Cena 1:
Sexto filho de Carl & Ciss, o pequeno “Kuri” nos anos de 1960, na ampla área ao redor da casa na colônia alemã, corre atrás das amigas vizinhas com quem brinca quase todos os dias. Na divisa há uma cerca de pedras e uma delas cai justamente em cima de um dos expostos dedinhos do pé do menino. Uma parte do dedo e da unha fica apartada do principal, jorra sangue, chora o menino, grita, sai em disparada e pede socorro a quem mais o socorre, a querida mamãe. Ela está ocupada na cozinha com mil coisas a resolver e aí vem mais uma vez o “Kuri” com seus choramingos. – O que tu fez de novo?, reclama no primeiro instante e não dispensa uma chinelada bem dada, com a devida lembrança: – Da próxima vez cuida mais e não fica correndo adoidado por aí!. Tudo isso na língua que conhece (o dialeto alemão do Hunsrück), que sabe ser duro. Mas o coração bondoso de mãe não deixa de tomar logo as providências exigidas, que na colônia alemã de então se restringiam a uma boa aplicação de banha de porco sobre a ferida, que depois era protegida com um pedaço de pano de saco de açúcar amarrado ao redor, e pronto: – Agora para de chorar que logo vai ficar bom!. E até curou, porém, mais de meio século depois, o dedo continua torto e a unha dividida em duas partes, com direito a um calo que resiste a todas as intervenções.
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Cena 2:
O pequeno e único filho da neta Cissinha se machuca em grade de vala nestes dias de epidemia, confinado na casa dos avós, junto com os pais, e desata a chorar convulsivamente. A mamãe e o papai saem a correr e a mãezinha se derrete em paparicos: – O que foi, amor?, Onde dói, meu lindo?, Mamãe já vai cuidar!. E a vó emenda seus “oohs”, “o que aconteceu, meu príncipe?”. E vai pomada, sopro, remédio, curativo, promessas de “querido, tudo vai ficar bem!”. Pensa-se logo em ir para a emergência do hospital, mas o bicho-papão “coronavírus” está solto por aí e faz lembrar que é melhor ficar em casa.
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Pois, neste ficar em casa provocado pela epidemia, as manhas dos filhos únicos do tempo presente e os afagos e excessos protetivos das mães e avós de hoje estão a se revelar a todo momento, fazendo recordar ainda de como as coisas eram resolvidas em outras épocas, com outros tipos de ”carinhos”. O “Kuri” desses tempos e vô atual apenas olha a distância, arriscando-se a alguns pitacos e palpites, em meio a reflexões e mais alguns exemplos próximos: – Será que não estão mimando demais estes meninos de hoje?. – Dizem que tudo o que é demais não é bom, lembra ele ao pessoal de casa, enquanto faz suas leituras dos 100 melhores contos brasileiros e mantém o ouvido colado na boa música da 99,7 FM.
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Os seus pensamentos se expandem nestas horas e incluem mais um ditado: Tudo que é ruim traz consigo sempre algo de bom!. Assim como no passado da colônia alemã, em que a família unida em seu lar constituía o grande esteio da sociedade, – pensa ele –, quem sabe hoje, quando as famílias sofrem tantas fissuras e distanciamentos, um problema da saúde que exige maior recolhimento não possa renovar a boa integração familiar. Mesmo que também faça eclodir alguns estresses caseiros (afinal, ninguém é perfeito) – continua a refletir –, poderá trazer esse benefício, de se permanecer mais em casa, conciliar melhor trabalho e família, dar mais atenção aos seus. Ali, nos seus melhores prognósticos, a celebrada mãe, a rainha do lar, há de ser a referência de liderança sensível aliada à rigidez indispensável. Desta forma, por certo, não será qualquer ai, ai ou ui, ui que abaterá os rebentos formados nesse meio, a exemplo do filho da Ciss, que na infância do seu tempo aprendeu a não ter medo do futuro.
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(Crônica de maio de 2020, que integra o livro A manhã vai chegar, da Academia de Letras de Santa Cruz do Sul, disponível com acadêmicos, na Gazeta e em livrarias)
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