Ao longo do ano de 1953, uma adolescente santa-cruzense, em vias de completar 15 anos naquele setembro, já evidenciava em um jornal estudantil do colégio no qual estudava os dotes de escrita que, mais tarde, a consagrariam como uma das mais importantes autoras brasileiras. No periódico, cujo título era O Estudante, ela exercitava pensamentos e textos que já demonstravam uma intuição, uma qualidade e um apuro muito além do normal para a idade.
Ela assinava, então, Lya Fett, e integrava a equipe que produzia o jornal, no 12º ano de existência dele, tendo como regente a professora Ilda Borowski e como diretores Renato Becker e Alvaro Costa. Décadas mais tarde, e já radicada em Porto Alegre, ela publicaria livros como Lya Luft, a partir de seu casamento com o linguista Celso Pedro Luft. E projetaria o nome de sua terra natal, até vir a falecer em 30 de dezembro de 2021, aos 83 anos, morte ocorrida há um mês neste domingo.
O Estudante na verdade era o “quinzenário” do Grêmio Cívico-Literário José de Alencar, no Colégio Visconde de Mauá, atual Colégio Mauá. Quem zela pelas preciosidades daquelas publicações é a diretora do Museu do Colégio Mauá, professora Maria Luiza Schuster. O acervo está no prédio da Rua Marechal Floriano, na frente da Praça da Bandeira e do prédio da Prefeitura. Ali, na década de 1950, quando a jovem Lya estudava, era justamente a sede do colégio. Ela era filha de Arthur Germano Fett, professor e depois fundador do Curso de Direito na cidade, e de Wally Neumann Fett. A família residia a duas quadras do educandário, na esquina das ruas Marechal Floriano com Galvão Costa, no no 415 que hoje corresponde à sede do Sindicato Interestadual da Indústria do Tabaco (SindiTabaco).
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De lá, a jovem Lya seguiria pela Rua Marechal Floriano acima, e em questão de poucos metros estaria no Colégio Visconde de Mauá. Curiosamente, quase sete décadas depois, exemplares do jornal estudantil que Lya ajudou a elaborar estão recolhidos ao Arquivo Histórico que funciona exatamente no mesmo ambiente. Maria Luiza recorda que o prédio de dois andares da esquina da Floriano com a Borges de Medeiros, no qual hoje está a Iluminura, no térreo, havia sido concluído há pouco no início da década de 1950. “Aquela construção foi inaugurada em 1949”, refere, com o auditório no segundo andar, ampliando a estrutura das salas da escola que se estendia ao longo da Borges de Medeiros. No interior da quadra ficava o amplo espaço de recreio, ainda existente aos fundos do Museu. Uma foto da época mostra Lya em destaque à frente de um grupo de estudantes em desfile por ruas da cidade.
Seis anos após a experiência no jornal estudantil, Lya se transferiu a Porto Alegre, e lá começou a cursar Pedagogia e Letras Anglo-Germânicas na PUCRS. E ensaiava os primeiros passos numa igualmente exitosa carreira de tradutora a partir do alemão e do inglês. Exatos dez anos após os textos publicados em O Estudante, ela se casou com seu então professor Celso Pedro Luft, e dois anos mais tarde, em 1965, deu à luz sua filha Suzana (viriam ainda o André, no ano seguinte, falecido em 2017, e o Eduardo, em 1969).
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Textos já trazem marca diferenciadora
Para Maria Luiza Schuster, é curioso e digno de emoção constatar o quanto a jovem Lya já deixava transparecer, nos textos que assina no jornal, como Lya Fett, o virtuosismo da futura escritora consagrada. “Chama muito a atenção a maneira como ela escreve. É o tipo de texto que conquista logo a gente. E ela revela uma espécie de tino, de tom, de liderança incomum”, frisa. Seus poemas e seus textos se destacam junto à equipe de redatores, na qual ainda estão nomeados, para o ano de 1953, mais três colegas: Gertrud Schreiner, Ragnar Thoferhn e Alraune Merten.
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Muitos dos textos mais “densos”, de “fundo” ou de efemérides trazem justamente a assinatura de Lya. Na edição de 15 de outubro de 1953, apresenta o que chama de “1ª composição de uma série”, sobre “José do Patrocínio, o apóstolo da abolição”, e ali assina Lia, com “i”. “Descansa em paz, tu que de toda uma raça terás sempre a merecida gratidão”, fecha. Há alguns particularmente inspirados, repletos de poesia e de imagens que enternecem.
Por exemplo, “Sonho de Bailarina”, publicado em 31 de agosto de 1953, apenas duas semanas antes do aniversário de 15 anos de Lya. “Quando li as primeiras frases, logo fui conquistada por esse texto”, afirma Maria Luiza. “Ouve isso: ‘É noite e brilha a lua. Uma noite de verão, tranquila e perfumada, e dorme o parque, sob o lençol branco do luar”’, declama Maria Luiza. “Não tem como não se deixar tocar. É pura poesia, um ritmo que estaria presente mais tarde nos melhores livros da escritora já madura e consagrada.”
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Temas de uma época
O quinzenário O Estudante, frisa Maria Luiza Schuster, circulou por vários anos entre os estudantes e a equipe de diretores, professores e funcionários do atual Colégio Mauá, sendo produzido pela equipe do Grêmio Cívico Literário José de Alencar. Esse grêmio segue até hoje com o mesmo nome, em homenagem ao escritor cearense, nascido em 1829 e falecido em 1877, expoente do Romantismo brasileiro, autor de clássicos como Iracema e O Guarani. O mesmo autor empresta seu nome à biblioteca do colégio.
O jornal interno, no início da década de 1950, possuía edições com quatro ou oito páginas, conforme a disponibilidade de verba, do colégio ou de apoiador ou patrocinador (houve publicidade de empresas locais inclusive). Do ano de 1953, quando Lya integrava a redação, diversos exemplares chegaram ao Museu, uns oriundos dos arquivos do próprio Grêmio, outros doados. “Um dia uma senhora, de Vera Cruz, senhora Neli Grüendling, fez contato e disse que o marido dela, já falecido, que estudara no Mauá, mantinha em arquivo vários exemplares de O Estudante. Como ela sabia do carinho que ele tivera por esse material, ela queria doá-los ao Museu, como de fato fez”, frisa.
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Edições de meados da década de 1940, quando o educandário ainda se denominava Instituto Visconde de Mauá, no período das perseguições à língua e à cultura alemã promovidas pelo Estado Novo de Getúlio Vargas, trazem à vista a advertência “Visto da Del. De Polícia”, numa evidência de possível censura ou de controle sobre os conteúdos que os jovens estudantes elaboravam. Não por acaso, as efemérides e as datas cívicas e militares recebiam ampla divulgação e promoção nas edições. Mas, claro, também havia espaço para os voos de imaginação, de poesia e de criatividade dos redatores.
Ainda nos primórdios da iniciativa, no início dos anos 40, o trabalho se revela ter sido mais arcaico. A edição de 15 de julho de 1941, por exemplo, no segundo ano de existência, tende a ter sido elaborada com mimeógrafo elétrico, e se anuncia Folheto dos Alunos do Colégio Sinodal. Em lugar do Colégio Visconde de Mauá, dos tempos de Lya, posteriormente Santa Cruz e a região passaram a conhecer e a chamar essa escola apenas como Colégio Mauá.
As lembranças de Lya
No início de 2013, Lya Luft recebeu a Gazeta do Sul para entrevista em sua residência, em Porto Alegre. Na ocasião, uma das questões, publicadas posteriormente em formato pergunta e resposta no jornal, se relacionava a suas lembranças de Santa Cruz.
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Gazeta do Sul – Na conformação de um romance, ou de outra obra, a memória acaba retornando a Santa Cruz em algum momento, ou se apoia em vivências daquele tempo?
Lya Luft – Tenho um único livro declaradamente autobiográfico, que se chama Mar de dentro. Nele estão minhas memórias da infância. Da mais remota, em que eu devia ter dois, três anos, na casa em que moramos, em Santa Cruz, até os 11, 12 anos. Ali morei até vir estudar em Porto Alegre. Num romance, o segundo, A asa esquerda do anjo, as pessoas achavam que alguns dos personagens eram inspirados em gente de Santa Cruz, o que não é verdade. Não faço relatórios, documentário. Mas nesse livro, que é ficção, de fato tem algumas lembranças da minha adolescência vividas em Santa Cruz. Havia alguma coisa muito severa. Lembro de as pessoas dizerem: “nós, os alemães; eles, os brasileiros”, o que era uma loucura. De modo geral, lembranças da minha infância transparecem. Minha ligação com a natureza… A gente tinha um jardim muito grande. A paixão pelos livros, a ligação com os contos de fadas, que eu lia muito, essa coisa do belo sinistro…
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Exemplares
A diretora do Museu do Colégio Mauá, professora Maria Luiza Schuster, aproveita para enviar um recado à comunidade. Solicita que, caso alguma família ainda disponha, em arquivos de ex-alunos, ex-professores ou funcionários, exemplares do jornal O Estudante e queira doá-los ao Museu, assegura que serão muito bem acolhidos. Ela teme que, eventualmente, alguém, de forma imprudente, acabe descartando tais materiais, riquíssimos por conservarem passagens e páginas marcantes produzidas por alunos da época, e ao longo de tantos anos.
Esse material, ressalta, além de registro de época e memória valiosa da instituição, acaba por constituir material de pesquisa e até para exposição, oferecendo às gerações de hoje (e também às do futuro) textos e imagens por vezes muito pontuais e passageiros da juventude, de avós ou pais de tantos moradores santa-cruzenses. Quem tiver tais materiais e pretender doá-los, basta fazer contato com o Museu (na Rua Marechal Floriano, 274), por telefone (3715 0496, à tarde) ou de forma presencial.
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