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ELENOR SCHNEIDER

Pela longa estrada da vida

Para muitas pessoas, tempo de férias inclui andar na Freeway, autoestrada entre Porto Alegre e Osório. Raros são aqueles que, em alguma oportunidade, não caíram em inesperado e estressante engarrafamento. Essas cenas sempre me remetem a dois contos emblemáticos: A autoestrada do sul, de Júlio Cortázar, e O encalhe dos trezentos, do paranaense Domingos Pellegrini.

Júlio Cortázar (1914-1984) é argentino, mas em 1981 renunciou à sua nacionalidade e optou pela francesa em protesto contra a ditadura militar de seu país. Ele integra um extraordinário plantel de autores latino-americanos que vale a pena citar e ler: Gabriel García Márquez, Carlos Fuentes, Mario Vargas Llosa, Ernesto Sábato, Juan Rulfo, Miguel Angel Astúrias, Alejo Carpentier. Esses escritores integram o chamado boom hispano-americano e produzem suas mais importantes obras, principalmente nas décadas de 1960 e 1970. Alguns vão além desse período. Para driblar as duras perseguições e severas censuras, contam histórias fantásticas sob as quais denunciam os desmandos dos abundantes governos ditatoriais que assolaram (e alguns continuam assolando) a América Latina.

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A autoestrada do sul é um dos oito contos da obra Todos os fogos o fogo, publicada em 1966. Num domingo à tarde, milhares de pessoas começam a se deslocar de Fontainebleau a Paris. Numa autoestrada de seis pistas, carros de todas as marcas transportam pessoas de todas as idades e profissões, cada um cuidando da sua vida. Olhar para o lado era desnecessário. Em poucas horas, todos estariam em casa. Afinal, a estrada era excelente e a distância não era tão longa,

Eis que as filas reduzem a velocidade até uma parada completa. Ninguém sabia por que, não havia informação alguma. Liga o carro, anda dois metros, desliga, espera, liga de novo, num anda-e-para sem perspectiva alguma. O olhar indiferente de antes se transforma em necessidade de dialogar, de se aproximar. Desconhecidos se tornam parceiros, primeiro para trocar hipóteses e esperanças, depois para suprir necessidades.

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O trânsito parou completamente. Passou um dia, passaram dois, cinco, e todos ali, sofrendo de calor até frio enregelante. Ninguém estava preparado para tamanho obstáculo. Logo estavam ali seres humanos no meio do caos, com fome, sede, emergindo uma intransferível necessidade de uns ajudarem os outros. O despojamento tornou-se imperativo, não havia espaço para o egoísmo, era preciso compartilhar o mínimo que cada um trazia em seu carro. Lá pelas tantas surgem alguns vendedores de água e algum alimento, cobrando preços exorbitantes, aproveitando-se, como sempre acontece em casos de calamidade pública, do desespero das pessoas. Essa exploração oportunista parece ser inerente a alguns seres humanos. Basta eclodir uma desgraça e eles aparecem e exploram sem piedade.

O conto resume em pequeno universo o nosso comportamento. Enquanto estamos bem, não olhamos para o lado, ignoramos o outro. Agora, quando um inesperado infortúnio se instaura, buscamos em quem está ao nosso lado a esperança de continuar vivendo. Sentindo-se aprisionados, todos desceram de seus automóveis (seu universo pessoal) e juntos discutiram a possibilidade de sobreviver. Reuniram e repartiram o pouco alimento que tinham, dividiram a água escassa, os agasalhos, abraçaram estranhos, socorreram os aflitos, os doentes, todos sem saber a razão daquele engarrafamento.

De repente, o trânsito flui, os carros começam a correr, disparam, cada um começando outra vez um processo de ensimesmamento feroz. As ligações afetivas, criadas nos cinco dias, acabam sumindo com o mergulho na cidade grande.

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