Era perto das 3 horas da madrugada de 7 de maio de 1994. Dentro do porta-malas de um carro, encapuzado, com as mãos algemadas e pés acorrentados, Alexandre de Paula Dias, o Zambinha, então com 21 anos, era levado. Não sabia para onde. O silêncio dentro do veículo, onde estavam três de seus sequestradores, era absoluto.
“Ouvi um ’tléck’ do engatilhar do revólver. Foi quando pensei que eles iriam me matar.” Depois de sair do veículo, livre das correntes e algemas, mas ainda com o capuz, ouviu a promessa de ser solto. Em seguida, a ordem: “Segue caminhando devagar”. A voz do sequestrador foi ficando longe, e a mão que estava em seu ombro o conduzindo foi solta. Do nada, um grito. “Espera! Ele tá com o meu casaco.”
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Um dos criminosos retirou a veste e disse para Zambinha seguir o caminhar devagar. Segundos depois, ocorreu um disparo, que acertou o peito, a meio centímetro do coração. “Caí no chão e pensei que era hora de morrer.” Esse e outros momentos carregados de tensão foram revelados pela primeira vez após 30 anos.
Alexandre de Paula Dias abriu o jogo sobre os momentos vividos no único sequestro com pedido de resgate na história de Santa Cruz do Sul. Ele aceitou participar do podcast Papo de Polícia, produzido pela Gazeta Grupo de Comunicações, e contou detalhes até então inéditos, que estão na reportagem que marca o fim da série O sequestro – 30 anos, sobre o caso que fixou o primeiro ponto na ficha criminosa de Teco.
Uma volta para casa a pedido dos pais
Em 78 horas, entre as 21 horas de 3 de maio e as 3 horas de 7 de maio de 1994, Zambinha permaneceu vendado, algemado e acorrentado em uma árvore, no cativeiro montado pelos sequestradores na localidade de Cava Funda, interior de Sinimbu, até ser baleado no peito e jogado em uma lavoura, onde permaneceu agonizando por horas até ser salvo.
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Entre os bastidores revelados no podcast Papo de Polícia, que pode ser conferido na íntegra no YouTube do Portal Gaz, Zambinha comentou o drama que sofreu. Logo após falar sobre o transporte até o local e o disparo, ficou surpreso em saber que não havia morrido. Com dor e sangramento, fingiu-se de morto. Mas a tensão em sua cabeça não parava. Ele revelou que na época do crime e mesmo depois nunca concedeu uma entrevista sobre o caso.
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Primeiro pela gravidade da ocorrência e receio de eventual represália. Depois, porque a família resolveu tirá-lo da região, para evitar ser visto. “Logo depois do final do processo, ainda em 1994, fui morar nos Estados Unidos. Na sequência, em 1995, voltei pra residir em Porto Alegre e fiquei mais afastado. Agora, depois de 30 anos, é a primeira vez que falo abertamente assim, em uma entrevista, porque acredito que esse é o momento”, disse Alexandre, que admite ter contado pedaços das histórias em alguns churrascos para amigos mais próximos.
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Atualmente com 51 anos, Zambinha tem uma filha de 10 e mora com ela e a esposa em Porto Alegre. Na capital gaúcha, trabalha na assessoria e captação de clientes para uma empresa de gestão empresarial que atua nas áreas jurídica, fiscal e tributária. Nas horas vagas, o faixa-preta dá aulas de jiu-jitsu na academia de amigos.
Além dos irmãos Luciano e César, falecidos em acidentes de carro em 1986 e 1992, com 17 e 27 anos, respectivamente, seu pai, Carlos Mariano Flores Dias, morreu em 2016, vítima de leucemia, aos 76 anos. Já sua mãe, Selma Conceição de Paula Dias, hoje com 85 anos, mora com familiares no município de São Sebastião do Caí.
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Segundo Zambinha, o drama resultante das mortes dos irmãos foi o principal motivo para morar em Santa Cruz em 1994. “Eu tinha ido morar em Porto Alegre porque fui estudar na Unisinos, mas meu pai me pediu para voltar. A mãe estava nervosa por eu pegar a estrada todo fim de semana, depois dos acidentes com meus irmãos”, contou.
“É SEQUESTRO!”
Na chegada de volta à cidade, em 1994, Carlos Mariano Dias deu a ordem: Zambinha não era para trabalhar na empresa Pioneer, onde ele era diretor de Marketing, pois os dois irmãos falecidos participavam de atividades na multinacional quando morreram em acidentes. O pai não queria correr o risco novamente. Então, Zambinha se matriculou no curso de Economia na Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) e passou a trabalhar em uma agência de viagens.
“No dia do sequestro, eu queria ir para o intervalo da aula antes da saída de todo o pessoal, e não pegar fila para comprar alguma coisa para comer. Mas tinha esquecido a carteira dentro do carro. Quando fui pegar no estacionamento, me renderam.” Tempos depois, Zambinha descobriu que aquela era a terceira tentativa de sequestrá-lo.
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“Em outras duas anteriores eles já tinham tentado, mas como eu estava dando carona pra alguém, uma vez na Unisc e outra em torneio de tênis, eles não me pegaram”, disse. Alexandre até acreditou que se tratava de seu amigo André Black, fazendo uma brincadeira. “Achei que era ele, mas quando vi as armas apontando pra mim, larguei tudo.”
Ele, então, largou a carteira e disse aos criminosos que poderia assinar os cheques para eles, mas os bandidos negaram e mandaram que entrasse em seu Volkswagen Gol. No caminho, ao passar em frente à lancheria da Unisc já lotada, pensou em se atirar para fora do carro e pedir socorro.
No entanto, em uma fração de segundo, temeu um eventual disparo que poderia acertar sua coluna e deixá-lo paraplégico. “Pensei que então eles me levariam até algum lugar, pegariam o carro e me largariam. Só que no caminho, me mandaram colocar o capuz e disseram: ‘Fica frio! É sequestro!’.” Foi então colocado no porta-malas e levado até a divisa entre Rio Pardo e Pantano Grande.
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No trajeto, ouvia os sequestradores afirmarem saber que ele era filho de um grande empresário da cidade. “Vamos ver quanto tu vale”, disseram. O Gol foi abandonado na divisa dos dois municípios, estacionado a 300 metros da BR-471. Dali, em outro veículo, os bandidos e Zambinha partiram para o cativeiro, que ficava em uma área serrana na localidade de Cava Funda, interior de Sinimbu.
“Obrigado, delegado Menezes”
Na entrevista no podcast, Zambinha confirmou que conhecia Teco. “Eu já o tinha visto. Santa Cruz tinha poucos lugares para ir na época, então chegamos a frequentar os mesmos ambientes em algum momento. Ele tinha amigos em comum com uma namorada minha da época, mas nunca tínhamos conversado”, afirmou. Disse ainda que ficou surpreso ao saber, durante a investigação, que era ele o principal mentor do sequestro.
Ao longo dos anos, ele admitiu viver com certo receio, em virtude de saber que Carlos Ivan Fischer, após se tornar um dos chefões dos assaltos a carros-fortes, vivia escapando da prisão. Ao comentar o tiroteio entre a Polícia Civil e o bando do criminoso em 6 de junho de 2014, na ERS-400, em Sobradinho, que resultou na morte de Teco, Zambinha fez um desabafo: “Obrigado, Menezes. Tu me deu noites mais tranquilas de sono”, disse ele. Referiu-se ao delegado Luciano Menezes, que coordenou a ofensiva contra o bandido uma década atrás.
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“Eu tinha um amigo policial que sempre me avisava quando prendiam ele e sobre as fugas. Eu sabia que, querendo ou não, tinha mudado a vida do cara depois do sequestro. Era uma testemunha, pra ele eu tinha ‘ferrado com ele’, por isso podia querer se vingar. Eu sempre tinha essa apreensão. Então, quando ele morreu, foi um momento em que saiu um peso das minhas costas”, revelou Zambinha.
Ainda contou o episódio em que, sem saber, ficou próximo de outro autor confesso do crime, cerca de cinco anos após o fim do processo, em um rodeio, juntamente com alguns amigos. “Passado um tempo naquela noite, eles disseram para irmos embora. Não tinha entendido o porquê, pois estava legal ali naquele piquete. Mas daí me perguntaram: tu não viu quem estava ali? Era o Luciano, que também foi condenado pelo crime”, relembrou ele.
Quase fuga do cativeiro e as digitais na lataria
No cativeiro, Zambinha ficou em um declive, com os pés junto a uma árvore, algemado e acorrentado. Ao longo dos dias, pediram-lhe que escrevesse cartas nas quais mentia, dizendo ser o culpado do sequestro, que estava devendo. Em uma das noites, parte do bando deveria voltar ao cativeiro até as 22h30.
“O bandido que estava comigo lá me disse que se não chegassem até esse horário, era porque algo deu errado e eu seria libertado. Aí eu falei para então irmos embora, que eu desceria rolando no barranco e ele iria para cima.”
Zambinha ficou perto de ser solto. À meia-noite, quando o sequestrador no cativeiro estava quase desistindo, o restante do bando chegou. No outro dia, houve a prova de vida na edição da Gazeta do Sul. No Papo de Polícia, Zambinha revelou qual era a pergunta de seu pai, para ele responder na edição do jornal. “Ele queria saber onde havíamos estado no domingo anterior, algo que só eu e minha família sabíamos. Escrevi que tínhamos ido na casa da avó Abrelina, em Porto Alegre, no aniversário.”
No cativeiro, Zambinha não consumiu comida, apenas um pacote lacrado de bolacha recheada e água mineral em garrafas plásticas fechadas, pois tinha medo de envenenamento. Em razão do frio, recebeu um casaco emprestado por um sequestrador. Por baixo da venda, enxergou alguns indícios, como a etiqueta da loja Keller Niedersberg, que foi a principal pista na investigação. Mas ele viu mais coisas.
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“A lona que nos cobria era do Exército. As sacolas com os alimentos eram dos mercados Ebert e Nacional. Isso mostrava que os autores eram de Santa Cruz.” Outro fato jamais revelado por Alexandre foi que ele pensou na possibilidade de ter o carro em que havia sido levado pelos sequestradores periciado.
“Isso ninguém sabe. Quase na madrugada de sábado, quando fui levado no porta-malas do carro com a promessa de ser solto porque teriam recebido o dinheiro do resgate, coloquei minha mão em tudo que fosse sólido, na lataria, para que se um dia fossem analisar, minhas digitais estivessem ali.” Minutos depois, descobriria a mentira sobre ser solto, e levaria um tiro no peito.
Entre a vida e a morte, na lavoura de arroz
Depois do tiro que levou, ainda de capuz, Zambinha escutou os sequestradores avaliando a possibilidade de desferir mais um disparo contra ele. Foi quando ouviu outra das frases que marcaram sua vida para sempre. “Esse aí já era”, disse um dos criminosos. Com dor, fingindo-se de morto, foi empurrado com os pés por um dos bandidos.
“Aí tiraram meu capuz, e eu nem respirava. Vieram dois, me pegaram pelos pés e me balançaram para jogar. Ali vinha tudo na mente. Só o que faltava eu ter sobrevivido até aquele momento e eles me jogarem numa pedreira, em uma altura imensa, e eu morrer na queda.” O desespero era enorme.
Por fim, foi jogado em uma lavoura de arroz às margens da BR-153, em Cachoeira do Sul.
Ferido e perdendo sangue, Zambinha tentou subir o barranco para chegar à rodovia, mas não teve forças. Passou com altos e baixos por mais de dez horas no local, até crianças que estudavam em uma escola agrícola avisarem a professora sobre “um bicho morto” que tinha na lavoura. O capataz de uma fazenda foi até o local e o tirou de lá.
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“Quando subi, me deu uma convulsão e caí de novo lá embaixo. Ele teve que me buscar mais uma vez. Outro problema é que ele tinha uma deficiência mental, o que fazia com que não me entendesse bem. Eu dava minha carteira, dizia que tinha sofrido um tiro, e ele me devolvia, que não queria minha carteira.”
Por volta de meio-dia de 7 de maio de 1994, a polícia chegou. Zambinha foi levado às pressas ao Hospital de Caridade e Beneficência (HCB) de Cachoeira. O diagnóstico não era bom.
O tiro no peito cauterizou a membrana externa do coração. A bala ricocheteou dentro do corpo e destruiu o pulmão esquerdo. Havia coagulação, e a perda de um litro e meio de sangue fez com que o pé já apresentasse sinais de rigidez cadavérica.
“Por pouco não perdi o pé.” Para completar, o lugar onde ele tinha sido jogado, apesar de não haver pedras ou algo que causasse machucados, afetou o organismo. “Era bem naquela parte da lavoura onde fazem a calda, com defensivos agrícolas, o que podia gerar infecções graves”, explicou Zambinha. Apesar de toda a situação, depois da cirurgia, o jovem de 21 anos recebeu o pai. “Ele era um cara durão, não era de chorar. Mas parece que estou vendo ele entrando no quarto, com os olhos lacrimejando. Com as mãos tremendo, me deu um beijo na testa e disse ‘meu filho, tu tá vivo. É bom te ver’”, recordou.
Já transferido ao Hospital Santa Cruz, Zambinha pôde estar ao lado de dona Selma no Dia das Mães, em 8 de maio de 1994. Mais tarde, soube de um momento traumático para seus pais, ocorrido durante as horas em que ficou na lavoura. “Minha mãe me contou que na madrugada em que meu pai voltou da ponte com a mochila do dinheiro, que os bandidos não tinham encontrado, ele entrou pela porta de casa, virou para ela e disse: ‘Te prepara que nós perdemos nosso último filho’.”
E se acontecer de novo?
No Papo de Polícia, Alexandre ainda contou a origem do seu apelido. “Um dia vimos na TV uma tribo da Zâmbia, os zambiluz, e meu irmão Luciano era muito parecido com um dos que apareceram ali. Aí todos começaram a chamar ele de Zâmbia, que depois ficou Zamba. Como eu era o irmão mais novo, fiquei sendo o Zambinha”, contou ele, que em Porto Alegre é conhecido pelo apelido de Buda.
Voltando ao passado, em 6 de julho de 1994, 64 dias após o sequestro, o inquérito policial assinado pelo delegado Lionir José Lemes da Silva, com 700 páginas e contendo as provas obtidas na investigação e o depoimento de 68 testemunhas, foi enviado à 1a Vara Criminal de Santa Cruz do Sul. A Polícia Civil indiciou Teco; seu primo Luciano, de 21 anos; um soldado da Brigada Militar, de 30; e um vendedor de carros, de 25.
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Eles responderam pelos crimes de extorsão mediante sequestro, tentativa de homicídio, formação de quadrilha, porte ilegal de arma de fogo e infração ao Código Brasileiro de Telecomunicações. O promotor Júlio Cesar Meira Medina foi o autor da denúncia pelo Ministério Público. Em 30 de novembro de 1994, Teco foi condenado a 18 anos de prisão, e Luciano pegou dez anos. Os outros dois indiciados foram absolvidos de todas as acusações.
No corpo de Zambinha, é possível ver a cicatriz do tiro no peito. Nos pulsos, há marcas das algemas. Em termos psicológicos, garante ter superado o episódio. “Tento levar minha vida normal, de forma cuidadosa e zelosa. O jiu-jitsu também me deu confiança para encarar a vida.” Ele lembrou que passou a ser uma pessoa mais prestativa em apoio nos casos de emergência, como acidentes, por exemplo. “Sempre paro para ajudar todo mundo.”
De tudo que viveu, pode garantir uma coisa, para o resto de sua vida: nunca mais passará por um episódio como esse, vivido há 30 anos. “Já avisei meus familiares que se um dia acontecer uma coisa parecida, a situação vai ser resolvida na porta do carro, pro bem ou pro mal.”
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