Embora algumas pessoas ainda insistam em negar ou minimizar os seus efeitos, as mudanças climáticas estão a cada dia mais visíveis e evidentes para todos. Citando apenas o exemplo do Rio Grande do Sul, foram três anos de estiagem severa e, neste ano, chuvas com volumes recordes e que provocaram estragos nunca antes vistos.
Ainda que esses acontecimentos sejam comumente tratados como desastres naturais, há controvérsias. O especialista Marcos Kazmierczak diz que não apenas não são naturais como poderiam ser evitados ou, pelo menos, enfrentados com mais preparação.
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Entre as possíveis ações citadas por ele estão a estruturação das equipes municipais da Defesa Civil e a elaboração de instrumentos de planejamento de gestão de riscos e desastres. Alguns exemplos são legislações que regrem o uso e a ocupação do solo, a prevenção de enchentes ou inundações, a prevenção de escorregamento ou deslizamentos de encostas e a carta geotécnica de aptidão à urbanização, entre outros. Tudo isso é cada vez mais necessário em razão da impossibilidade de conter o aquecimento global e os consequentes eventos climáticos extremos que se seguirão com esse processo.
Como chegamos ao estado climático atual
Antes de falar sobre o que vem pela frente, é importante olhar para o passado e entender quais foram os motivos que levaram o Rio Grande do Sul a chegar à situação climática em que se encontra hoje. Marcos Kazmierczak salienta que o RS é, por muito, o Estado mais atingido por eventos extremos. Segundo ele, é comum o pensamento de que seria alguma região do Nordeste, em função da seca, mas esse entendimento está incorreto.
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“Aqui, nós temos o 8 ou 80. Ou é seca demais, ou é chuva demais.” Para ter uma ideia dos motivos, é necessário reparar nos dados. Entre 1985 e 2020, o RS suprimiu 3 milhões de hectares de vegetação campestre (Pampa), 463 mil hectares de pastagens e 2,49 milhões de hectares de outras lavouras temporárias, que não eram soja ou arroz. Nesse mesmo tempo, a área plantada de soja cresceu 4 milhões de hectares, o arroz 644 mil hectares e a silvicultura (eucalipto e pinus) 721 mil hectares. “Se eu retirei a formação nativa e expandi a agricultura, vou ter um impacto”, observa.
Kazmierczak explica que o Pampa sequestra carbono – ainda que menos do que outros biomas, como a Amazônia e a Mata Atântica –, enquanto os cultivos agrícolas poluem, em razão dos fertilizantes nitrogenados, que liberam óxido nitroso na atmosfera. “Não estou culpando apenas o agronegócio, porque existem questões como o consumo e outras, mas é claro que é um dos motivos dessa diferença no clima em 35 anos”, afirma.
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Com mudanças cada vez mais fortes e recorrentes, o mapeamento dos imóveis rurais cadastrados no RS mostra um cenário preocupante: 29,65% deles estão em áreas de risco alto ou muito alto para inundações. Ao mesmo tempo, 74% desses imóveis estão em locais de risco alto ou muito alto para estiagem.
“Nós somos líderes nesse quesito, temos muito mais seca do que a Bahia, Pernambuco ou qualquer Estado nordestino”, frisa. As ações de mitigação também são insuficientes, visto que 85,4% dos imóveis não possuem reservatório de água e 10,5% têm açudes com área de até 1 hectare.
Desastres naturais, em geral, não são naturais
Doutor em desastres naturais pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e pelo Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), Marcos Kazmierczak diz que os desastres naturais, na grande maioria dos casos, não são naturais, mas sim eventos climáticos extremos. Ele afirma que os desastres naturais são terremotos, tsunamis e erupções vulcânicas, situações em que não há interferência da humanidade. Queimadas e inundações, por exemplo, não são naturais.
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“Inundações, em 99,9% dos casos, não são naturais. Ocorrem porque se removeu a floresta e impermeabilizou as cidades.” Ele cita Lajeado para exemplificar o crescimento urbanístico sem planejamento adequado e que acaba resultando em problemas. “Há 30 anos, uma chuva de 100 milímetros não inundava. Hoje inunda, porque tem ocupação na beira do rio e o canal está assoreado; isto é, ficou menor. Então, uma chuva mais significativa é suficiente para ele extravasar.”
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Nos últimos 30 anos, 43% dos eventos extremos no mundo foram inundações; 28%, temporais; 5%, movimentação de massa; e 5%, estiagem. No Brasil, nesse mesmo período, as inundações representam 58%, os temporais, 9%, e as secas, 8%. O recorte do Rio Grande do Sul, contudo, chama a atenção pela disparidade: 34% foram inundações, 12% temporais e 45% estiagens. No total, o Estado registrou 6,8 mil desses eventos nesse período. Apesar de muito elevado, o especialista considera subestimado, tendo em vista que muitos municípios podem não ter comunicado adequadamente.
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Um estudo da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) estima que o RS tem 234 eventos climáticos extremos por ano, que causam cerca de R$ 1,34 bilhão em prejuízos aos setores público e privado. “Eu, particularmente, acredito que esse custo seja muito maior”, diz Karmierczak. Algumas situações são, por vezes, curiosas, como o caso de Vera Cruz em 2021. No primeiro trimestre daquele ano, o município teve em vigor, simultaneamente, decretos de situação de emergência em razão da estiagem e dos temporais.
Falta de preparação e governança falha são problemas
Outro ponto importante diz respeito à falta de governança e de preparação para enfrentar esses eventos extremos. A cada dois anos, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) faz um levantamento em todos os municípios brasileiros para verificar nove instrumentos de planejamento de gestão de riscos de desastres. São legislações para prevenir enchentes e inundações, deslizamentos, urbanização em áreas de risco, obras para redução de riscos de desastres, entre outros.
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Em nível de Brasil, 50,6% dos 5.568 municípios não possuem nenhum desses instrumentos. Nos que possuem, os mais comuns são Plano Diretor, que contempla a prevenção de enchentes e inundações, e legislação para uso e ocupação do solo, que contemple a prevenção desses mesmos eventos. No Rio Grande do Sul, a situação é quase igual: 49,3% dos 497 municípios gaúchos não possuem nenhum instrumento.
No caso de Santa Cruz, o único instrumento informado ao IBGE no último levantamento, feito em 2020, foi a existência de uma carta geotécnica de aptidão à urbanização. Em um período de 30 anos, entre 1991 e 2021, o município teve 55 eventos extremos registrados, com um prejuízo estimado de R$ 224 milhões. Isto é, cerca de R$ 4 milhões por cada um. “Se em uma cidade que teve 55 eventos em 30 anos, ou quase dois por ano, só tem um dos nove instrumentos, isso é um problema”, sublinha. Em 2022, o IBGE não teve orçamento para realizar o estudo.
Ao expandir a análise para os 13 municípios do Vale do Rio Pardo nesse mesmo recorte temporal, o resultado é pior. Foram 208 eventos extremos, com prejuízo estimado de R$ 1,83 bilhão. Isto é, sete eventos por ano, com prejuízo de R$ 8,8 milhões cada um. A maioria deles, 74, são estiagens, mas chuvas intensas, inundações e alagamentos somam 76.
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Marcos Kazmierczak aponta a necessidade de capacitação para que a Defesa Civil classifique corretamente cada ocorrência. “Às vezes a equipe de Lajeado diz que é uma chuva intensa e a equipe de Muçum, que fica ali do lado e passou pelo mesmo evento, fala em enxurrada.”
É preciso compreender ainda como são calculados os volumes de chuva e o que representam. Um milímetro de chuva representa um litro de água em um metro quadrado de área. Assim, cem milímetros são cem litros nesse mesmo metro quadrado.
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“Uma chuva como a que aconteceu recentemente em alguns lugares, com acumulado de 300 milímetros em um dia, é o mesmo que despejar a água de uma piscina olímpica em um quarteirão”, explica. “Pode ser São Paulo, Tóquio ou Nova Iorque, não há planejamento urbano que aguente uma precipitação dessas. Vai alagar e vai inundar muito.”
Defesa Civil precisa de estruturação e continuidade
Diante dos estragos de um evento climático extremo, o primeiro órgão a ser acionado é sempre a Defesa Civil. A falta de pessoal, estrutura física, veículos e equipamentos de trabalho, contudo, são entraves que dificultam ou mesmo inviabilizam essa atuação em alguns casos.
Dados do Projeto Elos, desenvolvido pelo Cemaden, mostram que 74% das defesas civis municipais da região Sul do Brasil têm apenas um ou dois integrantes na equipe. Outras informações do mesmo relatório chamam a atenção: 26% não possuem computador, 87% não possuem rádio comunicador, 71% não têm telefone exclusivo, 68% não têm veículos próprios e 59% não operam softwares de gerenciamento.
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Em termos de capacitação, a pesquisa mostra que 40% das equipes estão pouco capacitadas para identificar áreas de risco e 47% não sabem fazer a fiscalização de maneira adequada. “Nós estamos perdidos, com equipes pequenas, sem equipamentos, e com baixa capacitação”, avalia o especialista.
Além disso, ele cita como um grande problema a interferência política. Isso porque, tradicionalmente, os integrantes das defesas civis municipais são cargos comissionados e costumam mudar a cada novo governo municipal.
“Conheço muitos casos em que os agentes eram ligados ao partido ‘x’ e, após a eleição, que foi vencida pelo partido ‘y’, apagam o que havia no computador. Então, quando a nova equipe assume, precisa começar do zero porque não há informações.” Para Karmieczak, todos os agentes da Defesa Civil deveriam ser concursados e capacitados periodicamente.
Saiba mais
Natural de Santo Ângelo, Marcos Leandro Kazmierczak tem 59 anos. É engenheiro florestal, com mestrado em Sensoriamento Remoto e doutorado em Desastres Naturais. É especialista sênior em Geotecnologias, com 37 anos de experiência, mais de 400 projetos executados e 420 milhões de quilômetros quadrados mapeados. Também é diretor da Kaz Tech, uma startup de inteligência analítica geoespacial para mudanças climáticas. Entre 1976 e 1984, morou em Santa Cruz do Sul e estudou no Colégio Mauá. Atualmente, vive em São Paulo.
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