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Uma Maria centenária

A tecnologia trouxe algumas facilidades, entre elas conhecer pessoas. Não, a protagonista desta história não é adepta das mídias digitais, mas foi em uma postagem compartilhada justamente na internet que ela ficou conhecida. Maria Candida da Silva, vó Maria, soprou as velas do bolo de aniversário com três dígitos. Sim, 106 anos de vida. Para conhecê-la, o contato foi feito com dois netos, os irmãos Tais e Igor. A equipe de reportagem da Gazeta da Serra então se deslocou até a casa onde dona Maria reside há alguns anos, na entrada de Travessa Karnopp, divisa entre Lagoa Bonita do Sul e Passa Sete. Quem mora na residência ao lado é o filho mais novo, Nori Rodrigues da Silva, 53 anos. A esposa dele, Lizete da Silva, 46 anos, foi quem nos recebeu e auxiliou na conversa com dona Maria.

Sentada em frente ao fogão à lenha, lúcida, só convive com um presentinho ingrato da idade avançada: dificuldade para ouvir. Mas a fala mansa, as expressões faciais e nos gestos permitem entender o que ela tem para contar. Nascida em 29 de agosto de 1915, em Serrinha Velha, hoje interior de Segredo, morou em alguns pontos no interior de Passa Sete, como a Costa do Rio e na localidade de Murta, onde passou boa parte da infância. De lá, lembra-se de frequentar por pouco tempo a escola, não chegando a ser alfabetizada. “O pai tirava nós do colégio pra ir pra roça”, contou.

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O trabalho na lavoura sempre esteve presente na vida da família, auxiliando desde pequena nos afazeres. Recorda-se de serem entre nove irmãos e que rodaram bastante pelo interior. Dos antecessores, relata que a avó era considerada “bugre”. “Puxei pela vó, era baixinha”, acrescentou dona Maria. Com ela iniciou a tradição de confeccionar balaios, cestos, peneiras, gamelas, o que o pai passou adiante e ela aprendeu. “Passei bastante trabalho. A gente trabalhou muito, porque primeiro partiu a mãe e depois o pai”, recordou. Com 15 anos a jovem saiu de casa e teve o primeiro companheiro. Décadas mais tarde, casou-se pela segunda vez. Das duas uniões, resultaram oito filhos, cinco vivos e três já falecidos.  Segundo ela, todos os filhos foram primeiro batizados em casa e, “depois de grandes, na igreja”.

Dos anos passados, guarda até hoje muitos costumes, entre eles os chás, ao que se refere como “remédio do mato”, especialmente o chá de mate, acrescentando que tratavam das enfermidades em casa. “A gente não sabia o que era remédio. Curava em casa”, disse a idosa. Os partos também eram feitos nas residências, algumas vezes com auxílio de parteiras. O trabalho na roça era constante. Para se ter uma ideia, um dos filhos nasceu na lavoura. “Nasciam em casa. Teve um nenê que nasceu na roça. Trabalhando ganhava mais ligeiro”, disse dona Maria, mostrando com as vestes como fez para enrolar a criança nos panos. Quando retornava ao serviço, as crianças iam junto. “Ficavam sentados em uma moita, na sombra. Comprava couro de cabrito e colocava as crianças em cima”, relatou.

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Das lembranças de outrora, a dos namoros que precisavam aprovação dos pais. “Sentava um de cada lado e alguém no meio”, disse. Nos bailes, ela contou que dançavam no chão batido e iam de “chinela”. Também a recordação de que o pai, natural das terras onde hoje fica Lagoão, saia para trabalhar em lavouras distantes e participou da guerra, por um curto período. Tempo o suficiente para que a mãe chorasse até o retorno. “Logo que ele casou, ele teve três meses na guerra”, disse Maria sobre o que a mãe lhe contou. “Ele fugiu porque não conseguia ficar. Ficou uns dois meses no mato até poder chegar em casa”, acrescentou Nori.

Além da confecção artesanal de balaios, outra tradição da família é o benzimento. Dona Maria aprendeu este “dom” com o pai e passou a atender depois de ter se aposentado, já aos cinquenta e poucos anos de idade. Conforme o filho, que pretende seguir os passos, muitas pessoas de cidades próximas e também de longe vieram até a residência dela – e permanecem vindo, agora com mais restrições e cuidados por conta da pandemia. “Vem gente de Porto Alegre para se benzer com ela”, enfatizou Nori. Segundo ele, com muita fé, a mãe já ajudou muitas pessoas.

Nos últimos trinta anos, dona Maria vive em Travessa Karnopp, onde residia com o marido, que faleceu há aproximadamente doze anos. Desde então, mora em uma casa humilde, ao lado de dois filhos, da nora e dos netos. Quando questionada sobre os meios de comunicação, recorda-se que antigamente o contato se dava apenas por cartas. Rádio ela escuta, com certa dificuldade, já a televisão, costuma olhar da porta de casa para a que fica na sala da casa do filho, a poucos passos dali. Conforme Nori, pelo próprio modo de viver, crescida em meio ao mato, ela não gosta de muito barulho.

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Orgulho

O aniversário de 106 anos foi comemorado no fim de agosto, com bolo e velinhas, junto dos familiares mais próximos. “Tava bonita a festa”, disse dona Maria. No próximo ano, quer assoprar as velas novamente e o que espera é “saúde, comer e dormir. Não dá pra fazer mais nada, não posso trabalhar na roça”, enfatizou.

Dona Maria completou 106 anos em 29 de agosto

Para Nori, a mãe é motivo de orgulho. “É difícil quem chegue a esta idade e com lucidez. Ela é tudo para nós. Nosso orgulho. Sempre batalhou. Nunca deixou faltar comida para os filhos, a primeira coisa era a ‘boia’. Até hoje ela fala, ‘se precisar de alguma coisa é só me dizer’. É uma mulher de muita fé”, enfatizou o filho, dizendo que são muitos os ensinamentos, passados também a netos e bisnetos.

Para a nora Lizete, Maria é um exemplo de sogra. “Ela conta para nós que o mundo de agora está bem diferente do tempo dela. Ela trabalhou muito, passou dificuldades. Ela é um orgulho para nós”, destacou. Para a neta, Tais Eduarda da Silva, 21 anos, é uma grande alegria ter a avó com esta idade. “É a alegria da família. Uma pessoa dedicada, carinhosa, disposta, cuida dos bichinhos, faz o próprio almoço e janta. Nessa idade ainda tem essa força, não depende de ninguém para praticamente nada. Para nós, é muito gratificante ter ela. É uma pessoa abençoada por Deus. Sou muito grata em tê-la como vó, sempre dando conselhos e contando sobre sua vida. É gratificante para nós”, destacou a jovem. A diferença de idade entre dona Maria e a neta é de 85 anos.

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Costumes de Maria

E para chegar até esta idade, uma dádiva para muitos, a vovó centenária costuma acordar às 5 horas. O café da manhã, geralmente, é batata doce assada por ela no forninho do fogão à lenha e dois ovos cozidos. Conforme a nora Lizete, dona Maria se alimenta de forma variada, sem restrições. “Batata, mandioca, carne. Faço a boinha e depois vou dormir um pouco”, disse a centenária, dando risada. Já à tardinha, o costume é comer pouco e beber uma taça de vinho. Tomar banho, lavar a roupa e a louça, cozinhar a própria comida, cuidar as galinhas, tudo é feito por ela mesma, que, inclusive, ainda costura “alguma coisinha”, mas sente falta de não conseguir mais praticar o crochê, os quais vendia para enxovais de mulheres da cidade.

Além do cabelo grisalho, que um dia já foi longo e preto, e ela fez questão de mostrar tirando o lenço que o cobria, chamou a atenção que, enquanto lhe fazia às perguntas, sentada em frente ao fogão, a senhora de 106 anos mexia no fumo picado em cima da chapa, ficando evidente a marca do tempo e do trabalho árduo em suas mãos. Ela não esperou muito e acendeu o cigarro de palha, companheiro há décadas. Segundo o filho, Maria também não dispensa uma “cachacinha”. Sem fazer uso de medicamentos contínuos, foram poucas as vezes em que precisou ir ao médico.

Neste contexto de pandemia, dona Maria viu as visitas e as pessoas em busca de benzimento diminuírem. Segundo Nori, em outros momentos ao longo das décadas, especialmente quando a mãe era mais jovem, houve momentos difíceis também. Agora, as duas doses da vacina contra a Covid-19 estão feitas, assim como a da gripe.

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Nathana Redin

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Nathana Redin

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