Os reality de culinária parecem ter se tornado uma febre nacional. Tais programas têm conquistado cada vez mais fãs, interessados não tanto nas receitas, mas nos perrengues dos candidatos, forçados a realizar atividades extremamente complexas – no caso, os pratos – sob a pressão do relógio e de renomados chefs de cozinha.
Rigorosos, implacáveis, duros e irônicos, esses chefs é que roubam a cena. Enquanto os pobres aspirantes a cozinheiros suam frio diante das labaredas do fogão, os chefs permanecem às suas costas, como uma sombra maligna, balançando a cabeça, assoprando maus presságios com seus sotaques estrangeiros (“non vai darrr certo”, “non vai
darrr tempo”, “c’est horrible!”) e impondo dúvidas extremamente complexas, tais como “por que sálvia, ao invés de manjerona?”.
Jamais cogitei estar na pele de um desses candidatos. Mas a vida, muitas vezes, impõe certos desafios contra a nossa vontade. E, dias atrás, fui forçado a sentir o que tais aspirantes a cozinheiros sentem.
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Era noite de sábado. Frio lá fora, vento cortante assoviando nas janelas. O que fazer para passar o tempo? Então tivemos a ideia, eu e minha esposa, Patrícia, de preparar algum prato diferente para o jantar.
Não sou adepto da gastronomia refinada, então, minha opção recaiu sobre algumas chuletas de gado, assadas na grelha elétrica após um banho em um tempero especial de sal e alho – que havia descoberto no supermercado. Já a Patrícia optou por algo mais complexo: um acompanhamento com macarrão coberto por molho branco – uma operação complicada, que envolve uma elaborada alquimia de ingredientes para que o molho adquira
sabor e consistência.
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Foi então que as gurias, que também estavam em busca de algo para fazer, concluíram que seria muito divertido bancarem as chefs, como nos reality. Invadiram a cozinha e cercaram-me, logo impondo severa pressão sobre meus exíguos dotes culinários.
– Está muito devagarrrr – alertou-me a caçula, Ágatha, imitando um sotaque que seria alemão ou francês… ou as duas coisas, não distingui ao certo.
– Tem que virrrrar la carnê mais vezes – acrescentou a Yasmin. – Non vai ficarrrr bom…
– C’est tudo erradô – decretou a Isadora.
A seguir, as gurias migraram da grelha para o fogão, a fim de atormentar a mãe.
– Que ingrrrredientes son esses?
– Prrrrecisa mexerrrr o panela mais rrrrápido!
– C’est tudo erradô!
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E assim seguiu nosso tormento culinário, com as traquinas se revezando para azucrinar ora um, ora outro. De início foi engraçado, mas em dado momento a pressão começou a aborrecer e a entrar no psicológico, gerando acidentes. O mais grave foi uma chuleta que escorregou-me da pinça e estatelou-se no chão da cozinha. Alguns poderiam atribuir o incidente à cerveja que eu bebericava enquanto assava a carne, mas prefiro crer que tudo deveu-se à pressão das chefs mirins.
Dizem que em desastres como esse há três segundos para resgatar a comida do chão, antes que seja contaminada pelas bactérias. Creio que isso não tem nenhuma comprovação científica, mas comida não se desperdiça – principalmente quando se trata de um corte de rês bem temperado. Contudo, apesar da agilidade que demonstrei ao resgatar a chuletinha e repô-la na grelha, as chefs foram à loucura.
– O quê??? Comida na chon???
– C’est completamente erradô!!!
– Mon Dieu!!! Vai nos serrrrvirrrr errrrvirrrr comida que cairrrr na chon???
– Vou! – anunciei, já furioso. – E ai de quem non comerrrr!
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A Patrícia também se disse afetada pela pressão psicológica imposta pelas chefs. Segundo me relatou, errou a dose dos ingredientes e mexeu o molho no tempo errado, provocando a formação de “bolinhas” na mistura. E, por fim, as chefs anunciaram que estávamos no parrrredon.
Pessoalmente, não percebi nada de errado com a comida. As chuletas, o macarrão e o molho me pareceram perfeitos e, à mesa, todos deliciaram-se sem nenhuma rrreclamaçon. Comi com a sensação do dever cumprido e com a convicção de que a culinária pode ser mesmo um passatempo divertido. Principalmente quando cozinhamos em família.
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