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A dor de outros te dói?

Ainda no início da pandemia, quando nos restava a ilusão de que seriam apenas poucas semanas nesta loucura que já dura dois anos, me rendi aos pedidos carinhosos, mas constantes da minha noiva para assistir a Grey’s Anatomy com ela. Avessa a sangue nas telas e mais ainda aos procedimentos cirúrgicos que certamente apareceriam, fiz um acordo: assistiria à série, desde que pudesse fechar os olhos nas cenas mais “pesadas” e ela me avisasse quando as coisas tivessem aliviado novamente. O que encontrei, ao longo de 17 temporadas da produção, no entanto, me fez querer manter os olhos bem abertos.

E não se engane: continuo fazendo caretas de desgosto todas as vezes em que as cirurgias são o primeiro plano da cena, agoniada de ver os corpos sendo cortados e manuseados, mesmo que para cura e mesmo sabendo que são, obviamente, falsos. O que tem me mantido de olhos muito abertos – e ouvidos atentos e olhos marejados – são as discussões sociais tão delicadas trazidas ao longo da série, de forma primorosa, crítica e, ouso dizer, brilhante. Cirúrgica, até.

Racismo, LGBTIQIA+fobia, ética profissional, acesso à saúde, pobreza, vulnerabilidade social, porte de arma, violência doméstica, tráfico de pessoas, estupro, abuso, truculência policial. Essas são só algumas das maldades deste mundo que são retratadas lindamente em cenas e mais cenas de Grey’s. Em um mundo ideal, as crueldades seriam fictícias, jamais imaginadas na vida real. Infelizmente, muito ao contrário de um mundo ideal, as situações não apenas acontecem longe das telas, mas em proporções assustadoras.

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Muitas das discussões também permeiam Station 19, spin-off de Grey’s Anatomy que retrata os desafios de um batalhão de bombeiros e socorristas dos EUA. A série também é escrita por Shonda Rhimes – mais conhecida como a autora que não tem dó de matar os personagens. Mulher negra, a roteirista, cineasta e produtora de televisão norte-americana faz questão de retratar assuntos complexos e as mazelas da sociedade, sempre com mulheres fortes como protagonistas.

Eu poderia citar inúmeras cenas que me marcaram em longas 17 temporadas de Grey’s, como a em que dois médicos negros sentam com o filho, de apenas 13 anos, para orientá-lo sobre o que fazer ao ser abordado por policiais (manter as mãos na cabeça, não fazer movimentos bruscos, jamais correr). Ou quando todas as funcionárias mulheres do hospital se reúnem para formar um corredor feminino, por onde passaria uma vítima de estupro assustada. Ou quando uma cirurgiã brilhante rebate o pai conservador com trechos da bíblia, em uma discussão sobre a bissexualidade dela. Ou, em Station 19, mais recentemente, quando dois bombeiros negros foram presos com brutalidade ao tentarem salvar duas meninas negras que haviam sido sequestradas.

Ambas as séries não apenas me emocionaram em diversos momentos, mas fizeram doer feridas que nem eram minhas. Aprendi muito sobre racismo nas temporadas mais recentes, quando as produções retrataram o levante após a morte de George Floyd e a pandemia, como um todo. Chorei inúmeras vezes em cenas diversas, que doeram mais fundo considerando o período em que estamos vivendo. Assistir, mesmo que de forma fictícia, à exaustão e dedicação dos profissionais da saúde para combater a Covid-19 foi devastador.

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Sigo aprendendo, entre lágrimas e sorrisos, entre cenas engraçadas e cenas assustadoras, entre realidade e ficção, a sentir a dor do outro. “Não serei livre enquanto alguma mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas”, disse Audre Lorde, uma escritora, feminista, negra, lésbica, pioneira na discussão sobre autocuidado feminino na década de 1980 e uma das precursoras do feminismo interseccional. Vou além: não seremos livres enquanto mantivermos os olhos fechados perante as crueldades deste mundo.

Precisamos abrir os olhos e fazer o que pudermos para ajudar, mesmo que não seja nossa história. Precisamos ouvir as comunidades que sofrem diariamente, com preconceitos e violências diferentes, para aprender o que fazer, entendendo que estamos fora do nosso lugar de fala e aprendendo com quem está. A luta não é só de quem sente a dor. É de todos nós, como sociedade. Por isso, mantenho meus olhos abertos e ouvidos atentos, mesmo que os olhos marejados dificultem a visão. Abra os olhos e me diga: a dor de outros te dói?

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Heloísa Corrêa

Heloisa Corrêa nasceu em 9 de junho de 1993, em Candelária, no Rio Grande do Sul. Tem formação técnica em magistério e graduação em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo. Trabalha em redações jornalísticas desde 2013, passando por cargos como estagiária, repórter e coordenadora de redação. Entre 2018 e 2019, teve experiência com Marketing de Conteúdo. Desde 2021, trabalha na Gazeta Grupo de Comunicações, com foco no Portal Gaz. Nessa unidade, desde fevereiro de 2023, atua como editora-executiva.

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