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Especial Imigrantes

Venâncio Aires: um lugar para ressignificar histórias

Foto: Alencar da Rosa

A assistente social Sandra Andréia Mendonça Soares realiza atendimento com os venezuelanos Oscar Hernandez e Franyer Javier Mendez

Desde 2006, Venâncio Aires recebe imigrantes vindos de países em situação de crise, mas é 9 de janeiro de 2020 a data considerada marco para o município. Naquele dia, 60 pessoas vindas da Venezuela desembarcaram na cidade sem aviso prévio para que o Poder Público organizasse a rede de apoio que faz o acolhimento e encaminhamento aos serviços de saúde, educação, trabalho e assistência social.

Atualmente, esses 60 se multiplicaram para 250 venezuelanos, já que muitos vão realizando, ao longo do tempo, o desejo de trazer também os familiares. Em Venâncio, ao todo, são 320 cadastrados no sistema do município, originários também de países como Colômbia, El Salvador, Haiti, Argentina e Uruguai. Outro momento marcante da história da cidade foi o dia 8 de junho deste ano, quando aprovou a lei municipal 6.796/2021, de Atendimento e Acolhimento de Imigrantes, Refugiados e Apátridas. Ela será executada de forma transversal às políticas e serviços públicos, sob a coordenação da Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Social, por meio do Departamento de Políticas Sociais e Direitos Humanos.

Com serviços que trabalham com diversos programas para a recepção e boa permanência dessas pessoas, o município do Vale do Rio Pardo tornou-se referência no que diz respeito à inclusão. Parcerias com empresas locais e com o Sine, por exemplo, fazem com que rapidamente os imigrantes alcancem a inserção no mercado de trabalho, realizando assim o desejo de uma vida mais digna. E o mais importante: conseguir trazer o restante dos membros de suas famílias, que ficaram para trás no país de origem.

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“A gente aprende todo dia”

No último domingo, Venâncio Aires recebeu 12 imigrantes de uma vez só. No início da semana, o saguão da Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Social estava movimentado. No local, eles aguardavam para receber o atendimento da equipe coordenada pela assistente social Sandra Andréia Mendonça Soares, de 44 anos. A técnica explica que todos já vêm com alguma referência de familiar que reside no município.

Em uma conversa com Sandra ou com as estagiárias de Ensino Superior Bruna Mariel Markmann e Simone Rodrigues dos Santos Chavez, os recém-chegados na cidade tomam conhecimento da parte burocrática que precisam encaminhar para, principalmente, conseguir emprego. “O setor que acolhe e atende imigrantes é a porta de entrada para eles. Depois a gente encaminha, se necessário, para toda a rede que já existe, como saúde, educação e trabalho. Temos parceria com o Sine, então eles já saem daqui com orientação de qual vaga, qual curso. Existe toda uma logística”, esclarece Sandra. “Um acolhimento dura, às vezes, 40 minutos, porque tem que orientar sobre o cartão do SUS, sobre CPF, aluguel. Tudo isso a gente faz aqui, fora os acompanhamentos familiares e visitas de alguma situação que necessitar.”

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Sandra Soares, assistente social | Foto: Alencar da Rosa

Ainda conforme a assistente social, se estão com os documentos regularizados, em 15 dias eles já podem conseguir emprego. “A Lei Municipal de Atendimento e Acolhimento a Imigrantes dá condição para eles ressignificarem a história, planejarem um futuro com um trabalho e casa para morar. Eles conseguem ver esse local onde podem melhorar de vida e trazer a família.”

A secretária de Habitação e Desenvolvimento Social, Claidir Kerkhoff, diz que o Município se colocou à disposição destes imigrantes, inserindo eles no mercado de trabalho para que cada família consiga prover o próprio sustento. “Baseado na lei municipal, todos têm os direitos iguais. Uma vez pisando em solo brasileiro, eles têm os mesmos direitos, inclusive no acesso às políticas públicas do Município.”

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O idioma, porém, ainda é uma das principais dificuldades. Outro problema é que muitos vêm com alguma formação superior e não conseguem atuar exercendo suas profissões. “Há engenheiros, enfermeiros, fisioterapeutas, advogados. Às vezes eles já vêm com essa expectativa, de atuar em sua área, mas é difícil validar o diploma.” Contudo, a força de vontade e o esforço dos homens e mulheres que escolhem Venâncio Aires para morar é evidente. “O que eles gostam é de trabalhar. Alguns, em dois empregos. Quem não está com os filhos aqui, trabalha em dois para juntar dinheiro para poder trazer a família”, completa Sandra.

A profissional salienta que em sua atuação diária como assistente social aprende sobre novas culturas, idiomas e situações políticas diversas, mas, sobretudo, sobre persistência. “Trabalhando com imigrantes a gente aprende todo dia”, comenta. O setor responsável pelo acolhimento também atende empresas que estejam interessadas em contratar. O número de WhatsApp (51) 99770 0718 é disponibilizado para sanar dúvidas.

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Lugar certo, hora certa, pessoas certas

O venezuelano Oscar Hernandez, de 24 anos, está em Venâncio Aires há sete meses. Na última terça-feira, ele se dirigiu à secretaria municipal para que os três cunhados que chegaram à cidade recebessem o atendimento da assistente social Sandra. “Lá não tem serviço, e aqui em Venâncio os gaúchos são muito receptivos com a gente. Eu sempre digo, Deus nos abençoa com as coisas. Chegamos no lugar certo, na hora certa, com pessoas certas.” Ele ainda destaca que os cunhados, que desembarcaram no domingo, 25, podem estar empregados até a próxima segunda-feira. “Acho que segunda que vem já estarão trabalhando, porque as pessoas gostam do nosso trabalho”, comemora.

Oscar conta que decidiu deixar o país de origem porque tem um filho e não via na Venezuela um local adequado para o crescimento da criança, com estudos e alimentação adequada. Lá, o jovem trabalhava como auxiliar de motorista. Hoje, ele é empregado da Marasca, empresa do setor fumageiro. “É uma firma muito boa, que recebeu todos os meus familiares. Todos estamos juntos aqui em Venâncio, graças a Deus. Viemos em parcelas, mas viemos todos.”

Oscar Hernandez, de 24 anos, reside em Venâncio Aires há sete meses | Foto: Alencar da Rosa

Um pouco assustado com o forte frio que faz na região, Oscar Hernandez diz que isso é a única coisa um “pouco ruim”, mas não se deixa abalar. E o que ele tem a dizer pode ser uma lição para muitos. “Muitas pessoas se apegam a coisas que não têm valor, brigam por coisas que não têm sentido. O que tem sentido para mim é um trabalho digno e uma casa, e que a família fique bem.”

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Ação entre amigos para unir a família

Quando saiu da Venezuela para vir para o Brasil, no ano passado, a segunda filha de Manuel Hernandes, de 31 anos, recém havia nascido. A esposa e as duas filhas dele – uma menina de 8 anos e outra de 1 – ficaram no país. Para bancar a viagem delas ao Sul do Brasil, são necessários aproximadamente R$ 5 mil.

Por isso, uma ação entre amigos foi iniciada para tentar ajudar o imigrante a se unir novamente à família. Os números são vendidos no Frey Supermercados, onde Manuel trabalha. A disposição e o esforço do venezuelano surpreenderam os proprietários do estabelecimento, que se juntaram para ajudá-lo. “Ele começou uma vez por semana e se adaptou tão bem que convidamos para trabalhar. Hoje, tem carteira assinada. Ele trabalha nos hortigranjeiros, mas eu já estou pensando em realocar para outro setor, porque está desenvolvendo bem, aprende fácil, é bem esforçado”, enfatiza o proprietário Gabriel Frey, de 32 anos.

Trabalhando todos os dias com frutas saudáveis e coloridas, diferente do que costumava ver na Venezuela, Manuel chega a mostrar, por chamadas de vídeo, a variedade de alimentos no mercado em que trabalha, realidade dura para quem está em solo venezuelano. O sonho de retornar ao país, porém, ainda existe. “Quando ficar melhor, todo mundo pode regressar, porque a Venezuela é um país rico, mas não tem um presidente bom”, observa.

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Amigos estão realizando ação para ajudar Manuel Hernandes a trazer as duas filhas e a esposa para Venâncio | Foto: Alencar da Rosa

Longe dos dois filhos

A VHM Vidros é uma das empresas de Venâncio Aires que emprega imigrantes. Há nove meses, cinco colaboradores estrangeiros fazem parte da equipe da indústria. De acordo com Dyeini de Lima, responsável pelo setor de Recursos Humanos, eles têm muita vontade de aprender. “Eles vêm com muita qualificação, só que, infelizmente, não conseguem exercer aqui. Então chegam com muita força de vontade, querem trazer a família, e lutam mais ainda para isso”, relata.

Um desses funcionários é o venezuelano Freddy Bescochea, de 29 anos. Antes de chegar ao município gaúcho, ele ficou cerca de 11 meses em Roraima, Estado onde geralmente os imigrantes permanecem um tempo antes de embarcar para o Sul do Brasil. Porém, na Venezuela, ficaram os dois filhos de Freddy, uma menina de 5 anos e um menino de 3. Com a saudade que aperta, o sonho dele é trazer a família para Venâncio Aires. Por enquanto, ajuda enviando uma parte do salário, o que não é suficiente diante da crise econômica do país. “Eu mando dinheiro, R$ 200,00 aqui compra muita comida, mas lá é tudo muito caro, não dá para muita coisa.” Ele diz se sentir bem na cidade e elogia a recepção gaúcha. “Aqui é muito bom, gente muito boa, são cordiais, todo mundo ajuda e são pessoas tranquilas. Se eu comparo com Roraima, é melhor aqui.”

Freddy Bescochea trabalha em fábrica de vidros há nove meses e guarda dinheiro para trazer a família | Foto: Alencar da Rosa

Entenda a crise na Venezuela

A professora Mariana Dalalana Corbellini, que coordena os cursos de Ciências Econômicas e Relações Internacionais e o Grupo de Trabalho em Apoio a Refugiados e Imigrantes da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) explica que, ao longo da década de 2000, a Venezuela beneficiouse do aumento no preço do barril de petróleo, que chegou a ultrapassar US$ 140,00 em 2008. “A economia do país é fortemente baseada na commodity, o que permitiu ao então presidente Hugo Chávez financiar diversos programas estatais que contribuíram para a melhoria das condições socioeconômicas da população venezuelana. Porém, sob uma bandeira populista.”

Conforme a especialista, o principal problema, no entanto, foi a excessiva dependência do recurso. “Quando o preço do barril caiu para menos de US$ 40,00 ainda em 2008, em virtude da crise financeira que se iniciou nos Estados Unidos, mas rapidamente atingiu o restante do globo, a economia venezuelana também foi afetada. Os preços da commodity continuaram registrando baixas, o que acabaria por levar o país à crise.”

Com a morte de Chávez em 2013, o aumento da pobreza e da inflação e a escassez de produtos básicos já levavam a um questionamento do Chavismo. “Naquele mesmo ano, seu sucessor, Nicolás Maduro, venceu o oponente em uma eleição apertada, e em 2014 – em um movimento similar ao que aconteceu no Brasil em 2013 –, grandes protestos populares levaram milhares às ruas para reivindicar melhores condições de vida”, destaca.

Com a instabilidade política e as dificuldades econômicas, teve início a migração de venezuelanos. “Até 2015, havia mais colombianos que buscavam a Venezuela como destino de migração do que venezuelanos que migravam para a Colômbia, quadro que se modificou a partir daquele ano”, diz Mariana.

Porém, de acordo com a pesquisadora, Maduro segue práticas populistas do Chavismo, mesmo sem o lastro econômico e o apelo popular de Chávez. “Seu governo foi pivô de uma série de crises institucionais, como a de 2017, em que o Tribunal Superior de Justiça da Venezuela removeu os poderes da Assembleia Nacional. Em 2018 foi reeleito em um pleito muito contestado pela oposição e pela comunidade internacional. A eleição foi boicotada por partidos de oposição, que não puderam se fazer representados em sua totalidade.”

Ainda hoje, questiona-se a legitimidade da presidência de Maduro. Em 2019, o líder de oposição Juan Guaidó, apoiado pela Assembleia Nacional, autoproclamou-se presidente, gerando nova crise institucional. “São elementos socioeconômicos e políticos – em um contexto de colapso econômico, denúncias de corrupção, aparelhamento do Estado e aumento da criminalidade – que têm feito os venezuelanos buscarem melhores condições de vida em outros países, como no Brasil.”

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