Uma entre várias cenas marcantes do filme sul-coreano Parasita, de Bong Joon-ho: o senhor Kim, que trabalha como motorista particular, leva a patroa para casa. No percurso, ela conversa com alguém ao celular. “Hoje o céu está tão azul e sem poluição… graças a toda aquela chuva de ontem. Foi uma verdadeira bênção!” Ao volante, Kim escuta em silêncio.
Na noite anterior, a mesma chuva havia inundado a sua residência, situada na parte pobre da cidade. Ele, a esposa e os filhos perderam seus bens e tiveram de pernoitar em um ginásio, ao lado de centenas de sem-teto. Bênção para alguns, maldição para outros. Enquanto ouve aquelas palavras entusiasmadas dentro do carro luxuoso, Kim parece imperturbável, mas sentimos que sua vontade é de gritar.
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“Como se pode esperar que um homem que sente calor compreenda um que sente frio?” No fundo, é sempre a questão enunciada pelo russo Alexander Solzhenitsyn em Um dia na vida de Ivan Deníssovitch. O livro é o relato de 24 horas na vida de Ivan, prisioneiro em um campo de trabalhos forçados na Sibéria, após ser condenado pelo regime stalinista. Fome e frio.
A fala de Parasita no início lembrou-me de outra, mais desconcertante por se assentar na realidade. Há duas semanas, uma médica recém-contratada para trabalhar em um hospital de Maués, Amazonas, publicou nas redes sociais vídeo que começava com a mensagem: “Eu comemorando que ‘tá’ chovendo na cidade. Minutos depois: criança atingida por um raio”.
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Em seguida, ela e uma colega passam a conversar alegremente, zombando de uma criança que aguardava na emergência. Ela tinha queimaduras causadas por um raio, e seus gritos perturbadores são ouvidos ao fundo.
“E aí? Tu vai suturar essa criança gritando?”, pergunta uma das médicas. “Isso mesmo. Parece que tá sendo exorcizada!”, diz a outra, aos risos. Que médicos ou enfermeiros façam suas piadas internas, isso não é novidade. Mas que se divirtam com o sofrimento de uma criança em postagens públicas, aí é outra história. Claro que as duas foram demitidas. Que paciente gostaria de ser atendido por elas?
Como uma pessoa que despreza vai compreender outra que sofre?
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