Em meio a tantas mudanças que experimentaram ou às descobertas que fizeram na terra para a qual se transferiram, imigrantes alemães que se fixaram no Sul do Brasil tiveram na autonomia uma de suas maiores conquistas. A região na qual se fixaram pode até não ter se revelado plenamente a “terra da liberdade”, como fora descrita, mas trouxe inegáveis vantagens.
E a autonomia, como frisa o historiador Roberto Radünz, natural de Candelária, se reveste de vários aspectos, sendo um deles associado às formas como conduziram a religiosidade. Os protestantes, ou luteranos, ao assumirem protagonismo na constituição de comunidades, na construção de igrejas e escolas e na contratação de pastores e professores, estabeleceram certa flexibilidade e menos rigor em suas manifestações de fé.
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Mas, em especial, deixaram para trás a condição de servos e aqui viraram proprietários de terras. E se deram conta de que podiam até mesmo andar a cavalo, o que na Europa só faziam nobres, religiosos ou cavaleiros. Era uma verdadeira revolução em suas vidas.
A conquista da liberdade em novas terras
Pouco mais de uma década após a chegada dos primeiros imigrantes alemães à Alte Pikade, a atual Linha Santa Cruz, em 1849, inaugurando a Colônia Santa Cruz, mais um grupo de famílias de imigrantes subia pelo Rio Pardo, a partir do Jacuí, em Rio Pardo, para se fixar na Colônia Vila Germânia.
Nesse caso, tratava-se de empreendimento particular, liderado, entre outros, pelos investidores Johannes Kochenborger e Heinrich Jacob Graeff. Os lotes de terras foram demarcados e distribuídos ao longo do Pardo, a partir de 1862, tendo o Botucaraí como referencial no horizonte. Décadas mais tarde, aquela colônia daria feições à cidade e ao município de Candelária.
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Os primeiros a chegar a Vila Germânia eram, em sua maioria, da Pomerânia, junto ao Mar Báltico. Além dos que vieram da Europa, outros, das colônias próximas, como a de Santa Cruz, ali se fixaram. De uma dessas famílias pioneiras descende o professor e pesquisador Roberto Radünz.
Nascido em 3 de junho de 1965, filho do casal Arno e Roza, aos 58 anos, lembra que até chegar à idade de ir para a escola ele vivia na propriedade de 14 hectares que pertencia a seus avós, situada na localidade de Passa Sete, a cerca de oito quilômetros da cidade. Ali, testemunhou a rotina de trabalhos numa típica pequena propriedade rural da região, de cultivos diversificados, mas cuja base de renda vinha do tabaco.
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Em meio à caminhada de formação e a carreira acadêmica, atualmente junto à Universidade de Caxias do Sul (UCS), Radünz mantém vivos os laços tanto com Candelária quanto com a propriedade rural em Passa Sete, que ainda é da família. Seu irmão mais velho, Carlos, reside em Candelária (Ricardo, o mais novo, é falecido). Mais do que manter vínculos com a terra natal, Roberto voltou a ela seu olhar de pesquisador. Ele também tem duas filhas candelarienses: Anabeth, 32, radicada em Recife, formada em estatística; e Amanda, 30, da área de Letras, na UFSM.
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Cita em seu livro A terra da liberdade, publicado em 2008, que Candelária acabou por concretizar um caso diferenciado no contexto das organizações religiosas estruturadas pelos imigrantes. O primeiro sinal já está no templo presente junto à praça central da cidade.
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Na maioria das demais colônias, muitas delas oficiais, lideradas pelo governo do Império ou pelo governo do Estado, junto à praça fica a igreja católica (no caso de Santa Cruz, a atual Catedral São João Batista). Em outras localidades, onde a religião protestante, professada pelos colonos, tinha mais proeminência, na área central ficava o templo da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).
Mas em Candelária o templo erguido junto à praça hoje é vinculado à Igreja Evangélica Luterana (IELB), originada a partir do Sínodo Missouri, dos Estados Unidos (enquanto a IECLB tem suas raízes no ramo europeu). Por volta de 1870, quando houve o primeiro movimento para construir um templo na vila, ele deveria receber inclusive católicos.
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A autonomia foi uma das características imediatas na comunidade, tendo em vista que as famílias de membros contratavam o pastor (num primeiro momento, leigos), e, nessa condição, determinavam como deveriam ser as regras de funcionamento. Isso envolvia maior flexibilidade em relação a festas, o popular Kerb, no qual bebida alcoólica (cerveja) poderia ser consumida, além de outros indicativos da liberdade de que os colonos queriam desfrutar na nova terra.
Dupla formação em Teologia e História
Concluídos os estudos iniciais em Candelária, Roberto Radünz decidiu-se por estudar Teologia, e assim se transferiu para São Leopoldo, onde frequentou o Seminário Concórdia. Mal havia iniciado esse curso e também prestou exames para ingressar em História, na Fapa, em Porto Alegre, cumprindo os dois currículos em simultâneo. Tão logo se formou teólogo, por um período atuou junto a uma comunidade de luteranos em Caxias do Sul.
Em 1994 concluiu o mestrado em História, e a partir desse momento iniciou sua trajetória como professor no ensino superior, em duas instituições comunitárias, a Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) e a Universidade de Caxias do Sul (UCS). Por 25 anos lecionou nas duas, deslocando-se entre o Vale do Rio Pardo e a Serra Gaúcha.
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Na sua dissertação já se ocupava da questão da religiosidade envolvendo os imigrantes nas colônias alemãs, tomando como modelo, ou case, justamente uma realidade como a de sua Candelária natal. Esse estudo tornou-se livro, Do poder de Deus depende, publicado pela Edunisc em 1996.
Seguiu em seu aperfeiçoamento intelectual com o doutorado em História do Brasil pela PUCRS, e mais uma vez ampliou suas investigações em torno da forma como os luteranos nas regiões específicas das colônias de Santa Cruz e Vila Germânia (depois Candelária) lidavam com a prática religiosa. Novamente, esse trabalhou resultou no livro A terra da liberdade: o luteranismo gaúcho no século XIX, coedição da Edunisc e da editora da UCS.
O título é emprestado de um trecho de livro publicado na Alemanha, em 1853, pelo agente de imigração Peter Kleudgen, o qual sugeria que Santa Cruz (ou, no conjunto, as colônias alemãs do Rio Grande do Sul) era a “terra da liberdade”. Hoje, Radünz segue como professor do Programa de Pós-Graduação em História e colaborador no Programa de Pós-Graduação em Letras da UCS, e, em paralelo a seus estudos sobre imigração alemã, ocupa-se igualmente da imigração italiana. Possui ainda pós-doutorado pelo Institute of the American and Europe da Universidade de Varsóvia, na Polônia.
Entrevista – Roberto Radünz, professor e historiador
- Magazine – O título de um dos livros do senhor é “A terra da liberdade”. A que liberdade se refere, no contexto da imigração? O Brasil era visto por grande parte dos emigrados como a terra da liberdade. Aliás, essa expressão, “Brasilien ist das Land der Freiheit”, retirada do jornal luterano Sonntagsblatt, de 1899, refletia a sensação que tinham muitos colonos já radicados no sul do Brasil. Mesmo guardando toda uma carga de tradição, na qual estavam os valores de sua etnia, da língua, da cultura, da religiosidade, os colonos emigrados não alimentavam lembranças saudosas da velha pátria em termos políticos e econômicos. A realidade pretérita na Europa lhes fazia lembrar a falta de condições mínimas de vida. Na medida em que os emigrantes se haviam sentido sujeitos a maus tratos ou tinham sido expulsos de suas terras, desapareciam, no novo lar (“Heimat”), a ligação e o amor à pátria de origem. Os colonos buscavam uma libertação socioeconômica.
- O senhor menciona que uma das características nesse modelo de colonização foi a “autonomia”. Em que ela se traduzia? Na Europa como um todo, assim como nas regiões germânicas, o avanço do capitalismo industrial modificou substancialmente a vida das pessoas mais pobres. No campo, principalmente no leste europeu, grande parte dos camponeses eram tratados como Knecht, expressão que lembrava a subordinação feudal que ainda deixava marcas no século 19. Nas áreas urbanas e industriais, estavam subordinados a uma situação deplorável de jornadas de trabalho exaustivas, que não raro chegavam as 16 horas, e a ter que aceitar salários de sobrevivência. No processo de emigração para o Brasil, muitos deles tiveram acesso à terra, às condições de produzir e, apesar de todas as dificuldades impostas no tempo da necessidade, eles sobreviveram. Estavam livres das amarras produtivas que a antiga realidade lhes impunha, podiam orientar sua vida material segundo as próprias decisões. Essa era uma conquista importante, principalmente para os imigrantes vindos do leste europeu que, até seu embarque para o Brasil, apenas conheciam a sujeição produtiva.
- A Colônia Vila Germânia resultou na atual cidade (e município) de Candelária. Quais eram as características de produção e econômicas dessas colônias e para onde elas negociavam seus produtos? São Leopoldo foi a primeira colônia que recebeu imigrantes germânicos a partir de 1824, portanto, há quase 200 anos. Ela foi fundada, perto de Porto Alegre, para principalmente abastecer com produtos agrícolas esse centro maior. Nesse caso em especial, o Rio dos Sinos foi usado largamente para o transporte de alimentos. Esse modelo, depois espraiado para todas as áreas de colonização do século 19, esteve baseado no seguinte tripé: minifúndio, policultura e mão de obra familiar. De outro lado, o modelo consolidado no sul do Brasil era distinto – latifúndios para criação de gado com a utilização de mão de obra escrava. As colônias estabelecidas a partir da metade do século 19, após a Guerra Civil Farrapa, seguiram a mesma lógica de São Leopoldo, ou seja, foram criadas para abastecer os centros ligados às atividades de criação de gado e beneficiamento do charque. Vila Germânia, criada como uma colônia particular, seguiu essa lógica do minifúndio, da policultura e das atividades familiares nessas pequenas unidades produtivas. As colônias no entorno de Santa Cruz tiveram em Rio Pardo seu principal centro de abastecimento e venda de produtos colônias.
- A forma como as comunidades religiosas se estruturaram, nos primórdios, ainda está presente nos dias atuais nessa região? As colônias alemãs no sul do Brasil não foram homogêneas. Em termos de confissão religiosa, foram enviados tanto católicos quanto protestantes. Os católicos negociaram com a igreja romana a sua condição. Os protestantes tiveram que lidar com um quadro totalmente diferente do qual estavam habituados no Velho Mundo. A realidade nova – de liberdade – permitiu que as comunidades se constituíssem a partir de si mesmas, estabelecendo normas e pactos de convivência. A conjuntura permitiu essa normatização independente. O jornal Deutsche Ansiedler, impresso na Alemanha em edição de 1890, publicou uma matéria tratando desse sentimento: “O princípio que aqui rege tudo na Igreja e na escola, é a liberdade…”. Queriam liberdade frente a qualquer instituição externa. Era a própria comunidade, refletindo as diferentes formas de se viver, que estabelecia as normas de conduta – através de seus grupos dirigentes. Os colonos eram muito ciumentos de sua liberdade. Mas liberdade não significava libertinagem; havia regras claras estabelecidas pelo próprio grupo. Era liberdade em termos de organizar igreja e escola segundo os interesses internos. Por conta disso, os membros passaram a estabelecer um perfil pastoral. O melhor sacerdote, via de regra, era aquele que mais se assemelhasse à liberdade dos membros. Numa comunidade onde diferentes esferas da vida social se intercambiavam, a presença pastoral nesses espaços de sociabilidade era admirada. A organização sinodal do final do século 19 que criou o Sínodo Riograndense e a vinda de missionários dos EUA no início do 20 modificou substancialmente esse quadro. A autonomia de cada comunidade passou a ser regrada por negociações que envolveram investimentos mais vultuosos dos luteranos na organização de seminários para pastores e professores que, nos primórdios, não tiveram, na sua formação, uma preparação mais acurada.
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