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UMA DÉCADA

Nenhum domingo foi o mesmo depois de 27 de janeiro de 2013

Há pouco mais de 3.650 dias, exatos 120 meses, 242 jovens deixaram o vazio em suas casas, em seus cursos universitários, em seus locais de trabalho, mas, sobretudo, no coração de seus familiares e amigos. 10 anos não podem ser mensurados quando se trata de saudade.

O dia 27 de janeiro de 2013 jamais será esquecido. São mais de 600 sobreviventes da tragédia do incêndio na Boate Kiss, em Santa Maria, que não conseguem apagar da memória o que viveram, um estado inteiro enlutado pela perda prematura de dezenas de vidas, os domingos que não são mais os mesmos. A noite que seria de comemoração na cidade universitária transformou-se na maior tragédia do Rio Grande do Sul.

Os ibaramenses Marton Matana e Mônica Andressa Glanzel partiram naquele 27 de janeiro. As lembranças são o que fortalece a caminhada dos familiares. Reviver aquele dia e os que se sucederam é doloroso, mas falar sobre os filhos e seus tantos sonhos faz com que os pais Margarete e Jair Matana e Nelga e Sildo Glanzel encontrem forças para expressar todo o amor guardado no peito.

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“A dor não passa nunca”

Marton Matana tinha 21 anos à época. Cursava o 6º semestre de Engenharia Florestal na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Pessoa alegre, tinha facilidade em conquistar quem estivesse ao seu redor. Apaixonado pela natureza, aos finais de semana uma de suas atividades preferidas era pescar. Gremista, desde pequeno também gostava de jogar futebol e bocha com os amigos. E estes, não faltavam, eram muitos.

Marton Matana se aproximava da formatura no curso sonhado

Casados há 33 anos, Margarete Neu Matana, 51 anos, e Jair Antônio Matana, 58 anos, residentes na localidade de Cerro Preto, tiveram dois filhos. Marton era o mais velho, estaria com 31 anos de idade. Seu irmão mais novo é Mateu, com 28 anos, com quem dividia seus dias, alegrias e desafios. “Estavam sempre juntos, menos naquela noite. Eram para estar, mas o Mateu não foi”, recordam os pais.

Conforme Jair, formar-se engenheiro florestal era tudo o que o filho queria. Dona Margarete ressalta que o filho nunca reprovou em nenhuma disciplina. “Era o sonho dele se formar e ficar em Santa Maria. Era a paixão dele. Os colegas daqui, que ele podia, incentivava para irem para lá. Já estava com metade da formatura paga. Nunca queria dinheiro de casa, só o necessário. Ele trabalhava como monitor na faculdade e se mantinha com o que fazia”, revelam.

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De família com origem na agricultura, Marton auxiliava os pais na lavoura, especialmente no plantio e colheita do tabaco. Já estando em Santa Maria, aos finais de semana retornava para Ibarama para contribuir na propriedade e ficar próximo dos seus.

Naquele 27 de janeiro, conforme lembra o pai, em período de safra, levantou de madrugada para fazer fogo no forno de tabaco. “Minha mãe era viva na época, então eu disse pra ela, liga o rádio pra ver se não dá nenhuma notícia extraordinária. E ela ligou a televisão primeiro e já estavam noticiando. Então começamos a ligar para o Marton e ele não atendia. Ligamos para o irmão dele, que já estava procurando por ele, mas nos escondeu no início. Ele disse que ele tinha perdido o telefone na correria, mas que estava tudo bem”, ressalta Jair. Conforme Margarete, naquele instante tudo o que queria era falar com Marton.

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Mateu, com 17 anos, já estava percorrendo todos os hospitais à procura do irmão. “Então ele nos disse para irmos devagar, que estava tudo bem. Quando chegamos em frente ao apartamento onde eles moravam, na Casa do Estudante, por volta das 9 horas, estava todo mundo chorando, aí já deu pra perceber a gravidade”, recorda Jair.

Daquele momento em diante o desespero tomou conta. Com a confirmação da morte de um amigo com quem Marton sempre estava junto, o pensamento já se voltou para o pior. O carro do filho estava em frente ao apartamento. A decisão dele e da namorada em irem na boate foi de última hora, e foram na companhia deste rapaz. Um fim de semana antes o filho esteve em casa, auxiliando na lida e antecipando o trabalho, para no fim de semana seguinte permanecer na cidade universitária. “É difícil. Eu até achava que ele podia estar no hospital, não queria nem acreditar. Essa cena nunca mais sai da cabeça. Depois daquela hora não tem mais o que fazer”, conta a mãe sobre a dor, imensurável, do momento em que fizeram o reconhecimento do filho.

O pai menciona que nenhuma data teve o mesmo sentido. “Dia dos Pais, das Mães, Natal, Ano Novo, nunca mais teve festinha. Esses são os piores momentos pra gente”. “A vida acaba junto. Não são só os jovens que morrem, as pessoas morrem junto. Falando ninguém entende”, acrescenta a mãe.

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Segundo os pais, Marton era uma pessoa sempre de bem com a vida, buscava ajudar todo mundo. “No dia do velório muita gente esteve aqui, muitos amigos, professores, vice-reitor. Eles gostavam muito dele, era uma pessoa muito bem vista”.

Margarete e Jair lembram da simplicidade do filho e sua paixão pela natureza

O outro filho não conseguiu se formar, tentou mudar de curso, retornar, mas as marcas da perda do irmão e grande companheiro não permitiram concluir a graduação. “A dor fica, essa não passa nunca. Se tu não lembra dele num dia, no outro tu te culpa porque tu não lembrou”, frisa o pai. “Ele tinha plantado tantos girassóis. Depois quando floresceu, tudo lembrava ele”, acrescenta a mãe. A fé tem sido a base para tentar seguir em frente. “É preciso se apegar em algo para continuar a vida. Para nós ele era tudo, um tesouro”, salientam Margarete e Jair.

“É um vazio muito grande”

Mônica Andressa Glanzel estava no primeiro semestre do curso de Licenciatura em Matemática, também na UFSM. Há pouco tempo havia completado 18 anos e dava início à trajetória para a realização de seu grande sonho, ser professora de Matemática.

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Mônica Andressa Glanzel sonhava em ser professora de Matemática

Seus pais, Nelga da Silva Glanzel, 52 anos, e Sildo Glanzel, 62 anos, casados há quase 35 anos, moradores de Linha Um A na época, trabalhavam com marcenaria, ofício em que Mônica gostava de auxiliar, assim como nos afazeres de casa.

Segunda filha do casal, ela era o xodó do irmão Ronan Alan Glanzel, hoje com 31 anos, e chegou para completar a família. “É difícil resumir em palavras porque eu e ela era unha e carne. A gente estava todos os dias juntos antes dela ir para Santa Maria, quando o contato também migrou para as redes sociais, por conta da distância. Mas fim de semana sempre estávamos juntos”, lembra o irmão.

Dedicada aos estudos, aos 17 anos alcançou o objetivo. “Quando ela concluiu o Ensino Médio passou em 1º lugar no vestibular para Matemática. As aulas, devido a greve, haviam iniciado em outubro de 2012. Ela estava bem no início do curso”, conta a mãe.

De bom humor, Mônica gostava de ouvir música, rádio, estar em meio aos amigos e participar de bailes e eventos. “Naquela semana ela voltou para Santa Maria na terça-feira e comentou comigo que tinha uma festa no sábado, mas não disse onde era. A gente preparava tudo para levar. Lembro como se fosse hoje, parece que estava tudo para acontecer. Ela sempre foi muito destrinchada, e naquele dia parece que ela não saia do lugar. Lembro de como ela saiu de casa, como se despediu, de eu acompanhá-la até a guarita para esperar o ônibus. No sábado de meio-dia conversei com ela, porque no dia anterior ela tinha uma prova e me ligou dizendo que tinha ido tudo bem. Estava faceira, como era sempre”, relembra a mãe sobre os últimos momentos em que falou com a filha, sem jamais imaginar o que se sucederia.

Na manhã de domingo, dia 27 de janeiro, ao acordar, Nelga foi ordenhar as vacas, como de costume. “De repente tocou o telefone. Isso tudo é um filme que passa na nossa cabeça. Fui atender e caiu. Depois fui atender de novo e era um vizinho nosso, que contou o que havia acontecido em Santa Maria e então perguntou se a Mônica estava lá na cidade. Nesse momento me senti mal, não tinha noção de onde eu estava, mas até aquele momento não sabia se era o mesmo lugar da promoção onde ela havia ido”, relata a mãe.

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Foi então que Nelga ligou para o telefone da filha e ninguém atendeu. “Depois ligaram para o meu número, com o telefone dela. Até na hora disse ‘oi filha’, mas era uma colega dela, pois estavam procurando por ela, até quebraram a porta do apartamento e acharam o celular em cima da mochila. Na hora passa tudo na cabeça. A gente se preparou, queria ir logo pra lá. E fomos. Passamos o dia todo indo nos hospitais de Santa Maria, meus irmãos em Porto Alegre. Foi já à noite quando ficamos sabendo da realidade”, recorda a mãe, que disse que já sentia algo diferente, como se pressentisse que o pior havia acontecido.

O irmão Ronan acompanhou os pais ao longo de todo o dia e na viagem até Santa Maria naquela manhã, escutando pelas ondas do rádio as atualizações sobre a tragédia e os números de vítimas que aumentavam com o passar do tempo. “Ficamos muito assustados já antes de chegar em Santa Maria com as informações que iam sendo passadas”, pontua.

As recordações da jovem, segundo a família, estão presentes nas ações cotidianas. É o cheiro, o sorriso, a forma como a filha se expressava. “Ela era demais, demais. Uma guria muito querida. Não tem nem palavras. Ela era incrível. Ela deixa muitas marcas. Fazia amizades muito fácil”, enfatiza a mãe.

Nelga e Sildo recordam da filha e sua alegria que contagiava a todos

Conforme Nelga, uma professora de Mônica lhe contou sobre uma passagem ocorrida em sala de aula. “Ela gostava muito de conversar, falava demais, mas também tinha muita facilidade para pegar o conteúdo. Então a professora comentou que iria colocá-la mais para frente e diz que ela respondeu, ‘eu vou ser muito lembrada, prof.ª! Vou ser muito lembrada’. Aquelas palavras ficaram marcadas e não se entendia o porquê. Hoje a gente para e pensa, como?”.

Nelga acredita que a filha é quem dá forças para a família seguir em frente. “Tem dias que não é fácil. A gente se apega nisso, bastante. Ela sempre foi preocupada, ajudava em tudo”, revela a mãe.

Ainda, segundo Nelga, a partida da filha deixou um vazio muito grande na família. “Toda aquela preocupação que a gente tinha, aquela sensação de ouvir a porta batendo quando chegava em casa, isso não existe mais. Ela adorava festa, mas também sempre estava em casa. Difícil um fim de semana que não vinha de Santa Maria para cá. Ela era muito companheira”.

Para o irmão as lembranças não têm dia certo para vir a tona e costumam trazer os bons sentimentos pelos momentos vividos. “Geralmente é quando a gente gostaria de compartilhar algo com a pessoa, dividir alguma alegria, contar sobre uma conquista, fazer algum desabafo. É nessas horas que as lembranças vêm e machuca mais, mas graças a Deus são lembranças de coisas boas”, revela Ronan.

Para ele Mônica será sempre lembrada como uma pessoa alegre. “Ela era incrível, não tinha tristezas, estava sempre disposta, dando risada e querendo fazer os outros rirem também. Com certeza também tinha seus momentos ruins, como qualquer pessoa tem, mas era uma pessoa com um astral incrível, quem fazia amizade com ela logo se identificava. Queria os outros bem antes de tudo”.

Uma década se passou, mas, para a família, o tempo não parece ter a mesma contagem desde então. “Parece que não é 10 anos. São sonhos que se foram. A gente relembra ela chegando ou saindo com as malas. É muito difícil. Dentro do nosso coração é uma ferida que não cicatriza. Falta um pedaço. Ela só deixou coisas boas. A gente tem que se apegar bastante em Deus”, salientam os pais, que encerraram as atividades da marcenaria e mudaram-se para a cidade.

A sensação de injustiça ainda permeia os dias das famílias, que vivem na angústia por saber que os filhos não retornarão mais, mas que esperam que tragédias como esta jamais se repitam. “Esse filme vem volta e meia. Não temos como esquecer, nem podemos. Temos que lutar para não acontecer com outros jovens. São 10 anos que se passaram e a gente não tem um retorno de nada, justiça muito menos”, salienta Nelga.

“Nem um domingo será como antes
E eu que sempre achei que fosse imortal
Vem você me mostrar que nossa vida é um instante
Nem um domingo será como antes”

Canção Um Novo Domingo de Sol

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