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LEGADO CULTURAL

Especial: vida eterna para Regina Simonis

Regina Simonis está viva na Casa das Artes de Santa Cruz do Sul. Até o dia 30 deste mês, o espaço evidencia o talento da artista santa-cruzense e ressignifica o seu legado em uma exposição. Intitulada Vida & Obra, contempla 85 obras selecionadas para proporcionar uma experiência imersiva na trajetória de Regina. Entre os trabalhos incluídos, constam anteriores à sua formação no Instituto de Belas Artes, de 1929 a 1934, até o seu falecimento, em 1996.  Por meio dos quadros, é perceptível a evolução de Regina. Com o passar das décadas, tornou seus trabalhos ainda mais enriquecedores, adicionando detalhes às figuras – rostos, paisagens e flores – retratadas.

O projeto, no entanto, não se limita a exibir os trabalhos da artista. As palestras organizadas forneceram minúcias até então desconhecidas sobre Regina Simonis, realçando o importante papel que ela teve na arte local e regional. Todavia, a maior contribuição é eternizar suas obras. Não só a equipe responsável buscou pelo Vale do Rio Pardo quadros que ainda não haviam sido identificados. Esse acervo, juntamente com o material presente na Casa das Artes, será digitalizado e posteriormente disponibilizado na internet, para que todos possam ter acesso.

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A tarefa não foi fácil. Para encontrar as peças, familiares e entusiastas de Regina uniram-se ao grupo no intuito de trazer à tona pinturas até então escondidas do público. No processo, os colaboradores voltaram ao passado e reviveram os momentos ao lado da artista.

Regina Simonis nasceu em 11 de junho de 1900 no Distrito de Boa Vista, interior de Santa Cruz. Filha de Guilherme e Gertrude Simonis, um casal de descendentes de imigrantes alemães, ela tinha dez irmãos.
Durante a sua infância, precisou conciliar a dedicação aos estudos – na escola comunitária onde o pai lecionava – e o trabalho na propriedade rural. Todavia, o acesso à educação e cultura era uma prioridade.
Prova disso é que Regina foi para São Leopoldo estudar no Colégio São José, em 1914, assim como as irmãs mais velhas. Foi lá que o interesse pela pintura aflorou, conforme o historiador Mateus Skolaude. A partir de 1922, foi para o Colégio Bom Conselho, em Porto Alegre. Na instituição, lecionou artes até 1939. 

Regina Simonis decidiu aprofundar seu conhecimento e talento no Instituto de Belas Artes, na capital gaúcha, no final da década de 1920. Lá, ela teve como professores grandes nomes do segmento, incluindo Francis Pelichek e Libindo Ferrás. Ao concluir os estudos, em 1933, tornou-se a primeira santa-cruzense a conquistar um diploma superior.

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Entretanto, a escassez de oportunidades profissionais e a situação financeira fizeram com que voltasse à sua cidade natal em 1939. O retorno foi dificultado pelo contexto histórico, em função da Campanha de Nacionalização, imposta pelo governo Vargas, que resultou em preconceito contra os descendentes de imigrantes alemães.  Em meio a esse cenário, transformou o entusiasmo pela floricultura em profissão. Também passou a vender suas pinturas .

Para sobreviver, tornou-se florista, conciliando essa profissão com a venda de sua arte. De acordo com Skolaude, Regina Simonis comercializava os trabalhos por correspondências trocadas em alemão com comunidades religiosas de teuto-descendentes espalhadas pelo interior do Estado.

Passaram-se décadas até que a artista fosse reconhecida. Durante os anos 1990, seria homenageada em duas exposições no Centro de Cultura Jornalista Francisco José Frantz. Segundo o historiador da Unisc, esses momentos representaram a realização pessoal de Regina, que após anos no anonimato finalmente foi reconhecida e celebrada pelo seu talento.

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Para Skolaude, o ponto alto foi a inauguração da Casa das Artes Regina Simonis, no antigo prédio do Banco Pelotense, cedido para a Associação Pró-Cultura pelo governo do Estado. O espaço foi aberto em 1995, um ano antes do falecimento da artista. A notícia emocionou Regina, que na época morava em um quarto do Hospital Ana Nery.  O amor pela arte permaneceu até os últimos dias. Ela faleceu em 7 de dezembro de 1996. Embora tenha sido uma mulher reservada, expressou-se por meio das pinturas e segue encantando diferentes gerações.

Influência acadêmica

Segundo o artista contemporâneo Gilmar Almeida, o trabalho de Regina Simonis remete aos clássicos, sobretudo o estilo realista, fruto dos estudos no Instituto de Belas Artes. Por isso, não se encaixa nos movimentos da Arte Moderna, como cubismo, expressionismo e surrealismo. Explicou que, no meio acadêmico, era comum os pintores fazerem desenhos de estátuas e retratos. Na exposição, é possível observar alguns dos trabalhos realizados durante esse período da vida de Regina. “E ela se destaca nos retratos em preto e branco”, afirma.

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Almeida era vizinho da santa-cruzense e pôde vê-la pintar alguns quadros. Ela se considerava uma copista, por reproduzir imagens de cartões. Por conhecer o ateliê de Regina, ficou surpreso ao chegar na exposição e sentir o cheiro da casa dela, impregnado nos seus móveis e pertences. Para Almeida, Regina é a primeira referência de artistas para Santa Cruz. E, na sua visão, continuará a inspirar as próximas gerações.

Exemplo para a comunidade

A presença de parte dos objetos e trabalhos na exposição se deve à professora Aline Koehler, sobrinha-neta de Regina. Seu pai, Guido Roque Koehler (filho de uma das irmãs), era fã da artista plástica e a encorajava a continuar pintando. Por ser entusiasta das artes, colecionava várias obras dela. “Havia tantos quadros que não tínhamos parede para colocar”, recorda.

Aline recorda que, além do cultivo de flores, a “tia Regina” era responsável pelos pinheiros de Natal. Anualmente, ela doava dois para a Catedral São João Batista e os demais aos familiares. “Ela está muito associada ao Natal. Sempre havia uma grande expectativa de ir até lá buscar o nosso pinheiro”, conta.

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Depois da morte do pai, começaram a encontrar mais objetos da família. Entre eles, a caixa de pincéis e de tintas, além do cavalete utilizado por Regina. Em vez de vender esses itens para os apreciadores da artista, resolveu contribuir com a Casa das Artes. “No início, havia poucas obras dela na Casa. E elas não refletiam a sua história. Sabíamos que precisávamos mostrar quem realmente foi a Regina Simonis”, explica.

Para ela, a parente foi uma grande pioneira ao sair de Santa Cruz em busca de concretizar seu sonho. “É um orgulho para nós, familiares e mulheres santa-cruzenses, ter ela como essa referência.”

Coragem e ousadia são marcas da artista 

A professora Sandra Richter é sobrinha-neta de Regina. Seu pai, Adalberto Simonis (1925-1984), era um dos dez irmãos da artista plástica.  Assim como a parente, estudou no Instituto de Belas Artes. Quando a visitava, costumava encontrá-la pintando na cozinha, sempre muito concentrada. “Eu entrava e ela continuava pintando”, recordou. 

Próximo da tia-avó, havia uma mesinha onde ficavam as caixas dos pincéis e de tinta, juntamente com os cartões que ela reproduzia nos quadros. “Depois eu fui aprender que era uma técnica de ampliação de imagem muito antiga, inventada no Renascimento”, detalhou. 

Outra lembrança muito marcante era do porão da casa, onde havia um cheiro forte de flores, outra paixão da artista, misturado com água e umidade. O espaço era repleto de vasilhames, separados de forma organizada. “Era um gesto de cuidado com aquelas flores, ela quase entrava em devaneio.”

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Entre as pinturas da exposição, lembrou a do Anjo da Guarda, que fez parte de sua história e a considera marcante. “Desde que eu me conheço por gente, ele estava em cima da minha cama até eu me casar. Minha mãe guardou depois que eu fui embora, e voltou para mim depois que ela morreu.”

Para Sandra, o que torna a tia-avó uma artista importante é a ousadia e a coragem de ter saído de Boa Vista para ir estudar em Porto Alegre. “O que me admira, como artista, é ir atrás do sonho”, ponderou. E esse legado, na sua avaliação, é lembrado no projeto Vida & Obra. 

Reencontro inesperado

A arte de Regina emociona as pessoas de diferentes formas. Mas, para a aposentada Carmen Koehler, uma das obras proporcionou um reencontro emocionante. Em uma visita à casa da artista (tia-avó do seu marido, Fernando Luiz Koehler), no final da década de 1970, deparou-se com a pintura de uma criança ao lado do cavalo. A imagem remeteu a um momento especial de sua infância.  Na época, sua família vivia no interior de Minas do Leão. Ela recebeu de um vizinho um cavalo que esteve com ela por quase uma década. “Quando eu queria cavalgar, eu subia na cerca e ele se inclinava. Ele me obedecia”, recordou.

Contudo, aos 13 anos, os pais decidiram mudar-se para Santa Cruz. Por isso, precisou deixar o companheiro. “Foi duro demais”, recordou. Décadas após o fato marcante, Carmen emocionou-se ao ver na pintura um momento especial. Pediu então para a “Tia Regina” que reproduzisse o quadro. Nele, consta a assinatura da artista e o ano do trabalho, 1980. 

Outra peça marcante para Carmen foi o quadro que recebeu de presente de casamento. Carmen tinha uma ilustração de uma revista e pediu para que Regina a reproduzisse em um quadro. “Mas a do cavalo foi a que mais me emocionou”, revela. Para Carmen, há uma série de trabalhos impactantes. Sobretudo os religiosos. “O olhar e os detalhes que ela acrescenta proporcionam uma experiência divina”, destaca.

O projeto

Regina Simonis: Vida & Obra é uma iniciativa inédita da Associação Pró-Cultura, responsável por manter a Casa das Artes há 30 anos, para ampliar a visibilidade do legado artístico da santa-cruzense. Ele marca o início de um trabalho que irá se estender para buscar outras produções de Regina e saber mais sobre sua história. 

Foto: Rodrigo Assmann

A presidente da Associação Pró-Cultura, mantenedora da Casa das Artes, Caroline Knies, explica que a história de Regina Simonis carecia de informações. Além disso, muitos trabalhos feitos por ela em quase um século permaneciam ocultos. Com o trabalho, muitos deles começaram a aparecer, contribuindo para a valorização da carreira da artista.

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A escassez de informações sobre a vida e o trabalho de Regina representou um grande desafio, de acordo com o curador do projeto, Alex Brino. Foram necessárias duas pesquisas paralelas, a partir de recortes de jornais e entrevistas, e outra mais intensa, com visitas. Os familiares foram fundamentais. Uma das fontes foi Bertha, única sobrinha de Regina ainda viva, que contribuiu com dados, quadros e fotos da pintora.

Outra peça-chave foram os proprietários dos quadros. “Com cada um, surgiam novas histórias ou confirmação de algumas que já conhecíamos. Então, aos poucos, estamos conseguindo juntar as partes dessa história tão importante para a comunidade santa-cruzense”, afirmou Brino.

Por meio da apuração, puderam desmistificar alguns fatos distorcidos. Um deles, segundo o curador, é quanto à entrada de Regina no Instituto de Belas Artes. Na época em que ela realizou o curso, cerca de 76% dos ingressantes eram mulheres, que também eram a maioria (83%) dos egressos. “O aspecto marcante na vida da Regina foi o fato de ela ter se mantido nas artes plásticas após sua saída do Instituto, pois após a formação apenas os homens mantinham trabalhos públicos”, salientou.

O projeto foi fundamental para aumentar o acervo de obras da artista. Até 2023, a Casa possuía 20 trabalhos. A partir da doação de familiares, passou para 50, sobretudo desenhos acadêmicos. Com o início do projeto, a partir do contato com os colecionadores privados, já identificaram pelo menos 170 obras (incluindo o material presente na Casa). Contudo, a quantidade tem aumentado desde o início da exposição. A ideia, segundo Brino, é retomar os contatos com proprietários. “Com todos os contatos feitos após a inauguração da mostra, devemos chegar próximo de 240 obras conhecidas da Regina.”

Nova fase

O projeto continuará mesmo após o fim da exposição. Segundo Alex Brino, marcará uma nova fase da Casa das Artes, protagonizando o registro e a preservação das obras de Regina Simonis. Além da catalogação, que seguirá de forma permanente, os trabalhos doados à instituição por apreciadores da artista plástica estão sendo higienizados. Alguns passaram por um processo de restauração, realizado por especialista. 

Para garantir a preservação das peças, foram adquiridos equipamentos específicos para mantê-las intactas. Com isso, a casa torna-se um centro capacitado para preservar as obras de arte e divulgá-las. 
Está em estudo a produção de dois livros sobre a artista. Segundo Brino, eles deverão focar diferentes temas, mas ainda estão em conversas preliminares. 

Uma vez que o material catalogado é muito maior do que está sendo exibido, permitirá que novas exposições sejam organizadas, com obras ainda inéditas. A depender da Casa das Artes, a obra e a vida de Regina jamais serão esquecidas.

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