Rádios ao vivo

Leia a Gazeta Digital

Publicidade

Isolamento em família

Ágatha e o Curupira

Dentro da proposta de fugir um pouco aos temas da quarentena nesta coluna, reproduzo a seguir curioso e intrigante diálogo que tive com nossa caçula, Ágatha, alguns meses antes da pandemia. Sim, já faz bastante tempo, e até o mundo, na ocasião, era outro. Contudo, ainda lembro como se fosse hoje da expressão preocupada no semblante da caçula, quando me fez a seguinte revelação:
– Pai, não gosto muito de quando viajamos à noite. Só fico tranquila quando viajamos de dia.
– Ué? Por que, Ágatha?
– O escuro, fora do carro, é assustador. E tratou, então, de relatar o estopim de sua preocupação:
– Certa vez, no caminho, passamos do lado de uma floresta e vi, no meio das árvores, alguém com o cabelo pegando fogo. Acho que era o Curupira.
– Mas quem tem a cabeça em chamas não é a Mula-sem-Cabeça?
E a caçula deu um tapinha na própria testa, como se tivesse ouvido uma completa tolice.
– Ahhh, pai. Não sabe de nada… Não sabe que o Curupira tem os cabelos em chamas?

De fato, essa era nova para mim. Sabia que o Curupira tinha os pés virados para trás, mas não os cabelos em chamas. Decidi dar um Google e confirmei que ele tem cabelos bem vermelhos, mas não encontrei referência a fogo. Talvez a cor do cabelo tenha feito Ágatha se confundir, ou existam variações da lenda. Em todo o caso, preferi não entrar na polêmica e adotei um tom tranquilizador.
– Mas, Ágatha, o Curupira é o protetor da floresta e certamente sabe que somos, também, defensores da natureza. Será que ele nos faria algum mal?
– Sei lá – retrucou, já aborrecida.
– Quem sabe tu vai lá na mata e pergunta pra ele! – e virou as costas.

***

Publicidade

Por mais que o Curupira tenha a nobre missão de proteger as florestas, tão ameaçadas no Brasil, não me parece um anfitrião simpático a visitantes, sejam quais forem as intenções da visita. Lendas perpetuadas de Norte a Sul o apresentam como um ser meio truculento em suas punições, que podem variar bastante.

Em alguns casos, faz com que caçadores ou desmatadores percam-se na mata, atraídos por seus assovios misteriosos. Em outros, aplica-lhes boas sumantas de laço (ou pior).

O primeiros registros escritos sobre as peripécias do Curupira são do padre espanhol José de Anchieta, que aportou em terras brasileiras em 1553 e que se tornaria, anos depois, um dos fundadores de São Paulo e do Rio de Janeiro, além de pioneiro da nossa literatura. Em uma carta, resgatada pelo historiador e folclorista Câmara Cascudo, o padre jesuíta alerta que o Curupira surpreende os invasores no mato e aplica-lhes severos golpes de açoite. Fato curioso é que Anchieta, na carta, não lança dúvidas sobre a existência do estranho ser – pelo contrário, relata que alguns “irmãos” jesuítas teriam se deparado com índios vitimados pelo Curupira.

Publicidade

***

E agora vem um fato ainda mais curioso. Dias depois de nossa primeira conversa sobre o Curupira, a caçula me procurou para retomar o assunto. Por mais que o Curupira tenha a nobre missão de proteger as florestas, tão ameaçadas no Brasil, não me parece um anfitrião simpático a visitantes.

– Pai, agora eu até consigo falar com o Curupira. Às vezes, quando estou dormindo, consigo conversar com ele nos sonhos.
Olhei-a, intrigado.
– E sobre o que conversam?
– Ah… ele fala sobre a vida na floresta e eu conto como é morar em uma casa, na cidade.
– E ele? Gosta da vida na mata, ou preferiria se mudar para uma casa na cidade?
– Não sei… vou perguntar.
E foi até o quarto, onde se meteu sob as cobertas, na cama, para uma soneca. Mais alguns minutos, e estava de volta.
– Desculpe a demora. Desta vez havia uma fila de crianças querendo falar com ele.
– E então?
– Ele disse que talvez gostasse de morar na cidade, porque é difícil caminhar entre as árvores com o cabelo pegando fogo. Ele precisa tomar muito cuidado para não causar um incêndio na mata.
– Mas em uma casa também há riscos de incêndio…
– Sim. Mas em uma casa ele poderia, pelo menos, instalar extintores…

Publicidade

Aviso de cookies

Nós utilizamos cookies e outras tecnologias semelhantes para melhorar sua experiência em nossos serviços, personalizar publicidade e recomendar conteúdos de seu interesse. Para saber mais, consulte a nossa Política de Privacidade.