O poeta Thiago de Mello faleceu nessa sexta-feira, 14, aos 95 anos. O amazonense deixa uma das mais celebradas obras poéticas brasileiras. Entre diversas homenagens e prêmios que recebeu ao longo da vida, Mello foi o patrono da Feira do Livro de Santa Cruz do Sul, na 24ª edição do evento, em 2011.
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Logo que foi anunciado o nome pela organização da feira, ainda no fim de 2010, iniciou-se uma troca de e-mails entre o poeta e o hoje gestor de conteúdo multimídia da Gazeta Grupo de Comunicações, Romar Beling. “Definiu-se que cinco ou seis questões genéricas orientariam o escritor em uma reflexão sobre sua vida e sua obra, a ser então compartilhada com os leitores gaúchos. Finalmente, no início de março (de 2011), o conteúdo integral foi enviado pelo poeta. É uma formidável contribuição, em que Thiago, em tom revelador, resgata passagens de sua trajetória, analisa o papel da poesia em seu cotidiano e, especialmente, compartilha sua expectativa de conhecer Santa Cruz do Sul”, dizia o texto introdutório de Beling no suplemento Magazine, quando a conversa foi publicada, em 23 de abril de 2011.
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Recorde abaixo a entrevista completa:
Como a poesia se faz presente em seu cotidiano na atualidade e como ela costuma se manifestar? O senhor tem escrito com alguma frequência?
A poesia me deu sinal de vida quando eu era adolescente e nunca mais me abandonou. Faz parte da minha vida. Ninguém se faz poeta. Ela é um dom. De nascença. Com a paixão da leitura e bom de gramática se pode chegar a prosador: ensaísta, jornalista, ficcionista. Pode até cometer uns sonetos sem pés quebrados. Verdade que a poesia sempre viaja nas imagens do grande romance.
Poesia é mais que simples vocação literária. Preciso dela, quando sinto e sei que só com a linguagem poética sou capaz de expressar o que sinto, tenho precisão de dizer o que penso. Quando um lance da vida me comove. Um assombro, uma descoberta, uma indignação. Ou é a memória que pede o verso, a imaginação que instiga.
Muita vez, contudo, ela me exige, me chama. E me entrega um verso, pode ser um decassílabo, uma redondilha, com os acentos nas sílabas certas. A metáfora nem pede o trabalho da inteligência.
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Escrevo o poema a mão. Em caderno, que parece de um principiante, tanto eu retoco, retrabalho cada verso, trato de encontrar a palavra exata. Quando levo o poema para o computador e ele ganha aparência de coisa pronta, é quando melhor posso lhe dar a forma final de arte.
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Para o poeta moço que me lê, advirto que poesia é o dom e depois trabalho, trabalho e trabalho. A imaginação, o poder de invenção, voa mais alto quando servida por um indispensável conhecimento do idioma, com o devido respeito às suas leis, regras e tendências. A linguagem é a matéria-prima da literatura e alcança o seu esplendor não na frase feliz mas na metáfora perfeita.
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Escrevo, quero dizer, trabalho constantemente (é a minha profissão) em prosa ou verso… E leio poesia todo santo dia. Quando viajo (viajo muito) levo sempre comigo um dos meus poetas. Pode ser o Bandeira ou o Quevedo, o Lorca ou o Drummond, o Joaquim Cardozo ou o Neruda, o Borges ou o Paulo Mendes Campos, o Carlos Pena Filho, o cubano Guillén. De vez em quando, é o livro de um pardal novo que acaba de me chegar. Varo uma vereda da floresta dizendo versos em voz alta (as crianças já se acostumaram). O epílogo do Y-Juca-Pirama, a primeira estrofe do The hollow men, do T.S. Eliot; a Última canção do beco, do Bandeira. Anoitece na floresta, debruçado no parapeito de mogno da casa que o querido Lucio Costa inventou para mim, digo, olhando as águas do meu rio: O que importa é ter os olhos enxutos e a intenção de madrugar. A Poesia gosta de mim, chega quando eu mais preciso.
Vou fazer, Romar, uma revelação: quando consegui um salvo-contudo e saí do inferno do Pinochet, em 73, assim que o avião ganhou altura de cruzeiro, me levantei da poltrona e, sem pensar, disse em voz alta o Soneto do verão do amazonense Luiz Bacelar.
O longo período em que o senhor esteve no exílio acabou sendo marcado por uma grande amizade com Pablo Neruda. Que lembranças o senhor tem hoje daquele período, inclusive de Neruda, e que lições lhe ficaram, para a vida, sobre a aproximação e o diálogo, literário em especial, entre povos e nações.
Já disse mais de uma vez que frequentar a intimidade de Pablo Neruda e merecer a ternura de sua amizade foi um dos mais belos presentes que a vida me deu. Ele criava uma atmosfera mágica ao seu redor. Sabia como ninguém inventar alegria para dar a seus amigos. Sou seu tradutor. Ele me traduziu. Recordo comovido o instante em que ele me entregou, manuscrita com sua fiel tinta verde, a tradução dos Estatutos do Homem, depois de recitá-la em frente ao Pacífico. Neruda me lavou para sempre do hermetismo na linguagem poética.
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Contudo, não foi a nossa amizade que, como você diz, acabou sendo a marca do meu exílio. Primeiro porque minha inesquecível convivência com o grande bardo floresceu no tempo em que fui adido cultural da Embaixada do Brasil em Santiago, até 65. Quando voltei ao Chile, como refugiado político, nos anos 70, e servi ao governo de mi hermano Salvador Allende, o poeta vivia na França como Embaixador do seu país. Clandestino, revi o meu amigo pela última vez na sua casa da Isla Negra: já estava com a máscara da morte no rosto e me deu uma única palavra: – Compañerito… Ele retribuiu o carinho do diminutivo Paulinho, como sempre o chamei.
Faço questão de ressaltar, é um dever, que Neruda não foi o meu maior amigo chileno. Amizade não se mede. Naquele país que amo como pátria também minha, são muitos os amigos e amigas que até hoje iluminam a minha vida. Ainda que alguns já estejam lá do outro lado do rio. A página é pequena para abrigar o nome de todos. Para não resistir à tentação do pecado da omissão, gravo alguns dos queridos que já partiram: Enrique Lihn, Flavian Levine, Delia Del Carril, Nemesio Antunez, Carlos Ortuzar, Volodia Teitelboim, Violeta Parra, Fortunato San Martin, Carlos Altamirano, Ruben Azocar, Jorge Sanhueza, Cuca e Jorge Landea, eles estão todos a meu redor agora aqui na floresta me pedindo que já chega…
Povos e nações
Os países da nossa América padecem do escasso conhecimento de como vivem os povos de cada um deles… Dou o meu testemunho, porque da minha geração serei um dos poucos que conhece toda a América Latina e não só as capitais. Na verdade os povos se conhecem um pouco melhor do que os governantes de estados que se ligam por frios laços políticos e econômicos, os mais ricos sem a generosidade essencial, as trocas comerciais predominam sobre as culturais. A comunicação é de palavras ocas. O diálogo é anêmico. A solidariedade surge quando sobrevêm catástrofes, que os noticiários alardeiam.
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Mais do que os encontros de chefes de estado, o que vem aproximando os países são os esportes, as artes, e destacadamente os Congressos de Escritores e os Festivais Internacionais de Poesia. O povo participa feliz. Posso dar só um exemplo entre tantos? O Festival Internacional de Poesia de Medellín, da Colômbia, reúne milhares de pessoas.
Pelo abraço cultural dos povos da América, e do mundo, faço questão de distinguir, porque de esplêndidos resultados, o incessante trabalho, que já dura mais de meio século, da Casa de las Américas, de Cuba. Muitos autores brasileiros só passaram a ser conhecidos dos leitores latinoamericanos depois de editados pela Casa. Como é bom dar notícia dos grandes feitos dessa Revolução Cubana com a qual me mantenho inabalável solidário, yo, que La conozco tanto. Da qual pude dizer, no meu Cântico a la navidad de Fidel, que li na festa dos seus 80 anos, em Havana, que ainda não é, não, una sociedad perfecta, como canta o querido Pablo Milanês, mas é uma sociedade justa e decente.
Trato faz tempo de fazer a minha parte pela integração cultural da América Latina. Com a tradução e a edição de poetas notáveis desconhecidos no Brasil. Os poetas e leitores brasileiros desconhecem as grandes vozes da poesia hispano-americana. Preferem os europeus. Uma pena, não sabem o que estão perdendo. Sai este ano, pela Global, Poetas da América de canto castelhano, a primeira antologia que se publica no Brasil reunindo poetas de todos os países da América Latina.
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Como é a sua rotina em Barreirinha? Gostaria que o senhor detalhasse um pouco essa circunstância de, em sendo um autor de renome nacional e internacional, naturalmente requisitado em grandes centros, conseguir manter a profunda ligação com a sua cidade natal, em plena floresta.
Já retornei do exílio com a decisão de voltar a viver na floresta onde nasci. Foi na Alemanha que me decidi. Já me dedicava à defesa da sua preservação, estudava e escrevia. Alunos e professores da universidade sabiam mais do que eu sobre quantidade de hectares desmatados, incêndios criminosos. Mas para mim a preservação da floresta só tem sentido com a elevação da qualidade da vida do seu povo. E, contra a opinião da maioria dos meus companheiros, editores, vim morar em Barreirinha, o município onde nasci. Não vim ensinar, mas aprender.
Hoje, vivo numa pequena e pobre comunidade, chamada Freguesia, banhada pelo Rio Andirá, o mais belo rio de todos os que conheço, só não é mar porque não quer. Tenho o foro de um lugar chamado Ponta da Gaivota. Moro numa casa que Lucio Costa inventou para mim, da qual fui mestre de obras. Ventos, árvores, nuvens e pássaros já me conhecem. Barreirinha é o único lugar da Amazônia onde há casas projetadas pelo gênio de Lucio, o meu amigo sábio e bom. Está nos cuidados do Patrimônio Histórico o tombamento do bloco principal, o Porantim do Bom Socorro.
Aqui não há automóveis, nem motocicletas. Só o rumor conversado dos ventos com as palmeiras e as acapuranas. Os meus livros, meus quadros, os meus mortos amados saem das fotos nas paredes e vêm viver comigo um tempo que não se acaba. É quando vibra de leve o silêncio sonoro da mata. Não posso dizer que vivo em paz, porque me sei rodeado de crianças que dormem com fome.
Daqui só saio quando me chamam para trabalhar. De tudo quanto é canto do Brasil e do mundo. Gosto de Feira de Livro em municípios pobres. Mas lá vou eu voando para Europa, África, Estados Unidos, Japão, Índia. Como demora a chegar! Mas dá vontade de ficar, aprendendo a história do homem quando ainda nem existíamos.
Ando saindo demais, acha o meu doutor. Mas é o meu ofício. É também meu dever. Vivo da minha palavra escrita e da falada. Sou profissional. Não me faço de rogado. Congressos, encontros, bienais, feiras, palestras, mesas-redondas. Nos meus recitais no Brasil, sempre incluo poemas de autores latinoamericanos. No exterior, recito os meus e os dos poetas que amo. Reparto a minha esperança. Termino sempre com um apelo, a todos, para que façam a sua parte pela salvação da floresta, cuja vida está ameaçada pelas consequências do aquecimento da Terra.
Acordo muito cedo. Tomo meu guaraná ou o mirantã em pó, em jejum, nado no rio quando é tempo da cheia, atendo algum doente, sempre tenho medicamentos (estudei medicina, tive muita prática hospitalar e aqui não tem nem posto de saúde, o hospital só lá na sede municipal). Leio, já releio mais que leio, estudo e trabalho. Aqui já escrevi mais de 10 livros.
Sempre tenho visitas. Leitores que me querem ver. Outros vêm só pela fama. Recomendo a mulher barbada do circo. Bom é quando chegam os companheiros do coração, vêm de longe. Já veio Gabriel García-Márquez, o Arturo Corcuera, o Ernesto Cardenal já veio umas três vezes, passa um mês, depois me leva lá para sua ilha Solentiname, no Lago da Nicarágua; o mestre da fotografia Rogerio Scavone, que empinou papagaio comigo nos ventos do Andirá. O grande pintor argentino Luis Felipe Noé e Roberto Sambonet, mestre da pintura italiana, já realizaram exposições de óleos e aquarelas com temas amazônicos, recolhidos nas matas e na vida dos caboclos de Barreirinha.
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O senhor costuma estar em contato com seus pares, escritores, de outras regiões do Brasil, ou mesmo da região Norte? E de fora do Brasil? Com quem o senhor costuma dialogar mais, no universo das artes?
Contactos? Não vivo escondido. O diálogo, mesmo à distância, é fonte de conhecimento, aprendizagem de vida. Padeço da inquietação social. As imperdoáveis, inaceitáveis diferenças sociais acendem a minha indignação moral. Respondo assíduo a toda carta. Comento com rigor os originais que me chegam, prosa ou verso. Não me canso de aprender com os caboclos ribeirinhos. E ouço com respeito quando um sábio, como o velho Coracy, me diz convicto:
– Esta floresta acaba lá nada, aqui tem é mata já demais. E Deus é grande.
É verdade que na seca danada do Andirá do ano passado e dos vendavais e trovoadas que não cessavam, o patriarca Feliz me ponderou gravemente:
– É, o céu eu acho que se zangou com a gente !
Em congressos no exterior, trato de ouvir mais os escritores e poetas moços do que os consagrados. Pergunto muito. Abraço com ternura os poetas meus companheiros de geração. Não vou dar nomes, o Romar já me entendeu. Mas fico tristonho quando sei que não vou ter mais a felicidade de conversar com o bom José Saramago, nosso companheiro, único europeu na comissão de escritores latino-americanos, formada pelas Nações Unidas para respaldar o trabalho da Unicef pela vida das crianças e dos adolescentes da América Latina.
Estou recordando comovido, posso contar?, o abraço que dele ganhei depois de uma breve fala minha no paraninfo de Salamanca quando disse que as crianças da floresta não esperavam muito do milênio; o que elas fazia tempo estavam esperando era a chegada do amor. Ele veio abrindo os braços e me disse rindo contente: – Ó rapaz, estás em plena forma!
O senhor costuma ser referido, em geral, no cenário da literatura brasileira, como o “poeta da floresta”. Como é dar voz, em termos de percepção e de identidade, a esse verdadeiro santuário e a essa reserva de surpresas que é a Amazônia?
É verdade. Trato de colocar a minha arte a serviço da vida. Para servir ao que serve a pena e o preço do amor. Por isso escrevo, agora já não simplesmente pela preservação, mas pela salvação da floresta ameaçada. O que significa salvar a vida de 25 milhões de pessoas que vivem nela e vivem dela. Tenho vários livros publicados sobre a vida no Amazonas. Até em mais de um idioma. Creio que o mais importante é o Amazonas, pátria da água; conta a aventura humana, o índio e o caboclo, servo e senhor do reino das águas. É meu dever, como habitante do planeta onde moramos. Sou filho da floresta, a água e a madeira viajam na luz dos meus olhos.
Por fim, como o senhor recebeu o convite para ser patrono da 24ª Feira do Livro de Santa Cruz do Sul? Qual a expectativa, desde já, nessa travessia pelo Brasil para merecer uma homenagem por sua obra no extremo Sul do País?
Recebi contente porque acho que em Santa Cruz do Sul tem gente que gosta de mim. Como contente atendi o chamado de Santa Maria para fazer parte, quando voltei do exílio, de uma Feira de Livro que me foi como um presente do Brasil. Vou com a mesma alegria que senti quando José Condé e Eneida de Moraes, nos anos 50, me incluíram numa comitiva, liderada por Peregrino Junior, então presidente da Academia de Letras, eu um menino de apenas um livro publicado, para representar o Rio de Janeiro num memorável Encontro de Escritores promovido em Caxias do Sul pelo seu jovem prefeito Pedro Simon, o gaúcho que o Brasil inteiro aprendeu a admirar. E também, não posso deixar de contar, porque foi lá que encontrei a estudante Ítala Nandi, que cresceu para ser a bela mulher guerreira, extraordinária atriz, pessoa cheia de luz.
Espero que os organizadores da Feira criem um tempo para que eu ouça os moços de Santa Cruz do Sul. Moços de qualquer idade. Faço muita diferença entre mocidade e juventude. Tenho encontrado muita gente moça que está envelhecendo, que não tem a esperança de um Brasil mais limpo, mais justo. Quero estar com meus companheiros de juventude de Santa Cruz, terra deste Sul que me deu Simões Lopes Neto, Erico Veríssimo e o Luis Fernando também, Josué Guimarães, Moacyr Scliar, Quintana, Martha Medeiros, o Carlos Nejar, a Maria Carpi e o Carpinejar (pai, mãe e filho poetas, cada qual com asas e cantos diferentes).
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