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AÇÕES AFIRMATIVAS

Em meio a avanços e conquistas, Lei de Cotas voltará a ser debatida

Foto: Agência Brasil

Em agosto, a Lei de Cotas (12.711/2012) completou dez anos. Sancionada em 2012, ela prevê que as instituições federais de educação superior, de ensino técnico em nível superior e médio reservem, no mínimo, 50% de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. Em cada categoria de renda, há vagas reservadas para pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência.

A norma prevê uma análise da política pública dez anos após a sua implementação, o que reabre o debate sobre reserva de vagas para negros e indígenas em universidades. Para o professor doutor em Direito Constitucional da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), Ricardo Hermany, é possível que a lei seja revista em 2023. “Como neste ano não tem ambiente político no País, porque estamos em plena eleição e depois tem ainda o que chamamos de ressaca eleitoral, eu estimo que essa análise seja feita em 2023.” 

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Ele entende que a lei trouxe avanços, porém, ainda não atingiu o objetivo que é oferecer uma proporcionalidade entre a população afrodescendente e os formados no ensino superior afrodescendentes. “É uma política pública que deve continuar, mas o próprio Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que ela não pode ser eterna e precisa ser regularmente avaliada. Deve se manter hoje porque não se atingiu o objetivo. Talvez em uma década possamos até entender que se resgatou esse débito histórico, mas é muito importante que se diga que nosso débito é secular e não se resolveria com uma década de ação afirmativa”, completa.

Hermany lembra que, quando cursou Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), não tinha colegas afrodescentes, realidade que a lei de cotas quis mudar. “Sempre se questiona se essa lei é constitucional e se ela atinge o princípio da igualdade ou não. Bom, a Constituição não fala de uma igualdade formal, ela fala de uma igualdade material, ou seja, falarmos apenas de igualdade formal é fecharmos os olhos para uma dívida secular que temos com os afrodescendentes.”

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O professor ressalta que a Constituição busca reconhecer que existe desigualdade para, dessa forma, dar o apoio do Estado àqueles que estão em uma posição de maior dificuldade e oferecer instrumentos para que possam atingir uma igualdade material. 

Social

Em fevereiro deste ano, o deputado federal Kim Kataguiri (DEM-SP) apresentou o Projeto de Lei 4125/21. O texto propõe que as cotas para ingresso nas universidades públicas federais sejam destinadas exclusivamente aos estudantes de baixa renda. A chamada cota social, no entanto, é vista como um retrocesso por Ricardo Hermany. “Não vejo condições sociopolíticas de o Congresso aprovar um retrocesso desse tamanho, até em função do sucesso que a lei de cotas atingiu. Não tenho dúvida em dizer que a lei está resgatando esse débito histórico que a sociedade brasileira tem.”

Na análise do professor doutor Ricardo Hermany, a regra das cotas é constitucional | Foto: Rafaelly Machado/Banco de Imagens/GS

O resultado do censo de 2022, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), será um marco, explica o professor. “É muito importante, não só para medir a população, mas para ver também qual o resultado dessa política pública. Que está avançando, isso é inegável, mas chegamos já no resultado almejado?”, questiona.

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“Cotas devem continuar para a construção da igualdade”

Quando Felipe Pires Oliveira ingressou no curso de Direito da Faculdade Metodista de Santa Maria (Fames), em 2005, concluindo em 2010, a Lei de Cotas não era uma realidade no Brasil. Mesmo assim, à época, ele entrou no curso com bolsa 100% como a primeira instituição privada do Estado a aplicar sistema de políticas afirmativas por meio do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab). 

Mais tarde, fez outros cursos de graduação e especialização. Em 2021, no mesmo ano em que passou pela seleção para o mestrado em Direito na Unisc, fez seleção para o mestrado em Ciências Sociais – Políticas Públicas, pela federal Unipampa, utilizando o sistema de políticas afirmativas para acesso na pós-graduação do ensino superior e aperfeiçoamento. 

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Ele conta que foi o primeiro da família a ingressar no ensino superior e prestar seleção para doutoramento. Oliveira salienta que, quando se formou, eram poucos os advogados negros. “Era comum as pessoas me confundirem com pastor evangélico, motorista ou até como segurança particular. Ainda hoje isso acontece, mas em menor proporção, por isso a necessidade da manutenção das cotas raciais.”

Primeiro da família a cursar ensino superior, Felipe Oliveira destaca a oportunidade

Para ele a cota não isola, mas permite que um grupo inteiro se movimente. “É uma forma de combate à exclusão e discriminação. A Lei de Cotas chacoalhou a República. O Brasil definitivamente se posicionou na promoção de ações para consolidar esse momento tão importante. Enquanto o ensino de base não for de qualidade para todos, precisaremos do sistema de cotas.”

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Oliveira frisa que é favorável à manutenção e aprimoramento da lei. “A Lei de Cotas foi a política mais efetiva já construída no sentido de produzir uma diversidade e fazer com que grupos, que historicamente estavam fora das universidades, chegassem até esses espaços. É um balanço positivo, e as cotas devem continuar para a construção da igualdade.”

Mesmo com os avanços, ele ressalta que faltam estratégias de manutenção de programas de cotas, para alavancar não somente os estudos, mas a carreira profissional. “A desigualdade identificada no mercado de trabalho tem diferentes razões, todas elas motivadas pelo racismo estrutural, que impõe diferenças em diversos aspectos da vida de pessoas brancas e pretas, como o acesso à educação e ao trabalho.”

Conforme ele, apesar da maior presença no mercado de trabalho, o preconceito é sentido por negros e pardos. “Segundo uma pesquisa do IBGE, 52% desses profissionais já sofreram algum tipo de discriminação”, detalha o advogado.

“Eu tenho que ser a regra”

Em abril de 2019, foi sancionada a lei que prevê a reserva de cotas para negros em concursos públicos em Santa Cruz do Sul. Após a sanção, foi realizado o primeiro concurso público com cotas raciais. 

A presidente do Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial (Compir) de Santa Cruz, Vera Lúcia da Silveira, faz parte da comissão de heteroidentificação. “Eu tenho que olhar os traços negroides dos candidatos. Além de ele ter que se inscrever, mandar foto, fazer autodeclaração, o candidato também precisa sentar na nossa frente, e temos que olhar cada fio de cabelo.”

Mas além desse processo, que faz parte do cumprimento da lei, Vera considera o avanço em Santa Cruz muito positivo. “Temos entre 75 e 80 nomeações de pessoas negras neste primeiro concurso. Cada pessoa negra nomeada é uma comemoração. É um alento, porque eu sei que elas vão entrar pela porta da frente”, menciona.  

Além das ações afirmativas no ambiente acadêmico, as cotas para o mercado de trabalho também são importantes. “Para a empregabilidade, não temos cotas. Por causa do racismo estrutural, os cotistas saem da universidade e seguem tendo dificuldades em concorrer com uma pessoa branca”,
completa Vera.

Vera Lúcia da Silveira e Tatiana Schuster acreditam que lei deve ser permanente | Foto: Caroline Garkse

Em relação às cotas na educação superior, conforme a vice-presidente do Compir, Tatiana Santos Schuster, é necessária a revisão para se investir mais em políticas públicas que objetivem manter a lei. “E também para que se faça uma política para que se consiga deixar a pessoa negra nessa condição de estudante, porque muitas vezes o estudante consegue a aprovação, mas e sua manutenção? Dependendo do curso, vai precisar estudar o dia inteiro”, diz.

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Para a advogada, é uma conta que não fecha. “Os negros são 54% da população brasileira. Por qual razão essa população não está ocupando os espaços de poder e de decisão? Se somos 54% da população, eu não posso ser exceção, eu tenho que ser a regra”, frisa Tatiana.

Em Santa Cruz do Sul, o Compir já alcançou avanços, como a própria lei de cotas em concurso público do município. O objetivo agora é conseguir formar uma secretaria ou coordenadoria de direitos humanos, igualdade e equidade racial. “Não podemos acessar recursos federais porque não temos em Santa Cruz órgão de governo. Precisamos ter conselho municipal, que já temos, e um órgão de governo”, observa Vera Lúcia. Para ela, tal conquista seria um divisor de águas no município.

Neste ano, está sendo realizado o censo do IBGE. Segundo Tatiana, será possível ver uma diferença com pessoas negras formadas em cursos superiores. “Marco zero não vai ser, mas com certeza já vai ter um sinal de que está funcionando. Daqui a pouco, os dados vão poder nos auxiliar a perceber onde estamos retrocedendo e onde estamos avançando.”

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