Gilson olha para o gramado a seus pés. Observa a pintura feita de chão e folhas que trocaram o outono pelo inverno.
Ao ver o homem de seus cinquenta anos, absorto, sentado junto à árvore que libera folhas como se fossem flores, lembrei da pergunta que fizera ao biólogo Pablo. “Que planta é esta que desenha com tantas cores?” “É um liquidâmbar.” E acrescentara: “minha filha adora pegar suas folhas.”
O liquidâmbar mora na Praça da Prefeitura. Ao seu lado assenta um banco. Gosta de ver pessoas tomarem um tempo para o descanso. Sente um certo orgulho de ver sua beleza sendo apreciada. Capricha ainda mais nas cores. Diverte-se com seus tons indefinidos entre verde claro e laranja atijolado. Brinca com pássaros. Adora os ventos. Suspira pelas chuvas. Gosta dos nevoeiros.
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Gilson, um pouco encolhido sob a manhã invernal, talvez imaginasse seus sonhos bailando em um cenário multicolorido. “Posso perguntar sobre o que estás pensando?” Antes da resposta, um olhar arisco despejou profunda inquietação: “faço de tudo, capina, pintura… serviços em geral”. Qualquer comentário seria inoportuno. “Agora, com a pandemia, ficou ainda mais difícil”, continuou o senhor, que escolhera o banco junto à vistosa (mas também melancólica) planta.
Sem combinar, desviamos o olhar quase escondido sob a máscara. “São lindas estas folhas!” Não foi uma pergunta, sequer uma provocação por falta do que dizer. A curiosidade cedera lugar à partilha do momento. Cada um se permitiu seus próprios sons. Todos silentes, como a distância que a pandemia recomenda.
Quantos já teriam se deixado aquietar por ali? Praças permitem presenças sem cobranças. Sempre haverá uma planta disposta a nos escutar, mesmo que não digamos nada. Plantas compreendem o que se diz e o que apenas se imagina. Elas sabem dos segredos das profundidades e dos ares. Suas folhas imitam estrelas que sobem às alturas. As raízes não desconhecem subsolos. Somos assim, feitos de fagulhas estelares e densos subterrâneos. Até desconfiamos que as estrelas nascem do chão e alçam voo, nunca esquecendo de suas origens e sempre prontas a maiores altitudes.
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Estrelas altaneiras e subterrâneos machucados. Feridos como a seiva do liquidâmbar, que se derrama pesarosa ao corte de seus ramos, nos alertando que plantas sentem e sofrem. Choram âmbar e resinas. Também nós mergulhamos em lágrimas e prantos. Todavia, como separar dores das alegrias se ambas formatam o mesmo tronco, a mesma coexistência?
Como muitas vezes antes, o toque do celular alertou para um compromisso. Pedi licença. Agradeci pela oportunidade da quase companhia. Não muito depois, voltei apressado à praça da Bandeira. Gilson já não estava no banco. Este vazio, serenamente triste. Quanto a mim, perdera uma oportunidade. Quisera saber mais. De onde viera, o que pretendia… ao não saber dele, sabia bem menos de mim. Transmutei o passado em presente. Olhei para as pétalas ao chão. Como a filha do Pablo, peguei uma folha ainda dançando. Reverente, afaguei suas cores. Desliguei o celular.
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