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A vida depois da condenação à morte

Foto: Lula Helfer

Salman Rushdie foi condenado à morte

Talvez nem o mais imaginativo e revolucionário romance (ou qualquer outra peça de ficção) pudesse ter dado conta do que aconteceu com o escritor indiano Salman Rushdie na vida real. No seu caso, não foi a arte que imitou a vida, mas a vida que ultrapassou a qualquer limite, fronteira ou pretensão da arte. Em 1989, por causa de um de seus romances, Os versos satânicos, foi literalmente condenado à morte. A criação determinou em definitivo a vida do criador. Por anos, teve de viver oculto.

Até que, finalmente, cansou de ficar escondido e voltou a público, decidido a retomar um mínimo de rotina social. Tudo seguiu relativamente bem até o último dia 12 de agosto, quando um seguidor do Islã, paradoxalmente chamado Hadi Matar, de 24 anos, o atacou e o esfaqueou, na cidade de Chautauqua, no estado de Nova Iorque. O escritor que achava que tinha recobrado o domínio sobre sua própria trajetória percebeu que a história que inventou seguia envolvendo-o num enredo, sui generis, de maldição real.

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Rushdie sobreviveu, mas é de se questionar até que ponto a própria arte, concebida em todas as suas versões e variações, sobreviveu. Se não sofreu irremediavelmente um atentado. A partir do momento em que um artista (escritor, pintor, músico, ator) tiver de morrer em decorrência de sua criação, por sua própria arte, por sua imaginação criadora, é de duvidar se antes disso a própria humanidade, ou qualquer coisa que se queira entender por tal, já não sucumbiu.

Salman Rushdie, aos 75 anos (ao menos ainda seguia vivo quando este texto estava sendo escrito, e os boletins médicos sinalizavam que ele sobreviveria e estava fora de perigo, o que quer que isso queira dizer ou se queira entender por tal), é, de certo modo, a síntese definitiva, o símbolo da derrocada de nossa civilização. Quando levamos as coisas ao pé da letra, quando vamos às vias de fato e eliminamos tudo e todos que não se enquadrem em nossa forma de pensar ou em nossas pretensões, é porque nos animalizamos mais do que os animais, que de repente estão sendo humanizados por nós, talvez até por um instinto nosso de quase sobrevivência. Hoje, precisamos que os animais cumpram o nosso papel de afeto e ternura, porque nós, os humanos, já deixamos claro, com nossa simples identificação, de que disso já não somos mais capazes.

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Rushdie nasceu em Bombaim (atual Mumbai), na Índia, e fez seus estudos na Inglaterra. Surgiu na literatura com muita força, ao lançar Os filhos da meia-noite em 1981, com o qual arrebatou o Man Booker Prize. Então, em 1989, lançou Os versos satânicos. A 14 de fevereiro daquele ano, o Aiatolá Khomeini, líder supremo do Irã, decretou uma fatwa (uma condenação à morte) contra ele. A ironia é que quem morreu, meses depois, em 3 de junho de 1989, foi o próprio Khomeini. Rushdie sumiu, se escondeu, por anos e anos. Soube-se, por um livro, que adotara o pseudônimo de Joseph Anton, como revela num de seus romances.

Em 12 de maio de 2014, Rushdie esteve em Porto Alegre, para palestra no Fronteiras do Pensamento. Eu e o fotógrafo Lula Helfer lá estivemos, para acompanhar a visita. A foto que ilustra esta página foi captada por Lula no Salão de Atos da Ufrgs. Esteve lá um autor feliz, sereno, sorridente. Sem medo.
Com medo deveríamos estar nós, a nossa civilização, numa tentativa desesperada de entender o que, afinal, está acontecendo conosco. Onde foi que nos perdemos de nós, da nossa essência, de nossa humanidade, para nos animalizarmos a ponto de nos caçarmos, como animais, em uma savana urbana e numa cruzada sem fim e sem remissão?

Rushdie, pelo visto, vai sobreviver ao atentado. Escritores, artistas parecem ser mesmo meio eternos, de ficção, nem que seja na própria obra. Até porque Khomeini já não existe, nem Hadi Matar uma hora existirá. Civilizações inteiras ruem. Não importa o que haja, o que se faça, Os versos satânicos ficarão. E, mais até do que antes, serão lidos. Sempre lidos.

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Novo romance

Por vias que só o mistério ou a arte explicam, o mais recente romance de Rushdie, Quichotte, lançado no Brasil pela Companhia das Letras, editora de toda a sua obra por aqui, tinha seu enredo estabelecido sobre uma tênue linha de vertigem. Era como se, cavaleiro andante à moda contemporânea, o autor sinalizasse estar saindo por aí numa tentativa vã de combater moinhos que, sabedor de verdades maiores, bem sabia serem miragem. Em tempos fluidos e de completa e absoluta inversão de valores, só mesmo um personagem marcado pelo nonsense e pela insensatez poderia traduzir as coisas como vão, o mundo de agora.

Em Quichotte, numa óbvia recriação do enredo de Cervantes, um escritor indiano radicado nos Estados Unidos cria um cavaleiro andante moderno, que sai de carro pelo país em busca de sua hipotética amada. Rushdie se fixou nos EUA em 2000. E foi por lá que, depois de andar por esse mundão sem fim, deparou-se com um justiceiro decidido a liquidar com o autor, ainda que liquidar com a criatura seja um pouco mais complicado (ou até mesmo impossível).

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