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ENTREVISTA

Haiti e os conflitos que se sucedem em um dos países mais pobres do mundo

Foto: Raphael Capelari/Gazeta da Serra

Doutor em Relações Internacionais e professor da Faculdade de Direito de Santa Maria, representante da Organização dos Estados Americanos (OEA) no Haiti, entre 2009 e 2011, arroio-tigrense Ricardo Seitenfus falou sobre a atual situação do país

Os últimos meses tem sido de instabilidade política e de grande insegurança no Haiti. O país caribenho, com pouco mais de 11 milhões de habitantes, recebeu a notícia do assassinato de seu presidente Jovenel Moise, em 7 de julho. O líder haitiano foi morto em sua residência, na capital Porto Príncipe, em um ataque que deixou ainda sua esposa gravemente ferida, intensificando a crise política e social enfrentada no país.

Em entrevista ao Giro Regional da rádio Gazeta FM 98.1, na quarta-feira (14), o doutor em Relações Internacionais e professor da Faculdade de Direito de Santa Maria, representante da Organização dos Estados Americanos (OEA) no Haiti, entre 2009 e 2011, arroio-tigrense Ricardo Seitenfus, discorreu sobre tópicos do assunto que ganhou os noticiários internacionais.

Em uma analogia, para facilitar o entendimento, Seitenfus comparou a situação vivida no Haiti com o puxar de uma linha e esta se desenrolando em um enorme novelo de lã. “Quanto mais se avança na investigação, mais aparece o que hoje considero uma trama internacional, com mandantes internos, externos, com financiamento, com os executores, são 26 colombianos, 5 estão fugitivos, 4 foram mortos na operação, tem haitianos, haitianos-americanos, haitianos-canadenses, tem ex-senador haitiano, ex-funcionário público, ou seja, a cada 3h ou 4h, para quem acompanha o processo, aparece mais alguém com novas informações. E todos estes que estão envolvidos até agora, ninguém conseguiu dar uma razão ou uma desculpa, ou seja, todos tem culpa no cartório, veremos até que ponto”, assinalou.

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Conforme o professor, o magnicídio que vitimou o chefe de Estado, foi um crime bárbaro, “é algo praticamente inédito, porque ao longo de 200 anos de história independente do Haiti (desde 1804), dezenas de presidentes foram derrubados. Mas havia um modelo de queda presencial. Quem era derrubado, se dava à ele um passaporte diplomático, recursos financeiros, colocava-se em um avião e entrava em exílio. Este é somente o terceiro, de quarenta ou cinquenta golpes que teve no Haiti, que é assassinado, e o pior, em sua residência particular, em seu quarto, e a sua esposa foi ferida e uma filinha conseguiu se refugiar na peça ao lado. Então é uma quebra de paradigma, e que disse logo no início que tem a mão estrangeira, eu não sabia, mas eu disse: os haitianos não são capazes de fazer isso”, ressaltou.

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Em contato à distância com Moise, Seitenfus recorda que nos últimos meses o presidente se mostrava muito preocupado com o aumento das atividades das gangues na região metropolitana de Porto Príncipe. “Ele me solicitou que eu visse aqui no Brasil a possibilidade de fazer um levantamento sobre as origens sociológicas das gangues. Quem financia, para onde vão os recursos dos sequestros, e também propus a ele que se fizesse um diálogo nacional, que desembocasse na assinatura de um pacto de liberdades e garantias democráticas para pôr fim à 35 anos de transição do regime de exceção, que terminou em 1986, e que nós ainda não chegamos ao final desta transição para aquilo que eu chamo de paraíso democrático”, explicou.

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O Haiti, segundo Seitenfus, bateu todos os recordes de “peão do fracasso, no que diz respeito a transição política de regime de exceção para um regime de democracia representativa, e é o único país que não fez um pacto”, que incluem, entre outros, leis de anistia, leis de perdão (não de esquecimento), para cicatrizar feridas do passado. “E olhando para a frente, estabelecendo as regras do jogo para o combate político, porque toda a sociedade humana, evidentemente, vai ter um combate político (multipartidarismo, alternância no poder, liberdades individuais, de imprensa, de associação), enfim, regras mínimas e o Haiti foi o único país que não fez. E o porquê? Porque temos no Haiti 265 partidos políticos e quando o eleitor se pronuncia quando das votações, há 1 vitorioso e 264 que perdem. Ao perder eles não reconhecem nenhum pleito, resultados, nem reconhecem o vencedor, e mantém o país em uma instabilidade permanente, porque querem regimes transitórios, pois governos transitórios são governos de união nacional, em que cada um vai pegar um pedacinho do bolo do Estado, que é muito pobre, mas é alguma coisa”, destacou o especialista.

Seitenfus chegando na madrugada de 15 de janeiro de 2010 no aeroporto Toussaint L’ouverture, em Porto Princípe (Haiti), com os primeiros socorros brasileiros após o terremoto que vitimou 230 mil pessoas

O ‘modus vivendi’ político no Haiti é a instabilidade política permanente, enquanto a instabilidade de segurança se manifesta nos períodos eleitorais, pois de modo geral, “os índices de violência no Haiti são muito menores que os registrados no Brasil”, enfatizou o professor, com base nos estudos que são realizados anualmente. “Não é um país violento. É um povo extraordinariamente doce, respeitador dos princípios da propriedade, da experiência dos mais velhos e, neste sentido, há uma lição pedagógica permanente do vodu, diferente do que as pessoas costumam imaginar, é uma lição de vida e ensina o respeito à estes princípios. Defino o vodu como cimento da sociedade haitiana, por isso que a sociedade é tão pouco violenta”, acrescentou, reforçando ser esta uma nação pobre, de uma miséria terrível, com 4,5 milhões de haitianos que passam fome e 1,5 milhão de crianças que não vão à escola pelo mesmo motivo.

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Seitenfus comentou ainda sobre o perfil do ex-presidente, que era empresário do norte do país, “um sujeito de perfil baixo, mas que descobri nestas últimas semanas em contato com ele, com propósitos muito firmes e inclusive uma coragem física, muito grande”. O professor acrescentou que Moise era bastante criticado. “Acho que ele provocou a ira de muitos inimigos ao mesmo tempo, tanto políticos, quanto empresariais. Nós temos na economia haitiana, sobretudo nas importações, que o Haiti produz pouco, não o suficiente para dar de comer ao seu povo, temos algumas famílias empresariais que dominam todo o comércio exterior do Haiti e ele queria lutar e tomar medidas contra esse oligopólio. A eletricidade também é de um grupo privado e que episodicamente temos eletricidade, mas eles fazem com que o kWh suba a preços estratosféricos e ele lutou contra isso. Do ponto de vista político se dizia que ele queria se manter no poder. Esse jogo da oposição, ou seja dos 164 partidos que perdem, de manter a instabilidade permanente, mas ele havia sido eleito duas vezes, em 2015 anularam as eleições, e foi eleito em 2016”, disse.

Sobre o desenrolar dos últimos acontecimentos, Seitenfus destaca que o inquérito permanece aberto e há um grande interesse da comunidade internacional, sobretudo por parte dos Estados Unidos, OEA e Organização das Nações Unidas (ONU). “A investigação não é uma investigação haitiana. Conta com a DEA, CIA, FBI, Departamento de Justiça dos EUA, Polícia e Sistema Judiciário do Haiti e, em princípio, com o Sistema Judiciário Colombiano, entre outros”, frisou.

Quem irá assumir o comando da nação, ainda é uma incógnita. Há dois primeiros ministros, um deles recentemente designado por Moise, e que não havia ocorrido substituição oficialmente, mas já tinha, segundo o professor, o ato oficial, e ainda o presidente do senado, cuja casa está inapta para tomar decisões devido a não terem ocorrido eleições para senadores nos últimos anos. “A minha interpretação é que o primeiro ministro atual deve ser substituído pelo primeiro ministro designado por Moise e que se deva cumprir a Constituição, organizar as eleições em 3 meses pelo novo primeiro ministro”, destacou. O 1º turno das eleições está previsto para ocorrer em 26 de setembro.

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“É um país que é o berço dos direitos humanos fundamentais, e que provavelmente tenha tido razão cedo demais. Só para dar um exemplo, o Haiti conquista a Independência e termina com a escravidão em 1804. No Brasil só vamos terminar com a escravidão em 1888”, acrescentou Seitenfus sobre o pioneirismo haitiano.

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