Os primórdios da imigração alemã no Sul do Brasil, como de resto o legado de tantas outras etnias, estão repletos da persistência e da superação protagonizadas por homens e mulheres.
No entanto, estas muitas vezes ficam à sombra ou em segundo plano em relatos. Quem se determinou com ênfase a corrigir essa injustiça e a preencher lacunas é a professora aposentada Hilda Agnes Hübner Flores, decana da historiografia no Estado. Dona Hilda possui fortes laços com o Vale do Rio Pardo: nasceu em Linha Duvidosa, na região serrana de Venâncio Aires, e inclusive estudou no Colégio das Irmãs, em Santa Cruz do Sul.
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Aos 90 anos, segue com intensa produção intelectual, dedicando sucessivos livros a elucidar aspectos variados do universo social e cultural gaúcho. Ela é casada com o também historiador e professor aposentado Moacyr Flores, outro expoente dos estudos históricos, e que igualmente será contemplado nesta série. O casal recebeu a Gazeta do Sul em seu apartamento, no Bairro Rio Branco, em Porto Alegre, para uma longa entrevista.
A saga dos imigrantes boêmios
A história familiar de dona Hilda Agnes Hübner Flores ilustra em grande medida o quanto os primeiros tempos da colonização alemã no Rio Grande do Sul, ao longo do século 19, foram árduos e desafiantes. Ela descende de imigrantes boêmios, oriundos de vilarejos hoje situados no interior da República Tcheca, e que chegaram ao extremo sul do Brasil ao longo da década de 1870.
O destino de algumas dessas famílias foram pequenas propriedades situadas na região serrana de Venâncio Aires. Eram, na maioria, de artesãos vítreos que, na terra de origem, dedicavam-se à elaboração dos mundialmente famosos cristais da Boêmia, e que na Europa, muito habilidosos que eram, atuavam junto a grandes empreendimentos. Diante das dificuldades econômicas enfrentadas em meados do século 19, com famílias numerosas e cada vez mais carentes de recursos, ousaram emigrar, atraídos pela promessa de virarem proprietários de uma área de terras da qual poderiam retirar o sustento.
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No entanto, a realidade com a qual se defrontaram, com florestas nativas que deveriam dominar, pôs por terra muitos dos sonhos de uma vida fácil. De imediato, tiveram de abdicar de seus conhecimentos e de sua vocação na fabricação do vidro, e da noite para o dia viraram lavradores. Sem, contudo, dispor de uma infraestrutura apropriada que favorecesse um rápido desenvolvimento. Os pais de Hilda, Francisco Hübner e Anna Antonia Dittrich Hübner, foram das primeiras gerações já nascidas no novo mundo encontrado pelos imigrantes. Estabelecidos em Linha Duvidosa, tiveram 12 filhos, dos quais Hilda, nascida em 16 de junho de 1933, foi a 11ª.
Após os estudos primários em sua localidade natal, Hilda, dos 11 para os 12 anos, tornou-se interna no Colégio das Irmãs, em Santa Cruz do Sul, no prédio ao lado da Catedral São João Batista no qual hoje está a Faculdade Dom Alberto. Ali estudou por cerca de seis anos, e após mudou-se para Estrela, onde seguiu em sua formação. Por fim, transferiu-se a Porto Alegre, para ingressar no curso de Serviço Social. Mas se encontrou mesmo nos estudos históricos. Bacharel em Filosofia e mestre em História pela PUCRS, atuou como mestre para sucessivas gerações, na PUCRS e na Ufrgs, e teve em outro historiador, Moacyr Flores, o seu grande companheiro de vida.
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Em livros referenciais, um olhar diferenciado
Os 25 livros que Hilda Agnes Hübner Flores assina, como autora, deixam entrever o seu interesse pelos temas da imigração e da colonização alemã e, de imediato, também pelas condições e contribuições das mulheres nesse processo. Títulos referenciais, como História da Imigração Alemã no Rio Grande do Sul, Alemães na Guerra dos Farrapos, Mulheres na Guerra dos Farrapos, Mulheres na Guerra do Paraguai e Dicionário de Mulheres são de leitura obrigatória para todos os que estudam o contexto da colonização do Rio Grande do Sul.
Neles, com seu empenho em cercar-se de documentos fidedignos, não raro originais nunca antes manuseados ou compartilhados em relatos históricos, descortina um olhar muito afetuoso sobre as mulheres que, lado a lado com os homens, lutaram para sobreviver e para sustentar suas famílias. Heroínas que foram, mesmo no cotidiano do lar deixaram marcas profundas e legado em forma de costumes, hábitos e tradições trazidas da Europa.
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Em paralelo a sua obra em historiografia, dona Hilda traduziu diversos textos referenciais sobre imigração alemã, a exemplo de Memórias de um imigrante boêmio, de Josef Umann, e de O doutor maragato, de Josef Eickhoff.
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A jornada que começou em Linha Duvidosa
Quando já residia em Porto Alegre, para dar continuidade aos estudos em Serviço Social, a venâncio-airense Hilda Agnes Hübner, com pouco mais de 20 anos, conheceu o porto-alegrense Moacyr Flores, que por essa época era desenhista em um órgão público. Casaram-se em 1962. Além do amor recíproco, apaixonaram-se ambos pela História, área na qual fizeram a sua especialização. Têm os filhos Ana Berenice, Marcia e Marcos (este deu-lhes os netos Luisa e Tales). Mestre e doutor em História pela PUCRS, universidade na qual também lecionou (além da Ufrgs e da Furg), Moacyr, aos 88 anos, desde o princípio buscou orientar-se pela história social, para a qual sentiu-se inclinado a partir da leitura de autores franceses.
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Ao longo dos anos de dedicação aos estudos em História, e na rotina de sala de aula, bem como na dedicação à família, radicada em Porto Alegre, dona Hilda foi diminuindo o contato com a terra natal. O pai, Francisco, faleceu em 1941, quando ainda era menininha; a mãe morreu em 1953. Como ela era a segunda mais nova entre os 12 irmãos, ao longo do tempo foi perdendo-os, e os laços familiares acabaram sendo mantidos com os sobrinhos. Com estes, permaneceu em contato.
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E foi por insistência deles, inclusive, que se empenhou em resgatar informações históricas e genealógicas relacionadas aos ramos das famílias de seu pai, os Hübner, e da mãe, os Dittrich. O esforço resultou em um volume, Imigrantes boêmios, lançado em 2015, e em uma segunda contribuição, Imigrantes boêmios: genealogia, de 2018. Ali, lançando mão de seus amplos conhecimentos sobre o contexto social na Europa do século 19 e igualmente da realidade no Sul do Brasil ao tempo da chegada dos imigrantes, contextualiza o ambiente em que vieram os antepassados.
Mais recentemente, e depois de muitos anos, dona Hilda, na companhia do marido Moacyr e de parentes, retornou a Linha Duvidosa. Ficou impressionada com as mudanças havidas: a agricultura praticada ao tempo de sua infância, na década de 1930, cedeu espaço a uma produção muito mecanizada. E, com a renda desta, apoiada no tabaco, na soja e na diversificação típica da pequena propriedade de perfil familiar, vieram as tão almejadas melhorias, tanto sonhadas pela geração de seus pais.
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À sua região natal, ela dedicou também a sua dissertação de mestrado, em virtude da qual realizou diversas viagens para as comunidades serranas. A pesquisa resultou no livro Canção dos imigrantes, lançado em 1983.
ENTREVISTA
Hilda Agnes Hübner Flores – Professora aposentada, historiadora e pesquisadora
Magazine – Como ocorreu a decisão em família para que a senhora, quando menina, em Linha Duvidosa, no interior de Venâncio Aires, viesse estudar em Santa Cruz?
Passavam padres e freiras por lá e pintavam um mundo maravilhoso para quem viesse estudar no Colégio das Irmãs. E, na verdade, com 5 anos, em casa, eu sempre dizia que queria ser professora. Porque era a única profissão que eu conhecia exercida por mulheres. Fora de permanecer no campo, no interior, era ser professora. Anos depois, contavam-me que desde pequeninha eu ficava dizendo que queria ser professora. E, veja só, no final foi o que se concretizou. No internato eu me encontrei. E olha que fui com o pretexto de querer ser freira.
Durante quantos anos a senhora estudou em Santa Cruz e com que frequência ia visitar a família?
Em Santa Cruz fiquei por cerca de cinco anos, e me formei em 1951. As férias costumava passar em casa, mas no período de escola ficava direto em Santa Cruz. Eu tinha pavor de ir para a igrejinha que ficava ao lado, e no 7 de setembro colocavam fitinha em nós. Não gostava quando a gente tinha que ficar enfileirado, tinha pavor de ajuntamento. Mas esse período me marcou muito bem; a terceira e a quarta série já fiz dando aulas. Cursava o ginásio de manhã e dava aula de tarde para 52 aluninhas. Aliás, quando me formei, ganhei 52 buquês belíssimos, um de cada uma das crianças, foi algo muito emocionante e que nunca mais esqueci. Minha mãe foi na formatura. De Santa Cruz, fui para Estrela.
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E depois veio a transferência para Porto Alegre? Qual era o plano da senhora naquela época?
Mudei-me para Porto Alegre para fazer o vestibular de Serviço Social, que concluí em 1955. Sou assistente social; trabalhei por 15 anos nessa área e vi que não adiantava, porque tem centenas de pessoas e famílias com problemas e a gente resolvia as coisas por individualidade. Não dava; desisti e saí fora. Nessa altura, já tinha feito exame para o magistério, este feito quando eu e o Moacyr casamos, em 1962. Então, num primeiro momento, fomos ambos trabalhar em São Borja, onde ficamos por dois anos e meio.
E o gosto pela História, como surgiu?
À medida que eu entrei no conhecimento de história, me encantei. O Moacyr também era um grande leitor desde jovem, domina muito bem a matéria e a gente conversava sempre sobre temas e assuntos comuns. A história é apaixonante; ela implica em muita pesquisa, e, naturalmente, uma coisa puxa a outra. Na verdade, como mencionei, por algum tempo trabalhei em serviço social. Anos mais tarde, quando já havíamos voltado de São Borja para Porto Alegre, fiz concurso e fui nomeada para o Colégio Padre Reus, na Tristeza. E ali me colocaram para trabalhar na biblioteca. Me apaixonei. Então a diretora daquele educandário me solicitou que elaborasse um livro recuperando a história do colégio e do bairro. Acabou sendo o meu livro de estreia, Tristeza e Padre Reus, lançado em 1979.
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Para os imigrantes pioneiros, como os que também chegaram a Linha Duvidosa, foi preciso muita superação para providenciar até mesmo as coisas mais simples do cotidiano, não é mesmo?
Sem dúvida! Como eles eram abandonados no mato, tinham que fazer tudo, a começar por abrir estradas. Muitas mulheres tiveram de ajudar, e há registros de mulheres que até morreram de tanto que sofreram com esse trabalho pesado. Por outro lado, cuidaram sozinhos, por exemplo, da educação. Um deles, o que entendia um pouco mais do que os outros, era o professor. Havia quatro ou cinco crianças em idade de ir para a aula e um dos colonos fazia a função de professor, pago pelos moradores, que acabavam construindo a escola. Inicialmente, antes da igreja veio a escola, que era emprestada no fim de semana para alguma celebração religiosa, ou para o padre rezar a missa. Misturavam a economia, a escola, a religiosidade, a cultura, tudo no mesmo lugar.
Com seus estudos em História e as pesquisas, a senhora de alguma forma pôde se reaproximar de seu universo imaginário da infância?
Eu me apaixonei pela história. E hoje, mesmo aposentada da condição de professora, mal consigo dar conta de tantos artigos e tantas pesquisas nas quais me envolvo. Estou sempre com algum trabalho. Na verdade, acho que fui a primeira historiadora que se dedicou efetivamente a estudar as condições da mulher durante o período das guerras em que nosso Estado esteve diretamente implicado, como a Revolução Farroupilha e depois a Guerra do Paraguai. Não conheço outros livros com esse viés. E as mulheres de várias regiões gaúchas, também nas colônias alemãs já existentes, sofreram muito durante esse período. Solano Lopes dizia “morro com minha pátria”, e ele mandou os homens saírem de casa e seguirem o exército. Esse era o pensamento geral. Nenhum deles mais se preocupava com nada, nem com comida para os que haviam ficado.
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