Rádios ao vivo

Leia a Gazeta Digital

Publicidade

FOLHETIM

A casa na água

Surpreende encontrar, na região serrana, uma casa dentro de um lago. “Vamos até lá”, saltita Líris, em sua vivacidade juvenil. Eva e Cristian aproveitam para trocar um sorriso. De mãos dadas, acompanham a menina em sua corrida em direção ao lago. A multidão de troncos e criaturas não se faz de rogada. Todos rumam para aquela construção, em visível abandono.

Eis que chegam à margem do lago de suaves águas ondulantes. Como acessar a casa, lá adiante, no meio do lago? Enquanto os troncos cochicham algum plano, Luna, como se conhecesse o lugar, salta sobre pedras, quase submersas, e orienta a passagem. Chegam à casa. Prédio de portas, janelas e teto há muito desfeitos. Construção em ruínas, de paredes antigas e espessas, do mesmo arenito das fundações do casarão tão conhecido por Líris, Eva e Cristian.

LEIA TAMBÉM: Ancião selvagem

Publicidade

Uma abertura em arco sinaliza a entrada. O piso, igualmente de arenito, um pouco mais elevado do que o nível das águas do lago, viabiliza o acesso às peças internas. Todavia, a solidez do piso e das paredes transmite uma sensação de instabilidade. “Parece que a gente está flutuando”, estranha Líris. “Também sinto isso. E como é grande aqui dentro… Cabe um mundo nesta casa”, considera Eva.

Cristian lembra dos tempos do sanatório, onde também o universo encontrava abrigo no casarão: “Não sei se é porque a casa já não tem janelas nem teto, mas a impressão é de que não estamos sozinhos aqui. Quem será que morou aqui, quantas gerações passaram por esta morada? O que aconteceu com essas pessoas?”

Nisso, uma senhora, acompanhada por uma criança, sai de um dos possíveis quartos e se junta ao grupo no centro da sala. Eva, aos sobressaltos, não contém as lágrimas. Abraça a mulher e puxa Líris para junto de si: “Líris, esta é Irene, tua mãe”. Olha para Irene e aconchega: “Irene, esta é Líris, tua filha!”. A amorosidade se faz plena. Ao momento de instantes eternos a criança se apresenta: “Também quero ficar com vocês.”

Publicidade

LEIA TAMBÉM: Verde novo: Eva lembrada mãe de Líris

Eva não se contém: “É você, a criança que dormia naquela enorme casa que visitamos há uma semana atrás?” Não havia dúvida. Era a mesma criança, aquela que dormitava na moradia do agressor que abatia árvores nativas no “preparo do terreno”, ao que tudo indica para implantar algum loteamento invasivo.

“Não poderia viver ao lado de quem corta árvores”, explica a criança. “Mas como chegaste até aqui?”, pergunta Líris. “Foi o pombo. O avistei na janela do meu quarto. Senti que ele me mostraria o caminho para onde ir. E ele mostrou. No trecho, encontrei Irene e, agora, vocês.” “Assim, como as cobras e abelhas fizeram conosco”, pondera Eva.

Publicidade

Eva e Irene celebram o reencontro. Conversam sobre os trabalhos manuais do tempo do sanatório. Irene abraça a bonequinha, de olhinhos profundos, que fizera para sua filha Líris. Cristian, respeitosamente, se recolhe em silêncio fervoroso. Impossível não recordar das imensas dificuldades, dos tratamentos nem sempre adequados e do angustiante sofrimento dos internados no sanatório; porém, como não reconhecer que, a par dos desencontros e das inadequações, também aproximações, curas e bem-querer se fizeram nascentes?

LEIA TAMBÉM: Wenzel: “eu me chamo Líris”

O velho médico, por ele próprio identificado como um “ancião selvagem”, se emociona. Por suas retinas desfilam tempos transitados, bem mais antigos que os já vividos. Ao aparente balançar da casa, acentuado pelo marulhar das pequenas ondas que contornam a construção, criaturas de todos os tempos vêm e vão, se apresentam e se recolhem.

Publicidade

Um bater de asas interrompe as imagens que transitam pela casa. “Vejam o pombo; foi ele que me um trouxe até aqui!”, aponta a criança. Inquieto, o pássaro desenha pequenos círculos sobre o prédio despojado. Volta ao parapeito da abertura que descortina a paisagem a noroeste. Ao lado do cardeal, o pombo insinua partida. Para onde? Eis que surgem o cervo e Luna, a cachorra de vistosa pelagem terracota, que não titubeia: sabe por onde seguir. Um sinal de celular soa imprudente. “Esqueci de desligar”, justifica a criança. O pombo arrulha liberdade.

LEIA OUTROS TEXTOS NA COLUNA DE WENZEL

Publicidade

Aviso de cookies

Nós utilizamos cookies e outras tecnologias semelhantes para melhorar sua experiência em nossos serviços, personalizar publicidade e recomendar conteúdos de seu interesse. Para saber mais, consulte a nossa Política de Privacidade.