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HISTÓRIA

A experiência colonial dos alemães na África

A emigração alemã ao longo do século 19 teve alguns destinos principais, com destaque para o Brasil e para os Estados Unidos. Mas muitas outras regiões do planeta acolheram germânicos, tanto naquela mesma época quanto nas décadas posteriores. Na América do Sul, famílias fixaram-se, por exemplo, no Chile e na Argentina, onde comunidades de descendentes podem ser identificadas.

Mas uma outra frente se constituiu: para o continente africano. E é ao estudo dessa colonização que se dedica, há muitos anos, o professor e historiador Sílvio Marcus de Souza Correa, vinculado há 15 anos à Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em Florianópolis. Nascido em Porto Alegre, teve duas passagens por Santa Cruz do Sul como professor, a primeira em 1993 e 1994, em curso de História, e a segunda entre 2000 e 2008, então também na pós-graduação. Atualmente, uma de suas áreas de concentração é a História da África.

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O historiador e professor Sílvio Marcus de Souza Correa dedicou-se em seus estudos à temática da imigração e da colonização alemã e, nela, à experiência colonial da Alemanha no continente africano. Sua formação acadêmica iniciou-se com o curso de História na Ufrgs, entre 1986 e 1990, e seguiu com o mestrado na Pontifícia Universidade Católica (PUCRS).

Após isso, mergulhou de vez na temática da imigração e da colonização alemã, apostando em doutorado, entre 1995 e 1999, na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Westfälische Wilhelms-Universität, de Münster, na Alemanha, em uma pesquisa social. Sua tese ocupava-se de avaliar e dimensionar o capital social dos descendentes de imigrantes alemães em Santa Cruz do Sul, naquele momento específico.

Analisou dados obtidos em questionário, e apoiou-se em especial na obra do sociólogo norte-americano Gerhard Lenski e do etnólogo e sociólogo francês Pierre Bordieu, principalmente sobre as investigações deste em torno do capital social. Durante o doutorado em Münster, teve contato profundo com a história da África e a história da presença alemã naquele continente. E essa é hoje uma de suas principais áreas de concentração como professor na UFSC. Entre obras que assinou ou nas quais contribuiu está o livro Nossa África – Ensino e pesquisa, que organizou em parceria com Simoni Mendes de Paula. Foi lançado pela editora Oikos, de São Leopoldo, em 2016.

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Nos últimos anos, Correa tem trabalhado com a história visual do colonialismo. Inclusive coordena um grupo de pesquisa sobre História da África e Cultura Visual junto ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Depois de visitar muitos museus na Europa com grandes coleções africanas em seus acervos, resolveu estudar aquelas que se encontram em museus do Brasil. No ano passado, iniciou um novo projeto de pesquisa sobre as coleções africanas em acervos museológicos do Brasil.

Após estágio no exterior, quando retornou a Dacar, no Senegal, para consultar os arquivos e o acervo do Museu Théodore Monod de Arte Africana do Instituto Fundamental da África Negra (Ifan), fez estudos comparativos entre objetos de coleções africanas em museus da Alemanha, da França, Bélgica e Portugal e outros do acervo do Ifan e, por conseguinte, com objetos de coleções africanas de acervos museológicos do Brasil.

Conforme ele, há em torno de 5 mil objetos africanos distribuídos numa dezena de museus situados no norte (como o Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém, no Pará), no sudeste (como o Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, ou o Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo), e no sul do país (como o Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba). “Se as cidades alemãs, como Hamburgo, Berlim, Dresden ou Leipzig, têm museus com riquíssimas coleções africanas, o mesmo não se pode dizer das cidades consideradas ‘alemãs’ no Brasil”, comenta. “O interesse etnográfico dos alemães pelo Outro parece ter sido diferente em áreas de colonização alemã.”

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Presença no continente foi mais expressiva na Namíbia

Quando a Alemanha se constituiu como nação, em 1871, vários países europeus já haviam avançado mundo afora em seu ímpeto colonialista. Ingleses, franceses, espanhóis, portugueses e belgas, entre outros, haviam se apoderado de territórios na África, no Oriente Médio e na Ásia. Durante seu doutorado em Münster, na Alemanha, o professor e historiador Silvio Marcus de Souza Correa passara a estudar a presença alemã na África, ali com projeto de colonização, ao contrário da migração espontânea anterior que se voltara especialmente para a América.

Correa recorda que o unificador alemão, Otto von Bismarck, não via com bons olhos o movimento de sua nação de também iniciar um processo de colonização na África, pelo custo que estaria envolvido nisso. No entanto, a Alemanha rendeu-se ao colonialismo. Por mais de três décadas, entre 1884 e o momento posterior à Primeira Guerra Mundial, em 1919, tomou como colônias os atuais Namíbia, Togo, Camarões e partes da Tanzânia.

Cerca de 12 mil europeus, a maioria de origem alemã, se estabeleceram por lá, enquanto no conjunto das colônias alemãs na África contavam-se em torno de 20 mil europeus. É na Namíbia que o movimento foi mais forte.

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Assim como espanhóis, portugueses, franceses ou ingleses, que haviam instituído uma estrutura de gestão em suas colônias, os alemães concederam seus domínios para empresas, na exploração de minérios, fertilizantes, borracha, cacau e café, entre outros itens. Mas os abusos cometidos por essas empresas, que exploravam a mão de obra local, motivaram muitas revoltas. Por fim, o governo alemão teve de assumir a tarefa de administrar. A derrota na Primeira Guerra Mundial encerrou a aventura colonial alemã na África.

“Essas vivências eram compartilhadas nos jornais em língua alemã”

Gazeta: O senhor desenvolveu pesquisa, na Alemanha, sobre a identidade dos descendentes de alemães em Santa Cruz do Sul. Quais foram as principais conclusões de sua tese?
Minha tese de doutorado já tem 25 anos. Com ela, obtive meu diploma e a menção summa cum laude de uma das mais importantes universidades alemãs. Naquela altura, alguns ensaios sobre certas minorias já alertavam para o perigo do comunitarismo. Em 1998, o livro intitulado As identidades assassinas (Les identités meurtrières, no original), do escritor franco-libanês Amin Maalouf, foi publicado na França. A minha tese adotou abordagem menos alarmista, pois percebi que a identidade étnica no Brasil tinha fronteiras móveis. Trata-se de um processo sincrético, no qual a identidade pode ser reinventada a cada geração. Penso que a minha tese segue atual porque a identidade étnica não se tornou um problema para o desenvolvimento regional. Por outro lado, a guerra em Gaza, na Cisjordânia e no Líbano comprova a envergadura do ensaio de Amin Maalouf por sua atualidade. Assim como pode ocorrer com o comunitarismo, o identitarismo atual pode servir de plataforma para discursos de ódio, para apologia e incitação à violência contra pessoas do out-group. O melhor antídoto parece ser a mixórdia que abole as barreiras étnicas, culturais ou linguísticas. Aliás, uma das minhas conclusões é que a identidade étnica alemã e a identidade nacional brasileira são compatíveis entre a maioria dos descendentes de imigrantes alemães no Brasil. Mas nem sempre foi assim. No início do século 20, Sílvio Romero denunciava o que chamou de “quistos étnicos” no Sul do Brasil. Durante o Estado Novo, a identidade “teuto-brasileira” foi vista como um oxímoro.

Historiador Sílvio Correa, que é professor na UFSC

A Alemanha também teve colônias na África, entre elas a Namíbia. Como eram as colônias alemãs naquele continente em comparação com as dos demais impérios coloniais?
O termo “colônia” tem as suas ambiguidades. Na nova historiografia alemã, o colonialismo tem sido perscrutado em sua relação com a economia, a religião, a educação, a política e mesmo a sexualidade. O impacto ambiental da colonização também tem sido estudado por uma nova geração de historiadores. Em termos comparativos, as colônias alemãs não diferem das colônias francesas, portuguesas ou britânicas na África, pois todas tiveram a mesma retórica e a mesma prática de exploração dos recursos naturais e dos recursos humanos nas colônias. As diferenças são pequenas. Por exemplo, a duração da experiência colonial alemã na África foi de três décadas. Já a experiência francesa na África setentrional foi de mais de cem anos. A experiência colonial portuguesa na África foi ainda mais longeva. No caso alemão, uma primeira colônia na África foi reconhecida em 1884 e ,com o fim da Primeira Grande Guerra (1918) o destino das colônias alemãs estava selado. Em 1920, a Alemanha já não contava com nenhuma colônia no continente africano. Cabe ainda lembrar que a segunda metade do século 19 foi um período de imigração de massa. Milhões de migrantes alemães foram para os EUA, Brasil, Chile e Argentina, entre outros países. Apesar de a Alemanha ser um império colonial no final do século 19 e início do século 20, a imigração alemã para as colônias africanas foi pífia. Entre as quatro colônias alemãs na África, somente aquela do sudoeste africano (atual Namíbia) teve um número expressivo de imigrantes, mas nada comparada ao contingente de franceses na Argélia ou de holandeses, irlandeses, escoceses ou ingleses na África do Sul.

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O que permanece como legado alemão naquelas colônias?
Nos últimos anos, tem-se acirrado a “disputa memorial” em vários países africanos. Na Namíbia, por exemplo, alguns monumentos do período colonial têm sido retirados do espaço público. Trata-se de um processo que muitos denominam de “descolonização”. Assim, mudam-se os nomes de ruas, avenidas ou praças. Em Windhoek, capital da Namíbia, eu vi algumas dessas mudanças na paisagem urbana. Em termos deontológicos, o historiador deve evitar fazer juízo de valores. O conhecimento histórico sobre o passado é diferente do senso comum. Em Lomé, capital do Togo, ouvi pessoas falar com certa nostalgia da “colônia modelo” da então “África alemã”. Acontece que o grau de informação histórica das pessoas varia muito, o que pode determinar seus julgamentos. Mas o historiador se vale da sua disciplina para compreender e não para julgar. O legado nunca é neutro. As pessoas podem avaliar o legado das gerações passadas. Não cabe ao historiador dizer o que foi bom ou o que foi ruim. Manter a subjetividade sob controle é um imperativo categórico no ofício da história. Em Lomé ou Windhoek, pude ver essas cidades como um palimpsesto, onde camadas sobrepostas confundem passado e presente. As “marcas alemãs” na paisagem urbana podem ser mais ou menos perceptíveis para o estrangeiro. Mas vemos o que sabemos. A ironia também serve de lente para ver certas coisas. Em Lomé, o Palácio dos Governadores, construído no período colonial, tornou-se em 2019 um Centro de Arte e Cultura, após oneroso projeto de restauração. Em Windhoek, um antigo forte do período alemão foi adaptado para ser um museu. Nele estão dois monumentos vinculados à memória colonial alemã e retirados dos locais originais num processo de “descolonização” da paisagem urbana. Mas outros equipamentos arquitetônicos acusam um passado colonial. O estado em ruína de certas casas, escolas, estações de trem ou empórios comerciais pode ser uma boa metáfora da colonização em África.

Ao fim da Primeira Guerra Mundial, como foi a relação da Alemanha com as ex-colônias? E como é hoje?
A história da relação entre a Alemanha e suas ex-colônias de 1920 até hoje teve vários capítulos. Em cem anos, houve oscilação entre distanciamento e aproximação. Durante a ascensão nazista, houve mobilização da “nostalgia colonial” no país para fins de propaganda. Durante o III Reich havia quem defendesse reaver as colônias. Não se pode olvidar que o regime nazista empregou métodos coloniais na própria Europa. A invasão alemã da Polônia foi um empreendimento colonial em certos aspectos. Acontece que o nazifascismo seduziu as massas. Na África, assim como nas Américas, houve entre os imigrantes e descendentes alemães quem se identificava com o projeto hitlerista. As comunidades alemãs na África dos anos 1930 e 1940 estiveram numa situação complicada, assim como no Brasil e outras partes do mundo. Quando a Alemanha perdeu a guerra pela segunda vez, as ambições coloniais do III Reich viraram cinzas. A partir de 1945, as prioridades eram as seguintes: desmilitarizar e “desnazificar” a sociedade, relançar a economia e promover a democracia na Alemanha. Porém, com a divisão da Alemanha, a relação com a África seguiria caminhos diferentes. A partir de 1949, tanto a República Federal da Alemanha (RFA) quanto a República Democrática Alemã (RDA), teriam papéis importantes nas relações internacionais. Com a chamada Guerra Fria e o início do processo de independências africanas, a RDA adota uma política anticolonial em sua relação com países africanos. Lembro de um jovem namibiano que me contou, em alemão, sobre sua dramática trajetória de vida. Ele tinha sido um dos órfãos acolhidos na RDA que, naquela altura, apoiava a Organização do Povo do Sudoeste Africano, em inglês, Southwest Africa People’s Organization (SWAPO), em sua luta pela independência. A Namíbia estava sob a tutela sul-africana. Depois de longos anos na RDA, o jovem não sabia mais a língua materna e não havia aprendido o inglês, língua que era oficial da Namíbia desde a dominação sul-africana. Na RDA, ele aprendeu o alemão. Depois da independência da Namíbia, retornou ao país natal, mas sabendo apenas falar a língua dos “colonizadores”. Mas seu drama era ainda maior. Afinal, o país que ele deixou quando criança não era mais o mesmo e o país que lhe acolheu, a RDA, deixou de existir com a reunificação da Alemanha em 1990. Uma vez reunificada a Alemanha, a nova historiografia teve à sua disposição arquivos que estavam na RDA. Embora historiadores alemães da antiga RDA já tivessem estudado criticamente o colonialismo na África, o primeiro genocídio do século 20 foi um dos temas mais polêmicos no debate historiográfico do final do século 20. Na Universidade de Münster, eu frequentava as aulas do historiador alemão Horst Gründer. Em suas aulas e seminários, aprendi muito sobre a experiência colonial alemã na África. Daquela minha geração de estudantes na Alemanha saíram alguns dos historiadores que, atualmente, tratam da história e da memória do colonialismo alemão.
Na ocasião do centenário do genocídio dos grupos herero e nama, houve atividades bilaterais que envolveram representantes da Alemanha e da Namíbia. Em 2021, a Alemanha reconheceu o genocídio na Namíbia cometido pelas autoridades coloniais. O então ministro alemão das Relações Exteriores, Heiko Maas, afirmou que a Alemanha participaria de programa de desenvolvimento para a Namíbia cujo montante foi calculado em mais de US$ 1 bilhão. Esse valor seria desbloqueado ao longo de 30 anos e destinado para áreas de infraestrutura, saúde e educação. Também no Togo e Camarões, a Alemanha tem sido parceira em programas de desenvolvimento. No campo artístico, cultural e técnico-científico, destaca-se a presença alemã nesses países. Na Universidade de Lomé, conheci colegas que, como eu, fizeram doutorado na Alemanha. Cheguei a fazer conferência no Instituto Goethe de Lomé. O Instituto Goethe é instituição alemã que muito contribui para o diálogo intercultural entre a Alemanha e os países africanos.

Existe relação mais efetiva entre descendentes das antigas colônias na África e as regiões de colonização alemã no Brasil?
As experiências dos imigrantes alemães no Brasil meridional e na África eram compartilhadas pelos jornais em língua alemã. Jornais em língua alemã de Santa Cruz do Sul ou Blumenau informavam seus leitores sobre o que acontecia na então “África alemã”. Por sua vez, os jornais em língua alemã de Swakopmund ou da Baía de Lüderitz, ambas as localidades na então colônia alemã do sudoeste africano (atual Namíbia), informavam também sobre as colônias alemãs no Sul do Brasil. Havia o periódico ilustrado Kolonie und Heimat, órgão da Liga Feminina da Sociedade de Colonização Alemã, com sede em Berlim. Nas páginas de Kolonie und Heimat, havia muita informação sobre essas experiências em regiões tropicais e subtropicais. Depois que a Alemanha perdeu suas colônias na África, alguns alemães ficaram em solo africano, outros voltaram à Alemanha, mas houve quem atravessou o Atlântico e se instalou no Brasil. Em pesquisa no arquivo municipal de Blumenau (SC), encontrei documentos sobre um cônsul alemão na década de 1930. Ele tinha imigrado com a sua família da Namíbia para o Brasil. Em geral, os estudos sobre a imigração alemã no Brasil não atentam para a experiência colonial na África. Por sua vez, os estudos sobre as colônias alemãs na África não fazem qualquer relação com as chamadas “colônias” no Sul do Brasil. A especialização no campo da história pode chegar ao absurdo de facultar alguém a saber muito sobre a colonização alemã de um local ou de uma região e nada sobre a colonização alemã alhures.

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