Professor universitário, filósofo, ensaísta, crítico literário, escritor, tradutor: o currículo do santa-cruzense Flávio René Kothe é extenso, e sua obra, composta ao longo das décadas, tornou-se de consulta recorrente nas mais diversas áreas do conhecimento. Em 2025, uma de suas grandes contribuições voltará à cena, o que desde logo pode ser definido como um acontecimento.
Quatro décadas depois do lançamento original, promovido entre 1983 e 1985, então pela editora Abril, a monumental tradução assinada por Kothe, em parceria com Regis Barbosa, e sob coordenação de Paul Singer, para o clássico O Capital: Crítica de Economia Política, de Karl Marx (1818-1883), voltará às livrarias. Agora, quem assume a tarefa editorial é a paulista Ubu. A princípio, a obra deve chegar aos leitores em abril.
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Flávio manifesta satisfação e expectativa diante do relançamento. Na semana passada, recebeu a Gazeta do Sul na casa de sua família, na ala norte da Rua Gaspar Silveira Martins, em Santa Cruz do Sul. Viera à cidade para temporada de descanso na reta final de ano, antes de retornar a Brasília, onde está radicado desde os anos 90. Frisou que se dedicou intensivamente a fazer uma revisão do texto traduzido de O Capital, em preparação para a nova edição.
Obra-prima da crítica voltada à economia e à organização social e política, a obra teve sua primeira publicação em 1867. No Brasil, várias edições chegaram a coexistir, mas a que teve a participação efetiva e protagonista de Flávio Kothe é, até hoje, referencial. Foi um sucesso de vendas, no âmbito da célebre coleção “Os Economistas”.
A mais-valia como essência do capital
Arevisão atenta que fez de sua tradução (na década de 1980, em parceria com Regis Barbosa) do clássico O Capital, de Karl Marx, para a nova edição a ser lançada pela Ubu, permitiu a Flávio René Kothe confirmar, uma vez mais, a atualidade das considerações e das inferências feitas pelo pensador alemão ainda no século 19. “Quem apreendeu a essência do capitalismo foi Marx”, enfatizou em entrevista para a Gazeta do Sul, durante sua recente estada em Santa Cruz do Sul.
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Além da iminência do relançamento desse clássico da economia e das ciências sociais e políticas, Kothe vivencia a expectativa em torno de outra data especial a ser alcançada em breve. Em 2025 vão transcorrer 40 anos desde o lançamento original de um romance alemão que registrou amplo sucesso global, e que Flávio também traduziu. Trata-se de O perfume, de Patrick Süskind, que obteve o mesmo êxito nas livrarias brasileiras, com dezenas de reedições e reimpressões sucessivas pela Record.
A tradução do romance, praticamente em sequência a sua chegada ao mercado na Alemanha e na Europa, ainda envolve uma curiosidade. Para se dedicar a essa tarefa, Kothe fixou-se por algumas semanas em Santa Cruz, e mergulhou na versão do alemão para o português à sombra de uma pereira que então havia no pátio da casa da família, na Rua Gaspar Silveira Martins. “Sim, traduzi todo O perfume aqui em Santa Cruz, na casa dos meus pais”, comenta.
Em paralelo, Kothe dá continuidade a sua produção autoral, o que envolve a revisão, para uma nova edição, de seus volumes teóricos dedicados a uma releitura do cânone literário nacional. O cânone colonial, O cânone imperial e O cânone republicano agora voltam às livrarias pela editora Cajuína.
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Entrevista – Flávio René Kothe, professor e escritor
O senhor já lia muito Marx quando começou a traduzir O Capital?
Sim, eu tinha estudado política no curso de Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs)durante três anos. Então, os grandes clássicos, como República, de Platão; O Príncipe, de Maquiavel, e outros eu tinha lido. Entre eles o jovem Marx, dos Cadernos filosóficos. Esses Cadernos filosóficos também me impressionaram muito. Eu tinha lido já bons pedaços de O Capital. Mas não tinha lido tudo.
E aí eu perdi o emprego na Universidade de Brasília e estava em São Paulo, onde atuara na PUC. Estava no mesmo corredor com o Otávio Ianni [sociólogo, 1926-2004] , o Florestan Fernandes [sociólogo, 1920-1995] e outros sábios. E aí perdi de novo o emprego (risos). O Ianni também foi demitido.
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Nesse tempo o senhor passou a se dedicar às traduções, isso?
Quem me ajudou foi o Florestan, me repassando traduções de Benjamin, de Adorno. Ele organizou uma coletânea com textos básicos de Marx para os 100 anos de morte do autor, em 1983. Fiz aquilo e surgiu o convite para uma equipe fazer a tradução de O Capital, para a Abril, sob supervisão do Paul Singer [economista, 1932-2018]
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O diretor-geral da Abril à época era o José Américo Motta Pessanha [1932-1993], que foi afastado da universidade pelo AI-5 em 1969. O volume da coleção Os Pensadores que ele organizou vendeu em 1972 mais de 100 mil exemplares em duas semanas. Com a anistia, em 1980, ele foi reintegrado ao Departamento de Filosofia da UFRJ, em que lecionou filosofia antiga.
O Jacob Gorender [historiador, cientista social, 1923-2013] me contou que a coleção Os Pensadores, numa época em que havia inflação muito alta e muitos problemas econômicos e sociais, toda vez que eles publicavam um autor de Economia Política tinha picos de venda. Então, resolveram propor uma coleção só voltada para economistas.
E foi o Jacob Gorender quem basicamente propôs essa coleção. Assim como a coleção Os Pensadores, pelo que eu sei, foi proposta pelo Ernildo Stein [filósofo, natural de Santa Rosa] quando ele perdeu o emprego na Ufrgs, cassado pelo AI-5. Aí ele propôs aquilo, indicando inclusive tradutores, quais os textos e tudo mais, o que foi a base para o surgimento da coleção Os Pensadores.
Ou seja, a ditadura, querendo colocar para fora da universidade o pensamento filosófico, conseguiu provocar que a filosofia fosse para as bancas de jornal. E apressou essas traduções todas. Apressou, e com bons tradutores.
O que O Capital representa para a vida do senhor, de intelectual?
O Capital é um livro clássico, a melhor interpretação que se tem de um modo capitalista de produção. Fazendo essa revisão agora, a gente começa a perceber melhor certos pendores do Marx. Por exemplo, ele era contra o capital especulativo. Pois ele diz que a tendência do burguês é ser empresário, é ser investidor, é ele mesmo produzir coisas. Não viver às custas dos outros. Então, isso é bastante recorrente nele. Ele admirava o empreendedor.
O Capital não são só esses três volumes, tem mais dois. E era para ter 20 volumes, inclusive uma estética. Havia anotações do próprio Marx sobre essa estética. Fiz a tradução de vários desses textos num livro meu, Fundamentos da Teoria Literária. Porque o Marx partia de uma coisa, de que você tem dois tipos de produção artística. Aquela que se esgota no momento da sua produção, como uma encenação teatral, a execução de uma música; e aquelas outras produções artísticas que redundam num quadro, numa escultura, uma coisa que fica.
Marx esclarece muito como funciona o modo capitalista de produção. Estava mais preocupado em fazer uma análise de como eram as coisas, do que simplesmente qualificar de bom ou mau. É também um tipo de disciplina intelectual de que as coisas são como elas são e a gente tem que vê-las como tais.
Como será a edição de O Capital a sair pela Ubu? No mesmo formato da que saiu pela Abril nos anos 80?
Na edição da Abril, saiu em cinco tomos. Mas a edição clássica alemã é em três tomos, dessa parte. Então, agora vai sair em três tomos, e vai corresponder à edição alemã. Que seria, digamos, o corpus inicial de O Capital, ao qual depois Marx deu acréscimo a outras partes. Ele tinha muitas anotações. Por exemplo, essas teorias da mais-valia eram anotações que ele fazia de outros autores, e os comentários que ele foi fazendo em torno disso.
Mas essa edição contempla a edição original, dos três volumes clássicos de O Capital. Porque Marx, na verdade, ele como que escreveu de trás para frente, né? Quer dizer, ele fez aqueles outros volumes, tinha coisas que não teve tempo de desenvolver, como a estética. Mas ele escreveu para publicar, deu uma versão e autorizou só o primeiro volume. Ele só viu publicado esse primeiro, em vida. O segundo foi feito, eu acho, pelo Engels. Mas a segunda edição do primeiro volume saiu antes da morte dele.
Como fora estabelecido o processo de tradução, na década de 1980, inclusive em tomadas de decisão? Como foi essa força-tarefa?
O Paulo Singer ficou encarregado de coordenar a equipe. E, obviamente, também o Jacob Gorender, que tinha organizado a coleção. Havia um diretor da coleção toda, dessas coleções lá na editora Abril, um professor de filosofia que tinha sido cassado na Universidade Federal do Rio, que tinha sido acusado de ser comunista e nunca pertenceu ao Partido Comunista. Mas, em todo caso, havia gente que sabia o que estava fazendo. E os tradutores já tinham sido, vamos dizer, pinçados. A gente fez umas 40 ou 50 reuniões de tarde inteira, prevendo a tradução integral, obviamente, a partir do original em alemão. Porque havia uma tradução na época que foi considerada muito ruim por Paulo Singer, Jacob Gorender e outros. Pediram para fazer uma edição revisada, e o autor não aceitou. Aí decidiram fazer uma tradução própria.
Havia muita complexidade envolvida?
O principal era estabelecer eixos condutores. Então, por exemplo, os conceitos de Mehrwert, Mehrprodukt, Mehrarbeit.. São os condutores. O problema é que Mehrwert foi traduzido como mais-valia. E a rigor não seria, porque seria mais-valor ou valor-a-mais. Veio do francês plus-value. E aí a gente achou que estava tão consagrado que não dava para mexer. O Paulo insistiu na questão de a gente manter o fio-condutor desses termos básicos.
E todos que fossem participar tinham de obedecer essa linha. A gente acabou optando por mais-produto e mais-trabalho. É uma tradução literal, porque se você traduz por trabalho excedente, fica parecendo trabalho excessivo. E não é esse o sentido de Marx. Os termos foram, digamos, tendo outro tipo de conotação: Mehrprodukt, produto excedente. Não, é produto que excede. Mas, claro, excede aquela dimensão do que foi pago. Marx nunca quis dizer que esse a mais não deveria ser produzido. E esse era um problema político muito grande. Que é a questão da produtividade.
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Era um assunto bastante sério?
Isso, muito sério nos países do socialismo, vamos dizer; soviéticos, vamos chamar assim. Não só a Rússia, mas também os satélites, onde havia uma espécie de moralismo em que o trabalhador que produz determinada coisa deveria receber de volta o todo daquilo em forma de salário. O problema é que se você não retirar uma parte disso, e não fizer investimentos de capital, você não vai ter renovação das fábricas, não vai ter tecnologia nova… O problema do termo excedente é que ele fica ecoando excessivo. E onde é que você devia ter parado de trabalhar, para não ser explorado? É bem simples, sabe?
Então a gente preferiu uma tradução literal: mais-produto, mais-trabalho. E daí mais-valor. E mais-valia. A partir desses conceitos, passamos a discutir quais eram os critérios gerais de tradução. Na primeira edição, eu tinha proposto que a gente fizesse discussão teórica. Como os outros eram economistas, e eu era teórico literário, fiz apresentação dos critérios de tradução.
O que envolve o problema da equivalência dos termos de uma língua para a outra. Muitas pessoas acreditam que as línguas dividem a realidade do mesmo modo. E a gente percebe que a realidade é dividida de modos diferentes. Mas qual é o critério? Como vai diferenciar? Geralmente é em função do fazer coletivo daquela comunidade. O que procurei apresentar é que não havia nenhuma equivalência exata, nenhuma desequivalência; havia um critério desses processos todos.
A partir da releitura e da revisão que acaba de fazer do texto, o senhor entende que as reflexões de O Capital continuam tendo mantida sua plena atualidade?
Sim, porque a estrutura básica do processo capitalista continua sendo basicamente a mesma. Então, quem apreendeu essa essência do capitalismo foi o Marx, em O Capital. Claro que ele poderia ter desenvolvido várias outras coisas se tivesse tido condições para isso. Porque Marx era bastante pobre, e estava no exílio na Inglaterra.
Então, sobrevivia escrevendo artigos para jornal e também com a ajuda que o Engels deu para ele, vendeu a fábrica do pai e também ajudou o Marx nos momentos necessários.
Marx tem uma passagem em que diz: nunca ninguém escreveu tanto sobre dinheiro tendo tão pouco. Ele tinha forte formação filosófica, tendo Hegel por referência. Foi um grande estilista. Então, quando você vê por que ele usa tal e tal termo e não outro, sempre tem uma boa lógica linguística para a coisa toda. E, às vezes, tem citações indiretas ou diretas. Ele era um homem muito culto.
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