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ELENOR SCHNEIDER

Tempos de internato

Suponho que vários leitores desta coluna tenham vivido um tempo em internato, ou ao menos conheçam quem passou por essa realidade. Meu propósito é fazer uma visita a essa experiência, porque também passei por ela. Guardo boas lembranças, mas igualmente recordo momentos de desconforto, velada dor, derramadas lágrimas em silêncio.

Nasci no interior, o meu mundo era muito pequeno. Partilhava minhas andanças com a família, a escola, alguns amigos. Os brinquedos nós mesmos construíamos, livros e jornais praticamente inexistiam. A vida se expandia ao ar livre, tudo parecia fácil e nos deixava felizes. Poucas pessoas pensavam em sair de casa, estudar para além do quarto ano primário, que era o patamar maior ao nosso alcance. Somente quem caísse nas redes de algum padre recrutador ou de uma madre sorridente encontrava outro rumo na vida.

Foi assim que acabei num internato e toda a minha vida se redesenhou. Sair de casa aos 11 anos, deixar para trás a segurança e a proteção do lar, ser inserido na incerteza, parar no meio de desconhecidos, tudo isso era muito doído e desafiador. Na pequena mala, havia pouca roupa, mas muita saudade. A saudade, nos primeiros tempos, me roía por dentro, silenciosa, insistente, quase devastadora.

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Só mais tarde conheci um dos mais belos poemas de Fernando Pessoa, “Mar portuguez”. Nele estão os versos “Valeu a pena? Tudo vale a pena/ Se a alma não é pequena./Quem queres passar além do Bojador/ Tem que passar além da dor.” O Bojador é um cabo localizado a oeste da África e era considerado o limite intransponível aos navegadores. Passar por ele significava desafiar o desconhecido, enfrentar os perigos e abismos das incertezas do além. O breve poema termina “Deus ao mar o perigo e o abysmo deu/ Mas nele é que espelhou o céu”.

A vida no internato era extremamente regrada. Todas as horas do dia estavam previamente preenchidas. Despertar muito cedo, cumprir os deveres religiosos, tomar café, e então começavam as aulas. Vários dos meus professores do primeiro ciclo eram padres recém-chegados da Holanda e alguns deles também tinham saudade do que ficara para trás.

Trabalhar na horta ou no pomar constava na programação da tarde. Jogar futebol ajudava a suavizar eventuais tristezas e contribuía para preparar o corpo para o banho frio que se seguiria. Só havia chuveiros frios, até mesmo nas gélidas tardes de Caxias do Sul.

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Apesar das deficiências pedagógicas de alguns professores, estudava-se muito, sobretudo línguas e ciências humanas, proporcionando conhecimentos para toda a vida. Ali estudei latim, grego, inglês, francês, italiano. Onde se encontraria isso? Além dos saberes propostos pelo currículo escolar, quem quisesse recolheria fundamentais valores para pautar uma vida futura: disciplina, companheirismo, respeito, responsabilidade, partilha comunitária, solidariedade, amor ao estudo e ao trabalho, entre tantos mais.

Grande alegria proporcionava o dia de visita dos familiares, bem como a chegada das férias, tempo de se reconectar com o lar. Eram alegres os passeios, ricos os momentos culturais e artísticos, decisivas as incursões pela leitura, bem que incorporei para sempre.

Como em tudo na vida, o internato se tecia entre perdas e ganhos. Quem soube aproveitar, herdou um invejável saldo cultural, moral, religioso, combustíveis valiosos para os caminhos a seguir. Se foram tempos por vezes difíceis, eu não me arrependo de nada.

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