A gente se acostuma a tudo? É compreensível que, diante das notícias sobre crimes bárbaros e sem sentido, busquemos segurança – um chão relativamente firme sob os pés – repetindo frases como “a violência sempre existiu” ou “o mundo já foi muito pior”. Afinal, é necessário tocar a vida e não a morte. Como no desabafo do poeta mineiro Affonso Romano de Sant’Anna: “Parem de jogar cadáveres na minha porta / Tenho que sair – respirar”.
Mas não é possível aceitar o flagrante aumento dos feminicídios no Rio Grande do Sul. Em maio passado, o número de crimes desse tipo cresceu 42,9% na comparação com o mesmo período de 2021, segundo a Secretaria de Segurança Pública do Estado. A estatística não deixa de corresponder à percepção das pessoas, que são informadas quase diariamente sobre mulheres assassinadas por ex-companheiros em algum lugar. Quando menos esperamos, até alguém conhecido se vai.
É certamente o efeito extremo de uma cultura machista, mas há mais. Há uma sensação cada vez mais presente de que a vida humana é descartável, não tem valor especial em si. Nessa nova “sensibilidade” insensível, matar se torna um gesto banal. Não existe nada de sagrado na vida de ninguém. Mata-se por qualquer motivo e inclusive por nenhum. A menor divergência ou contrariedade pode ser fatal.
A repetição de fatos semelhantes cria uma atmosfera insidiosa: o absurdo passa a reivindicar status de normalidade. Chama a atenção, muitas vezes, o orgulho que os agressores têm de seu comportamento: gravam suas atrocidades em vídeos e compartilham nas redes sociais.
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Como em qualquer período histórico, é preciso resistir à crueldade, lembrando Edgar Morin. Sociólogo, filósofo e antropólogo, um dos mais influentes pensadores europeus, ele completou 101 anos no dia 8 de julho. É alguém que resiste, sem dúvidas. E acredita. “A busca do esforço desesperado que, no ser humano, toma a forma de uma resistência à crueldade do mundo é o que eu chamaria de esperança”, escreveu em sua autobiografia Meus demônios, de 1997.
A resistência é o ponto de partida antes de qualquer coisa, antes de abrir qualquer trilha. “Resistir em primeiro lugar a nós mesmos, a nossa desatenção, a nossa preguiça e ao nosso desânimo, a nossas vis pulsões e mesquinhas obsessões.” E à tendência de naturalizar o absurdo só porque ele insiste em se repetir.
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