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RELIGIÃO E MONARQUIA

A coroa e a mitra: o fio tênue entre Londres e o Vaticano

O Duque de Norfolk é o católico responsável pelas principais cerimônias da realeza britânica

Enquanto o coro da Abadia de Westminster entoa “Zadok the Priest” (Zadoque, o Sacerdote), composição de Händel usada em coroações britânicas há três séculos, o Arcebispo de Canterbury, primus inter pares (primeiro entre iguais) dos bispos anglicanos, unge o novo monarca, em uma cerimônia eminentemente religiosa. Em coroamentos e exéquias, como no recente funeral de Elizabeth II, a responsabilidade de organizar e coordenar os grandiosos eventos da realeza britânica recai historicamente sobre o Conde Marechal (Earl Marshal), cargo ocupado desde o século 16 pelo mais graduado nobre inglês, o Duque de Norfolk. Paradoxalmente, os duques de Norfolk jamais se converteram à Igreja da Inglaterra, permanecendo fiéis aos papas e ao catolicismo.

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Henrique VIII fez a reforma anglicana

Pouco se fala sobre a complexa relação, hostil no passado e hoje bem mais amena, do Reino Unido com a Igreja Católica. Em 1534, o Rei Henrique VIII decidiu romper com Roma, criando a Igreja Anglicana e proclamando a si mesmo como cabeça da nova denominação. O intuito era driblar o Papa Clemente VII, que o havia proibido de se divorciar de Catarina de Aragão e de se casar com Ana Bolena, com quem Henrique esperava ter um herdeiro.

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Além do motivo relativamente fútil para a cisão, estava implícito o desejo de se livrar definitivamente do poder de Roma, no que pode ser considerado o primeiro Brexit. Quando, dois anos depois, Henrique decidiu se safar também de Ana, que igualmente não lhe dava filhos, optou por uma decisão não menos radical, mandando decapitar a esposa.

Por gerações, a Igreja Católica Romana foi considerada uma ameaça à monarquia e à própria nação. Em 1570, o Papa Pio V declarou como herética Elizabeth I, a herdeira de Henrique VIII, e a excomungou. A retaliação foi imediata, com punição aos católicos que não participassem de cerimônias anglicanas e pena de morte aos que protegessem padres católicos, além de legislação específica que proibia os católicos de ascenderem ao trono.

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O parlamento inglês, temeroso da crescente influência papal e dos frequentes casamentos de reis ingleses com princesas católicas, decretou em 1673 que todos os oficiais civis e militares fizessem um juramento negando a transubstanciação. Na mesma época, em um famoso exemplo de fake news, o chamado “Complô Papista” denunciava uma suposta conspiração papal para assassinar Charles II, suscitando uma onda de histeria anticatólica. Apesar disso, os sucessores de Henrique VIII nutriram certa fascinação por Roma. Alguns deles, como o próprio Charles II em seu leito de morte, se converteram ao catolicismo. Seu sucessor ficou no trono por somente três anos, e o parlamento, com medo de um novo reinado Stuart, convidou o príncipe protestante holandês Guilherme de Orange a assumir o trono. Somente no final do século 18 iniciou-se uma leve distensão, sendo permitido aos católicos comprar terras e professar sua religião em solo inglês.

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Finalmente, no início do século 20, graças à pressão de milhares de irlandeses que emigraram para a Grã-Bretanha, caiu a lei que exigia a negação da transubstanciação e Eduardo VII, que era afeto ao catolicismo, pôde visitar o Papa Leo XIII em Roma, embora o tenha feito de forma privada, e não como monarca. Alguns dizem que também ele teria se convertido pouco antes de morrer.

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Rainha Elizabeth II, ao longo de seu reinado, encontrou cinco papas no Vaticano, entre eles João Paulo II

Os 70 anos de reinado de Elizabeth II ficaram marcados pela aproximação inédita entre o Vaticano e a Igreja Anglicana. Vestindo preto, como manda o protocolo eclesiástico, a Rainha visitou cinco papas na península italiana e recebeu João Paulo II em Londres (1982) e Bento XVI em Edimburgo (2010). Sua fé cristã impressionou os papas que com ela estiveram. Enquanto Elizabeth I havia sido chamada por Pio V no século 16 como “falsa Rainha da Inglaterra e serva do crime”, Elizabeth II é comumente descrita nos corredores do Vaticano como “a última monarca verdadeiramente cristã”. Na cripta sob a Basílica de São Pedro, um monumento à dinastia Stuart inclui os túmulos de um cardeal e de um príncipe da família de James II.

A coroação de Elizabeth II, em 1953

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Em 2013, a proibição aos católicos de ascenderem ao trono foi finalmente extinta, embora permaneça a exigência de que a pessoa coroada como Defensora da Fé (anglicana) não seja católica. Enquanto isso, o católico Duque de Norfolk, em seu papel de Conde Marechal, seguirá presidindo funerais e coroações da realeza britânica, símbolo vivo de que, apesar de toda a hostilidade mútua do passado, a separação entre as monarquias britânica e papal jamais foi absoluta.

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A ponte entre Londres e Roma, que sofreu violentos ataques e esteve por vezes perto de ruir, restou fortalecida no reino de Elizabeth II, e, quem sabe, guarda tempos ainda mais promissores com seus descendentes.

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