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A Santa Cruz detalhada pelo viajante Hemeterio

Carroça com uma família de colonos do interior de Santa Cruz durante passagem de um rio

Em suas primeiras décadas de existência, ao longo do século 19, a Colônia de Santa Cruz, cuja ocupação com imigrantes alemães se iniciou em 19 de dezembro de 1849, sempre atraiu a curiosidade de muitos viajantes. Vários destes eram inclusive europeus, com destaque para os oriundos de territórios que depois viriam a compor a Alemanha independente. Mas não apenas pessoas dessa área. Também de outras partes do mundo, e de outras regiões do Brasil, vinham os visitantes.

O pernambucano Hemeterio José Velloso da Silveira, que visitou Santa Cruz. | Crédito: Acervo pessoal de Aidir Parizzi Júnior

Um dos mais singulares foi o pernambucano Hemeterio José Velloso da Silveira, que, em 1855, com cerca de 30 anos, fora designado como juiz municipal em São Borja, na fronteira do Rio Grande do Sul com a Argentina. Ali, por sua intervenção, foi determinante inclusive para a emancipação de Itaqui, o que aconteceu em 1858.

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Em seu período no Estado, percorreu a região das missões jesuíticas, e acabou vindo até Santa Cruz, o que detalhou em um livro de memórias clássico das suas andanças.

Um olhar atento e entusiasmado sobre a pujante localidade

Olhar e a curiosidade do juiz pernambucano Hemeterio José Velloso da Silveira sobre as diversas áreas que pertenceram às reduções jesuíticas no Rio Grande do Sul resultou em um dos mais aprazíveis e instrutivos livros sobre o passado gaúcho entre todos que se poderia querer ler. Estabelecido em São Borja, onde fora designado como juiz municipal, em 1855, por volta dos 30 anos, a partir de lá, movido por seu interesse em se familiarizar mais sobre os vestígios missioneiros, percorreu boa parte do Estado.

Suas reminiscências desse período ele fixou no livro As Missões Orientaes e seus antigos domínios, de 548 páginas, lançado em 1909 por intermédio da Typographia da Livraria Universal de Carlos Echenique, de Porto Alegre. Fora instado a essa iniciativa, como afirma, por amigos e conhecidos, cientes de suas lembranças e apontamentos privilegiados dessas visitas realizadas meio século antes.

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O detalhe é que, além de ter percorrido toda a região missioneira, no último dos textos de seu livro contempla Santa Cruz. E o faz com informações privilegiadas, de uma época determinante para o progresso local e regional. Ele obtém, em primeira mão, dados sobre uma localidade que se salienta perante todo o Estado, como enfatiza, e que vivencia o momento da chegada do trem, concretizando a ligação em um ramal até Ramiz Galvão. Assim, ele dispõe de informações atualizadas, naquele momento, e que antecedem em poucos anos ou meses o lançamento de seu livro, em Porto Alegre.

Hemeterio descreve, com vivo interesse, a Santa Cruz que ingressa a passos céleres no século 20, comemorando seu primeiro meio século de existência. E o viajante não poupa elogios e adjetivos ao descrever a vila que visitara, e da qual ouvira tantos relatos positivos e entusiasmados. Sua obra chegou a merecer edições posteriores, como a feita pela editora Erus, em 1979, mas exemplares hoje estão fora de catálogo. Para ter acesso a um deles, o interessado deve persistir em localizar algum em sebos ou mesmo em leilões de livros antigos.

Um dos destaques da obra de Hemeterio está em fotografias e ilustrações que ele agrega. As que ilustram esta reportagem compõem todas esse acervo, salientando-se a foto de uma família de colonos que atravessa um riacho, em carroça. Há ainda registro raro da antiga igreja católica, junto à praça central, e do prédio da intendência, atual Palacinho.

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Ele foi um responsável direto pela emancipação de Itaqui

Sobre o juiz pernambucano Hemeterio José Velloso da Silveira, radicado no Rio Grande do Sul, várias informações são algo contraditórias. O professor Paulo Corrêa dos Santos é um dos autores que se dedicou a pesquisar sobre sua vida, dados depois compartilhados em blogs sobre Itaqui.

A capa origjnal do livro de Hemeterio

É Santos quem afirma que Hemeterio teria nascido em 1824, no Recife (o ano em que chegaram os primeiros imigrantes alemães a São Leopoldo, no Rio Grande do Sul). Teria vindo da cidade de Garanhuns, ou ainda de Pau de Alho, onde era promotor. Acabou nomeado para São Borja, no extremo sul do Brasil, porque havia indícios de que sua vida corria perigo. Santos salienta que a imprensa pernambucana da época noticiava que o magistrado tinha a vida ameaçada por autorizar prisões de pessoas da elite local envolvidas em tráfico de escravos da Europa.

Seu falecimento ocorreu em 1913, no Rio de Janeiro, aos 89 anos e nove meses. Santos não hesita em afirmar: “É considerado uma das mais fecundas inteligências de seu tempo, dando-nos o privilégio de ter passado, com proeminência, por nossas densas sesmarias missioneiras e feito história”.

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Um aspecto de sua biografia a gerar confusão é que seu pai tinha exatamente o mesmo nome; era um coronel, sendo casado com Anna Joaquina da Silveira, ambos de Recife. Por isso, em sua terra natal o juiz Hemeterio era nomeado como Junior. Seu pai fora um líder municipal, e militar, atuando diretamente junto às forças do governo da província.

E, aliás, o filho não ficou para trás em termos de atuação destacada. Mal chegado a São Borja, em 1855, envolveu-se ativamente num movimento que resultou na emancipação de Itaqui, área que então pertencia àquele município. Por tal empenho, é considerado como um responsável direto pela independência de Itaqui, o que aconteceu em 1858.

E, claro, de suas andanças durante mais de uma década pela região missioneira, deixou um documento histórico de valor inquestionável. No livro, em 1909, apresenta-se como ex-magistrado e advogado na cidade de Porto Alegre.

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Livro traz informações valiosas sobre o passado

Em seu livro dedicado à área das missões jesuíticas em território gaúcho, Hemeterio José Velloso da Silveira traz, em relação a Santa Cruz, uma informação de alta importância histórica. É de se salientar que, em um primeiro momento, o simples fato de ele contemplar Santa Cruz em um livro sobre as reduções já é curioso: mas então se percebe que, para ele, isso fazia todo sentido.

Santa Cruz é descrita no capítulo XL do livro. E ali enfatiza, na primeira década do século 20: “Um fato bem moderno deu-nos uma prova indireta de terem os jesuítas, com seus índios catequizados, ocupado terras daquele município com a mencionada redução”. Ou seja, Hemeterio aventa que os jesuítas teriam descido a Serra Geral e ocupado parcela do território que depois formaria Santa Cruz. Que estiveram próximo, não resta dúvida, uma vez que no sopé do Morro Botucaraí, em Candelária, localizava-se a Redução Jesus Maria, já bem além da margem esquerda do Rio Jacuí e, portanto, terras portuguesas adentro.

Hemeterio cita uma informação que obteve. Que em 1885 um colono alemão, quando trabalhava em sua terra, encontrou no oco de uma árvore um livro com capa de pergaminho, e se deu conta de que estava escrito em uma língua desconhecida para ele. Esse volume parou em mãos do então agrimensor da colônia, Carlos Trein Filho, e este o repassou ao jornalista e imigrante alemão Carl von Koseritz.

Que, conforme Hemeterio, por sua vez, entregou-o a João Cesimbra Jacques, o qual dominava a língua guarani. Assim se identificou que se tratava de um diário de viagem de padres conduzindo uma multidão de índios convertidos até o ponto onde fora fundada a Redução Jesus Maria. Desse modo, aventa Hemeterio, a presença e a atividade jesuítica teriam sido intensas também no território que posteriormente sediaria a colônia alemã de Santa Cruz.

Devolvido por Cesimbra a Koseritz, o livro teria sido remetido por este à Alemanha, sem qualquer informação posterior sobre o paradeiro. Mas o coronel Vasco de Azevedo e Souza teria comentado com Hemeterio que outros manuscritos, bem como objetos, teriam sido encontrados em outros lugares na área da colônia de Santa Cruz, atestando a presença jesuítica.

O visitante faz uma descrição viva e detalhada da vila

O livro de Hemeterio José Velloso da Silveira dedica mais de 20 páginas a descrever Santa Cruz, em uma época na qual a vila está em vias de ser tornada cidade, o que ocorre em 15 de novembro de 1905, no mesmo dia da inauguração da Estação Férrea e da ligação ferroviária com Ramiz Galvão, em Rio Pardo. O autor pernambucano resgata em detalhes o histórico local e remete a 1847, quando lei provincial autorizou o presidente da Província a mandar abrir uma estrada através da serra, a partir de Rio Pardo, ligando com o distrito de Soledade, então município de Cruz Alta.

Uma perspectiva da praça (atual Getúlio Vargas) nos primórdios, com a antiga igreja católica

Foi ao largo dessa estrada, na altura do “fachinal” de João de Faria, que uma colônia com alemães foi estabelecida. A partir dessa iniciativa, Hemeterio descreve os primórdios da ocupação, recuperando os principais fatos e personagens ligados à nova localidade. Adiante, descreve a extensão e os limites da colônia de Santa Cruz, os aspectos do terreno e de sua composição, a hidrografia e a posição geográfica, que entende como muito privilegiadas.

Seu olhar seguinte é sobre a sede do município, em torno de duas praças “perfeitamente quadradas”. Menciona as edificações e cita que a população da vila é de 5.600 habitantes, enquanto todo o município deve exceder a 28 mil moradores. Identifica uma intensa vida social, marcada por atividades de cunho comunitário. Refere inclusive dois jornais em alemão circulando na área, o Kolonie e o Fortschritt.
As atividades econômicas merecem sua total atenção, e entre estas menciona o fumo, ““bem reputado e exportado em larga escala”. Constata que a atividade produtiva e industrial já tornava Santa Cruz, no começo do século 20, numa das mais pujantes localidades do Estado. E aventa: “O que não produzirá esse município quando aí chegar o ramal da estrada de ferro a partir da estação do Couto e a estacionar em Santa Cruz?”

Curiosamente, encerra seu texto sobre a localidade confirmando justamente a inauguração desta ligação férrea, o que traz em um “Addendum”, no qual detalha essa obra e sua repercussão: “Foi uma festa toda excepcional para a população desse município, que guardará, por muitos anos, a mais grata e imorredoura lembrança”, afirma.

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Alguns trechos da obra

“No Brasil inteiro, talvez não fosse tirado dinheiro dos cofres públicos e empregado com melhor êxito do que o da fundação da colônia de Santa Cruz.

A população da vila é de 5.600 habitantes (…); mas todo o município deve exceder de 28.000 habitantes, na sua máxima parte de origem germânica, havendo muitas famílias, em determinadas zonas, que desconhecem inteiramente a língua portuguesa.

Durante nossa estada, por alguns dias, em Santa Cruz, assistimos numa noite a um espetáculo no teatrinho do Club União. Foram representadas duas comédias de atualidade, em alemão; das quais obtivemos um minucioso argumento. Pudemos assim compreender quase tudo e notar um perfeito desempenho a todos os papeis. Os atores, moços e moças da elite social, mostraram uma perfeita naturalidade e receberam merecidos aplausos.

As ruas e praças são iluminadas por oitenta combustores a querosene. Não seria difícil, nem talvez mais dispendiosa a iluminação a luz elétrica, com a qual ficaria a população mais bem servida, aproveitando-a quase todas as casas particulares. (…) Alguns meses depois que escrevemos as linhas acima soubemos que a intendência concedera privilégio a uma empresa para a iluminação elétrica.

As ruas e praças estão sempre limpas, tirados os dias de chuvas, nos quais por falta de calçamento o trânsito a pé é incômodo, pois não falta lama para dificultar o trânsito. (…) A maior parte dos habitantes do município de Santa Cruz são agricultores, inclusive os que dão-se ao trabalho de criar alguns animais.
Destacam-se das profissões as mais importantes, tão úteis ao Estado, como as fontes mais abundantes da riqueza do município. Conta este dentro da vila e em subúrbios as seguintes: a da refinação de banha da firma Evers & C.; a de descascar arroz, de Theodor Albrecht, pondo o seu produto em competência com o melhor arroz estrangeiro; as fundições de máquinas, de Nicolau Melchior e de Guilherme Schreiner, e a de cal, de Jorge Frantz.

Tais são as informações que podemos dar aos nossos leitores sobre o florescente município de Santa Cruz. Em Berlim, em Hamburgo têm sido publicados vários opúsculos em alemão tratando das vantagens da colonização para o Brasil. Esses escritores não têm poupado encômios ao importante núcleo colonial que acabamos de visitar.

No dia 21 (de novembro de 1905) tendo chegado de Porto Alegre comunicação oficial de ter o presidente (da Província) elevado a povoação de Santa Cruz à categoria de cidade, recrudesceram as festas e duraram mais três dias. Essa nova categoria era de muito tempo necessária, por quanto Santa Cruz é uma povoação mais digna de ser cidade do que muitas povoações menores e mais atrasadas em diversos estados da federação brasileira.”

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