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Tradição

A história de Santa Cruz ressurge por meio das placas bilíngues

Foto: Alencar da Rosa

Eno Müller e Gilberto Müller com a nova identificação que chegou a Linha Andrade Neves

Era final de janeiro de 1945. A campanha nacionalista de Getúlio Vargas ainda imperava no Brasil. O movimento tinha o objetivo de diminuir a influência das comunidades de descendentes de imigrantes estrangeiros no Brasil, sobretudo após Vargas firmar acordo com o então presidente americano, Franklin Roosevelt, e se juntar aos Aliados na luta contra as Potências do Eixo, lideradas pela Alemanha.

Na tarde de 27 de janeiro de 1945, as tropas soviéticas tomaram Auschwitz, o maior e mais terrível campo de extermínio dos nazistas. Enquanto isso, naquela mesma tarde, em Linha Schwerin, hoje Linha Andrade Neves, interior de Santa Cruz do Sul, o burburinho era grande acerca de um inspetor de polícia da cidade, de apelido Xiru. O comentário era que ele rondava a comunidade à procura daqueles que continuavam a cometer o chamado “crime idiomático” – assim chamado por Vargas –, ao insistirem em falar em idiomas estrangeiros, nesse caso, o alemão.

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A informação de que Xiru iria fiscalizar o baile da comunidade, a ser realizado naquela noite no então Salão João Frantz, causou certa tensão entre os moradores. Ainda assim, sob um calor quase tão forte quanto o do dia, dezenas de pessoas foram ao evento iniciado por volta das 19 horas, respeitando a regra principal adotada pelas comunidades do interior na época: homens de terno e gravata e mulheres de vestido longo.

Embora a dança no tablado do salão fosse o ato principal da festa, nas mesas só se falava sobre a possibilidade de o inspetor aparecer e interromper o divertimento, que àquela hora seguia marcado por forte tensão. Naquela noite, Xiru, que assombrava a comunidade escutando as conversas por entre as portas e janelas das casas, seria assassinado, não fosse a perspicácia do jovem Arlindo Frantz.

Eno e Gilberto mostram a placa de Linha Andrade Neves, a primeira da nova leva a ser fixada. Ao fundo o antigo Salão João Frantz, onde quase deu morte durante a proibição da língua alemã

O filho de João Frantz, então dono do salão, percebendo a tragédia que se anunciava, escondeu-se do lado de fora do estabelecimento junto ao amigo Lindolfo Schmidt. Persistente em seu trabalho de proibir a língua alemã, Xiru compareceu ao evento, como esperado, mas não chegou nem perto da porta. Foi puxado pela camisa por Frantz e Schmidt e avisado de que, se entrasse, seria morto. O homem foi trancado em um quarto do mesmo prédio e liberado após a festa terminar. Para o público, o inspetor jamais chegou a ir até o Salão João Frantz naquela noite.

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Essa é uma dentre muitas histórias pitorescas que vêm sendo resgatadas na esteira de um projeto cultural inovador em Santa Cruz do Sul: a instalação de placas de indicação bilíngues, que informam os nomes atuais das localidades, em português, mas também seus nomes antigos, em alemão. Confira nesta reportagem a quantas anda essa iniciativa e qual sua importância para perpetuar a história e a cultura.

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Um projeto plural

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Passados 75 anos do episódio com o inspetor Xiru, Eno Nestor Müller, de 73 anos, relata o incidente que percorreu gerações de moradores de Linha Andrade Neves, e que lhe foi contado por seus avós. “Não foi fácil vivenciar a cultura alemã durante um bom período. De forma ríspida, vinha sendo proibida a fala do dialeto e esse foi um exemplo. Felizmente, tudo mudou”, ressaltou. O tempo passou, e a mistura das etnias alemã e brasileira ajudou a tornar Santa Cruz uma das mais pujantes cidades do Estado.

Eno preserva as histórias do lugar

Para celebrar a pluralidade de culturas do município, na manhã do último sábado, seu Eno outros integrantes da comunidade fixaram em frente ao atual Salão Müller uma placa que indica o nome da localidade em português – Linha Andrade Neves – e como era chamada na época da colonização – Linha Schwerin.

A ação faz parte do projeto Toponímia, que dispõe sobre os topônimos que deram origem ao nome de localidades, vias públicas e outros locais em Santa Cruz do Sul. Segundo o idealizador e representante do Vale do Rio Pardo no Colegiado da Diversidade Linguística do Estado, Nasário Eliseu Bohnen, o projeto chamou a atenção tão logo foi aprovado, ainda em 2010.

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“Desde então, sempre havia o clamor nas comunidades por onde a gente passava para que se colocasse em prática. No ano passado, durante as comemorações dos 170 anos da imigração alemã, conseguimos instalar as primeiras placas, e agora seguimos”, explicou Nasário. As placas foram criadas pela Secretaria Municipal de Transportes, Serviços e Mobilidade Urbana (Setsu).

Na primeira leva, foram instaladas sete placas: Linha Santa Cruz/ Alte Pikade; Linha Áustria/Osterreich Pikade; Linha Travessa/ Querpikade; Alto Linha Santa Cruz/Geißenberg Bender; Linha Nova/Zinsental; e duas no Acesso Grasel (Kässchmier Pikade e Schuckerie Jacuri). Na leva de agora, são mais oito: Linha Andrade Neves/Linha Schwerin; Linha João Alves/Rettungs Pikade; Quarta Linha Nova/Batata Berg; Travessa Leopoldina/ Holz Pick; Cerro Alegre/Wolf Pikade; Buraco do Caranguejo/ Krebs Loch; Corredor Frey/Freier Eck; e Barão do Arroio Grande/ Kochloeffel. Outras oito ainda serão confeccionadas, de forma a totalizar as 23 idealizadas.

“Nós, moradores que falamos o alemão e o português, ainda nos pronunciamos no formato do dialeto. A gente não fala Linha Andrade Neves, mas sim Linha Schwerin. Assim como Zinsental para Linha Nova, Affen Pikade para a Picada dos Macacos, Rio Thal, Rauberloch e outras. Isso passou de geração para geração, por isso é importante manter das duas formas, para que todos entendam”, explicou Gilberto Müller, de 59 anos, administrador municipal distrital de Boa Vista.

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Gilberto: assim todos entendem

De acordo com o diretor do Colegiado da Diversidade Linguística do Estado, Cléo Altenhofen, o projeto Toponímia é uma iniciativa única e impõe uma nova característica: a da “paisagem linguística”. “Existem na Europa muitas cidades que adotam placas bilíngues como forma de inclusão, dentro de um projeto que se chama language landscape. Eu mesmo vi isso em Valencia, na Espanha. Na Cidade do México também, muitas denominações na língua dos astecas. No Brasil, Santa Cruz do Sul é o primeiro e único caso que eu conheço”, disse Altenhofen.

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Do salão surgiram grandes lideranças políticas

Historicamente, o nome de Linha Schwerin remete a Hans Von Schwerin, que foi o arquiteto responsável por delimitar as medições de terra de Santa Cruz do Sul, quando esta ainda pertencia a Rio Pardo. O historiador autodidata de Linha Andrade Neves, Eno Nestor Müller, ficou sabendo de muitas histórias do lugar a partir dos mais antigos. “Meus avós me contavam também sobre as comemorações do cinquentenário de Santa Cruz, em 1927, que foi festejado em um potreiro aqui na localidade. A festa contou com a presença de lideranças e da alta sociedade.”

Com 130 anos de história, o Salão Müller, localizado nas proximidades da ponte de pedra, perto do antigo campo do Esportivo, marcou época e até hoje recebe grandes eventos. Antes de ser local para bailes, era uma casa comercial. O lugar foi berço de três importantes personagens da história santa-cruzense: Alfredo Kliemann, nascido em 1902, que foi prefeito de 1947 a 1951; Arno Frantz, nascido em 1922, prefeito por dois mandatos, de 1977 a 1982 e de 1989 a 1992, e deputado estadual de 1995 a 1999; e Euclydes Kliemann, também de 1922, que foi deputado estadual de 1959 até ser assassinado, em 1963.

Hardi Müller ainda administra estabelecimento que pai adquiriu da família Frantz. Prédio foi construído pelo avô de Euclydes Kliemann

“O alemão Franz Kliemann construiu o local, sendo seu comércio. Depois ficou para o seu filho João Nicolau e a esposa dele, Francisca Josefa Etges, que tiveram como filhos o Alfredo e o Euclydes”, explicou Eno Nestor Müller. Ao todo, João Nicolau e Francisca tiveram dez filhos.

Os Frantz compraram o estabelecimento dos Kliemann e ampliaram o serviço – além de casa comercial, virou salão de bailes. Sobre a importância de Arno Frantz, irmão de Arlindo e filho de João e Rosa Frantz, seu Eno simplifica a prosa: “O Arno? Pra nós? Ele era tudo!”.

Anos mais tarde, Armindo Müller adquiriu o salão e bodega. Seu filho Hardi Müller, de 60 anos, segue administrando e morando no local. Com mesas para jogos de bolão, utensílios em vidro grosso e móveis entalhados à mão em madeira de cedro, o local possui uma atmosfera que remete ao passado, e que só o interior apresenta. “Seguimos abertos todos os dias, a partir da meia tarde. Por aqui, o atendimento é quase todo em alemão, que as pessoas seguem falando bastante”, disse o dono do Salão Müller.

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