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Conheça a história de fé e resistência da comunidade negra em Arroio das Pedras

Foto: Rafaelly Machado

É comum encontrarmos localidades com mais de um templo de fé, geralmente dedicados a diferentes religiões ou padroeiros. No entanto, na comunidade de Arroio das Pedras, em Rincão dos Pretos, no interior de Rio Pardo, há uma situação única no Brasil: o local abriga duas igrejas católicas, lado a lado, ambas dedicadas à mesma padroeira, Nossa Senhora da Imaculada Conceição, cuja festa em sua homenagem será celebrada neste domingo, 8.

A explicação para a existência de dois templos, separados por menos de 20 metros, remonta à época de sua construção. Inicialmente, foi erguida uma igreja para a comunidade negra. Posteriormente, os brancos decidiram construir a sua própria. A Gazeta do Sul visitou a Comunidade Quilombola Rincão dos Pretos nesta semana, oficialmente reconhecido como quilombo em 2004 pela Fundação Cultural Palmares. Essas terras foram doadas, no século 19, por Jacinta Ana Maria de Jesus de Souza aos seus 87 escravizados.

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O quilombo está localizado a cerca de 20 quilômetros do centro de Rio Pardo. O acesso se dá pela RS-403, seguido de uma estrada de chão que começa onde o asfalto termina. Depois, é preciso percorrer mais alguns quilômetros até chegar às duas igrejas, situadas em um ponto elevado e de fácil acesso.

Dois templos que dividiram a celebração da comunidade 

A comunidade conhecida por suas duas igrejas antigamente era chamada de Rincão do Guabiju, e hoje oficialmente é denominada de Arroio das Pedras. O povoado, no interior de Rio Pardo, fica em Rincão dos Pretos. Ali estão os dois templos, um ao lado do outro: um pertencente aos descendentes de escravizados e outro aos brancos.

A presidente do quilombo, Joelita David Bitencourt, 53 anos, conta que na época da escravatura a fazendeira Jacinta Souza era proprietária de uma grande quantidade de hectares do rincão e mantinha um bom relacionamento com seus 80 escravos. Antes de falecer, Jacinta doou parte de suas terras aos escravizados e a outra parte a uma sobrinha. Além disso, ela ensinava os negros a rezar e a estudar a Bíblia católica.

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“Aqui, onde hoje está a igreja dos negros, foi fincada uma cruz de madeira, que deve ter mais de 200 anos e permanece dentro da igreja. Esse foi o marco inicial da nossa comunidade. Ao redor dessa cruz, os escravizados se reuniam para rezar”, explica Joelita, descendente desses escravizados, que ainda reside no local.

De acordo com o livro Rio Pardo 200 anos: uma luz para a história do Rio Grande, publicado em 2010 pela Gazeta, havia no terreno uma cerca separando os dois templos: a Capela Nossa Senhora Imaculada Conceição da Bela Cruz, dos negros, e a Igreja da Imaculada Conceição, dos brancos.

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Na década de 1960, o padre Orlando Pretto, pároco de Rio Pardo entre 1967 e 1988, preocupou-se com essa divisão. Ele sugeriu a construção de uma capela única, localizada próximo à estrada para Cachoeira do Sul, para unificar a comunidade. Contudo, a proposta foi rejeitada, pois a criação de uma terceira igreja poderia levar ao domínio da comunidade pelos brancos e à perda da referência histórica dos negros.

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A cerca de arame farpado que dividia as igrejas foi removida em 1968, simbolizando o fim da segregação física. No entanto, as celebrações religiosas continuaram separadas, com os negros frequentando sua igreja e os brancos a deles, sem que um grupo entrasse no templo do outro.

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O desmonte da cerca foi o primeiro passo rumo à integração. Dois anos depois, em 1970, as duas comunidades começaram a realizar festas simultâneas, emitindo um convite único à população, embora cada grupo mantivesse seu evento em pavilhões separados. Apesar disso, o processo de aproximação avançava gradativamente. 

Em 1972, a procissão da Imaculada Conceição, padroeira de ambas as igrejas, passou a ser realizada de forma conjunta, saindo da igreja dos brancos e terminando na dos negros. Já em 1975, foi estabelecida a alternância de missas mensais, celebradas ora na igreja dos negros, ora na dos brancos, com a participação mútua de ambas as comunidades. Essa prática seguiu até o ano 2000.

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Com o tempo, outros avanços consolidaram a união. Neste domingo, por exemplo, a festa de Nossa Senhora Imaculada Conceição será realizada em um coreto, a partir das 10 horas, montado entre os dois templos, reunindo negros e brancos em celebração conjunta da fé. Após a missa, a confraternização incluirá um almoço, ainda em sedes separadas, mas com o compartilhamento da venda de alimentos e bebidas.

Chama a atenção que existem diferenças entre os dois templos: a igreja dos negros é mais modesta, menor e não possui torre e sino, ao contrário da igreja dos brancos, que dispõe dessa estrutura.

Libertação

Assim como em todo o território brasileiro, os escravizados desse quilombo de Rio Pardo foram libertados após a sanção da Lei Áurea, assinado pela Princesa Isabel em 13 de maio de 1888. O Brasil foi o último país da América Latina a abolir a escravidão.

Neste domingo, será realizada na comunidade a tradicional festa de Nossa Senhora Imaculada Conceição

“Sem a igreja, nossa história seria apagada”

A presidente do quilombo, Joelita David Bitencourt, é uma das entusiastas de seu povo, sempre em busca de avanços e direitos. Além de comandar a comunidade, ela é mãe, avó, agricultora orgânica, catequista, voluntária e estuda agroecologia na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (Uergs), em Santa Cruz do Sul.

Presidente da associação, Joelita David Bitencourt

Ela ressalta que a comunidade passou a se chamar Nossa Senhora da Imaculada da Bela Cruz, em homenagem à cruz que simboliza seu início. Esse objeto resiste até os tempos atuais, e para sua preservação foi colocado dentro da igreja. Para ela, a questão do racismo teve grande influência na construção de duas igrejas. 

“Os negros usavam uma igreja, enquanto os brancos construíram outra posteriormente, com o objetivo de substituir a dos negros. No entanto, os negros resistiram para que a igreja não fosse derrubada, pois sem ela a nossa história seria apagada”, disse Joelita.

Ela ressalta que, no início dos anos 2000, devido ao fato de o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) ter reconhecido as terras como quilombolas, surgiu um conflito. “Alguns brancos acreditavam que teriam que ceder as terras, o que reavivou a separação naquela época: as festas, as missas e outras atividades passaram a ser feitas separadamente. Agora, estamos retomando a ideia de unificar a comunidade e reforçar os laços.”

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Sobre a questão envolvendo a cerca que dividia os espaços, Joelita ressalta que não foi algo imposto pelos negros. “Os negros não podiam entrar no lado dos brancos. Mas essa separação nunca foi algo imposto, não havia intenção de nos isolarmos.”

Segundo ela, hoje, a comunidade convive bem, não perfeitamente, mas há harmonia. “Faremos a festa deste domingo juntos: os dois pavilhões vão funcionar, haverá missa, batizados e depois o almoço. Qualquer pessoa será bem-vinda.”

Estrutura do quilombo 

A comunidade criou a Associação Comunitária Quilombo Jacinta Souza, que conta com 80 sócios. Algumas famílias ainda vivem em Rincão dos Pretos, enquanto outras saíram para buscar trabalho fora. Cerca de 50 famílias moram ao redor da área do quilombo, cinco delas no território demarcado. 

Os moradores do Quilombo Rincão dos Pretos contam com acesso a serviços da Prefeitura de Rio Pardo em saúde e assistência social, como o Bolsa Família. Também tem parcerias com instituições como o Senac e o Centro de Apoio a Pequenos Agricultores (Capa). Há assistência de técnicos agrícolas da Emater e de outras organizações para apoiar a agricultura familiar.

Marco para Rio Pardo

A historiadora Lila Ramos, de 39 anos, pós-graduada em História e Cultura Afro-Brasileira, trouxe à tona, no último mês, importantes reflexões sobre as raízes da população negra em Rio Pardo. Comandando a exposição “Ecos da Ancestralidade Negra”, no Solar do Almirante, Lila evidenciou histórias, culturas e contribuições da comunidade afro-brasileira para a construção de Rio Pardo.

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Entre os destaques abordados está o Quilombo Rincão dos Pretos, reconhecido oficialmente em 2004. “O quilombo remete à história de Rio Pardo e à presença da mão de obra escravizada na cidade. É a prova de que isso existiu. O Quilombo Jacinta de Souza é um símbolo de resistência e luta, além de ser um guardião da história afrocultural do município”, salienta Lila.

Joelita David Bitencourt e a historiadora de Rio Pardo, Lila Ramos

Confira a reportagem completa em vídeo:

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