No fim da década de 1930, Santa Cruz do Sul foi o local escolhido por um ator e diretor alemão para fixar residência. Roman Riesch deixou o Velho Continente e escolheu as terras verdes do interior do Rio Grande do Sul para criar um refúgio artístico e viver com a família. Hoje, quase cinco décadas após seu falecimento, o legado e a herança cultural deixados por ele ainda estão presentes no Vale do Rio Pardo, assim como seus descendentes.
O artista nascido em 24 de maio de 1886 assumiu em 1923 o comando do tradicional Grupo de Teatro Riesch-Bühne, fundado por seu pai na Baviera em 1872. Com o início da Segunda Guerra Mundial, perseguido por ser filho de mãe judia, ele se refugiou no Brasil em 1938. Morou em Porto Alegre até se estabelecer definitivamente em Santa Cruz, município que havia visitado durante uma turnê pela América do Sul em 1928.
Roman casou-se com Ilse e continuou a trabalhar com o teatro até a proibição do alemão durante a Era Vargas, chegando a ser preso em Ijuí por ser falante do idioma. Nesse período, sustentou-se trabalhando como pintor, inclusive deixando obras na Catedral São João Batista. Foi só após a guerra que ele reativou o Riesch-Bühne com um elenco santa-cruzense, excursionando com peças em alemão. A trupe visitou colônias alemãs em todo o País e no Chile, Uruguai e Argentina, em turnês que duravam de quatro a cinco meses. Passaram por grandes teatros como o Carlos Gomes, no Rio de Janeiro, e o Theatro São Pedro, em Porto Alegre. Em 1972, ano em que o grupo completaria 100 anos, o ator faleceu em plena atividade artística em Santa Cruz do Sul.
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Pesquisa relembrou trajetória
A rica trajetória e influência de Roman Riesch na região foi tema de uma profunda pesquisa, realizada pelos atores Simone Bencke e Eduardo Spall, o Duca. Em 2015, o Teatro Espaço Camarim aprovou o projeto O Teatro de Roman Riesch. A iniciativa realizada por meio da Lei Federal de Incentivo à Cultura (LIC) teve patrocínios da Pitt, Lothar Krause e JTI e reuniu um extenso acervo de muitos materiais, com reportagens de jornais – inclusive da Gazeta do Sul –, e produziu um documentário em curta-metragem com depoimentos da filha e da neta do ator.
O casal descobriu a história de Riesch no fim da década de 1990, durante uma performance e exposição de máscaras teatrais na Casa das Artes Regina Simonis. Na ocasião, a neta do ator, Anni Riesch, convidou-os a conhecer a casa da família, apresentando a história do avô, que desde então fascina Simone e Duca. “Nesse momento, a gente descobre a história de uma pessoa que desconhecíamos. Um alemão que veio para Santa Cruz fugindo da guerra e aqui trabalhou como ator, dono de uma companhia de teatro e um exímio pintor. Era um artista completo”, comenta Eduardo Spall.
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Em contato com a família, Duca e Simone realizaram homenagens à viúva do diretor, Ilse, quando ainda estava viva. A exposição chamada Palco Mágico foi apresentada com o Grupo Artuando, do Colégio Mauá, e chegou a ser divulgada no Instituto Goethe em Porto Alegre. Simone relembra ainda que as pesquisas sobre a companhia de Roman e outros pioneiros do teatro no município foram a inspiração para a criação do Espaço Camarim. “Há uma sequência da nossa história antes de nós, de muitas outras pessoas, que sempre valorizamos muito. Criamos aquele espaço a partir da coragem que vimos neles.”
Duca salienta que o papel de Riesch para a cultura de Santa Cruz foi duradouro, por ter aberto caminhos e criado espectadores de teatro. Foi uma vivência cultural de extrema importância, especialmente na era pré-televisão, em que os meios de entretenimento eram limitados. “Ele fez um trabalho essencial para que hoje nós, atores, possamos dar continuidade.” Já Simone destaca a organização cultural e econômica da companhia que permitia as viagens e turnês, algo que até hoje é difícil de fazer. Simone e Duca pretendem dar continuidade ao projeto, informando sobre a história e o legado de Roman.
Casa foi construída no estilo bávaro Ateliê guardava pinturas e materiais
Refúgio inspirado na terra natal
Duca e Simone chegaram a conhecer o refúgio criado por Roman Riesch, inspirado nas construções de sua terra natal. “Chegamos a uma casa que parecia de conto de fadas, em estilo bávaro. E na decoração da fachada havia as máscaras do teatro”, recorda Duca Spall. Junto à casa, outra estrutura abrigava o ateliê do artista alemão, um espaço onde ocorriam ensaios e eram guardados textos, livros, fotografias, cartas de patrocinadores, folhetos, jornais, cenários, adereços e figurinos, além de pinturas.
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O lugar foi mostrado no documentário Von Tegernsee Nach Übersee (De Tegernsee para o Além Mar, em tradução livre), produzido por uma equipe da tevê alemã. Com direção de Michael Wandt, o vídeo mostra o espaço poético criado pelo artista na própria casa e o ateliê, mantido como ele deixou após sua morte, até mesmo com a foto do pai sobre a escrivaninha.
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Patrimônio familiar
Uma das descendentes de Roman Riesch na região, a secretária Anni Riesch, de 49 anos, não chegou a conhecer o avô, que faleceu meses após seu nascimento. Mas conviveu muito com a avó Ilse, falecida em 2006. “Toda a informação que eu tenho sobre a vida do meu avô e sobre o teatro foi contada na sua grande maioria pela minha madrinha, Maria Teresa Oberberger, e pela minha avó Ilse”, explica Anni.
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O casal se conheceu em um batizado em Ijuí, quando Ilse tinha cerca de 20 anos. “Minha avó sempre me contava que se apaixonou à primeira vista pelo homem mais lindo e charmoso que ela já tinha visto. Quando decidiram se casar, o pai dela avisou que ela ficaria viúva bem cedo, pois eles tinham uma diferença de idade de 23 anos. Ela disse que não se importava, que era o que ela queria”, relata.
Ilse e Roman tiveram dois filhos. O mais velho, Guido Reni Riesch, mudou-se para a Alemanha e lá viveu até sua morte, e a mãe de Anni, Ingeborg Riesch, hoje vive na chácara da família. Riesch também teve dois filhos do primeiro casamento, Roman Riesch Jr. e Alfred Riesch, que chegaram a morar em Santa Cruz do Sul. Roman seguiu com a companhia Riesch-Bühne na Alemanha. Já Alfred permaneceu no Brasil, mas perdeu contato com a família.
Para Anni, foi o espírito empreendedor da avó que tornou realidade a intenção do avô de viver de teatro. “Ela era uma mulher à frente do seu tempo, inteligente, com opinião e atitude, que queria ganhar dinheiro”, observa a neta. Ilse foi a primeira mulher de Santa Cruz a dirigir. Fez a autoescola em Porto Alegre e seu primeiro veículo foi um jipe.
Ela vestia calças e bombachas em uma época na qual as mulheres só usavam saias e vestidos. Dirigia uma rural e levava a companhia de teatro a todos os locais de apresentações pelo Brasil. “Era a motorista, a carregadora, a panfleteira, a agenciadora, a contrarregra e, quando preciso, atriz para preencher uma falta.”
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Artista completo
Impedido de atuar no teatro por conta da proibição da língua alemã, Roman Riesch sobreviveu com a pintura. Na época, o diretor era o responsável por elaborar as pinturas nos cenários das peças, panos de fundo gigantescos representando casas e florestas. Para prover o sustento durante esse período, exerceu a profissão de pintor sacro, que havia estudado na Alemanha.
Segundo Anni Riesch, Roman pintou uma série de obras na Catedral São João Batista e, durante cerca de dois anos, fez pinturas em igrejas do interior e murais espalhados pela cidade – na Casa das Artes Regina Simonis, na parte velha do Hospital Santa Cruz e no prédio da Costaneira –, além de cenários de teatro para escolas do município.
“Ele pintou também alguns quadros, mas não sei a quem pertencem e se ainda existem. Temos apenas um na família. Como essa era a fonte de renda, pintava o que podia numa cidade pequena como Santa Cruz”, conta. O quadro guardado pela família retrata um casal de camponeses ao pé de uma montanha. Roman também havia feito um curso de entalhe na Alemanha, que o ajudou a fazer peças para a casa e o ateliê. O documentário relembra ainda gravuras da terra natal feitas pelo artista e que foram enviadas por carta a familiares e amigos na Alemanha.
Como lembrete da história do artista, Simone Bencke e Duca Spall guardam com carinho duas pinturas de Riesch com as máscaras do teatro. As peças foram presenteadas pela neta do ator e restauradas pelo artista santa-cruzense Lula Werner, respeitando os traços e cores originais.
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Legado que perdura
Quase meio século após seu falecimento, a obra de Roman Riesch ainda se mostra relevante. Duca e Simone formaram no interior de Santa Cruz um grupo que resgata histórias contadas pelo ator e diretor. O Grupo Teatral Rio Pardinho encenou no mês passado uma peça que era apresentada pelo diretor quando fazia as turnês de teatro. O espetáculo chamado Der Hausfreund foi traduzido e adaptado em português. A apresentação no dia 26 de novembro ocorreu no Pavilhão da Comunidade Evangélica de Rio Pequeno, no interior de Sinimbu.
De acordo com a neta de Roman, Anni Riesch, é uma peça que era encenada pelo grupo do avô, mas não foi escrita por ele. “Estamos aqui 50 anos depois e um grupo pequeno está apresentando uma peça dele. Lembrando que meu avô nunca escreveu nenhuma peça, ele comprava os direitos autorais.” Para ela, a importância de Roman e do grupo teatral que dirigiu foi promover a cultura e difundir a língua alemã, além de levar entretenimento a lugares aonde ninguém ia. Cidades pequenas esperavam o ano todo pela trupe, que não fazia distinção entre os grandes teatros e os galpões do interior com arquibancadas improvisadas.
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