para o plantão e disse: chama o delegado e chama a Gazeta. Fomos todos para o cativeiro”, revelou o ex-policial, que em julho completa 74 anos e encerrou sua carreira na polícia como comissário em 2000. Dias depois da descoberta, foi a vez de Teco se apresentar na delegacia e contar uma história estranha sobre “os outros”.
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