Ana Maria, 51, conviveu, ao longo de 34 anos de casamento, com agressões morais e violência física. “Era muita briga, um ciúme doentio, eu não podia fazer nada, nem falar com ninguém”. Amargurando a dor de cada ato sozinha, pois “chorava muito e guardava tudo só pra mim, porque tinha vergonha de contar para as outras pessoas”, acabou sofrendo um acidente vascular cerebral hemorrágico (Avch), que a deixou um mês em coma. Recuperada, voltou para casa e conviveu por três meses em um lar sem brigas. Quando o marido mais uma vez a agrediu com gritos, ameaças e empurrões, ela decidiu que era hora de romper o relacionamento.
A mulher esperou o marido ir trabalhar para, apenas com a roupa do corpo, fugir de casa. “Não sabia para onde ir, porque não tinha ninguém para me dar apoio. Eu estava andando e vi uma reportagem sobre a Casa da Mulher Brasileira, em Brasília, que estava oferecendo curso para mulheres que sofreram agressão. Eu decidi ir até lá. Cheguei, registrei a ocorrência e perguntei para a recepcionista pelo curso, que era um curso para cuidadora de idosos. Ela falou que as vagas estavam preenchidas e fui embora. Ela recebeu uma ligação e depois me chamou porque tinha havido uma desistência”, relembra.
Depois do curso, Ana não tinha para onde retornar. E foi assim durante três noites, o que fez com que tivesse que dormir sentada em um ponto de ônibus. Depois, buscou abrigo na casa de colegas. Apesar das dificuldades, seguiu. Apoiada pela Casa da Mulher, fez aulas de massoterapia e, atualmente, faz curso de Técnico em Enfermagem.
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“Eu não tinha profissão. Sabia lavar roupa, arrumar casa, ir para festa. Uma vida de dona de casa mesmo”, diz, revelando que “tinha medo de tudo, porque tudo para mim era novo”. Foram necessários dois anos, “muita coragem e humildade” para “ajeitar a vida”. Hoje, Ana voltou a viver em sua casa, por força de decisão judicial, e trabalha para garantir o próprio sustento.
Ana é uma das milhares de mulheres brasileiras vítimas de violência. Os números são alarmantes: a cada hora, 503 mulheres brasileiras são agredidas. No ano passado, uma em cada três mulheres sofreram algum tipo de violência, conforme a pesquisa “Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil”, fruto de parceria entre o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (Fbsp) e o Datafolha. Nesta terça-feira (10), Dia Nacional de Luta Contra a Violência à Mulher, conforme estabelecido pelas Nações Unidas, a Agência Brasil ouviu especialistas para saber quais políticas têm sido desenvolvidas para acabar com esse tipo de violência.
Todos apontaram que é preciso, além de dar visibilidade aos crimes, estruturar uma rede de apoio que viabilize atendimento e alternativas de vida para as mulheres. Um dos equipamentos integrantes dessa rede é a Casa da Mulher Brasileira. Criado pelo programa “Mulher, viver sem violência”, lançado em 2013, apenas em 2015 foram inauguradas as primeiras casas, que têm como objetivo oferecer serviços integrados às mulheres vítimas de violência. Por isso, na base dessa proposta está a articulação dos atendimentos especializados no âmbito da saúde, da justiça, segurança pública, rede socioassistencial e promoção da autonomia financeira. O investimento financeiro e a gestão são frutos de convênios entre governo federal e estados.
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Rede de apoio é prevista na Lei Maria da Penha
A Casa da Mulher Brasileira integra a rede de apoio prevista na Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06), que estabelece que União, Distrito Federal, estados e municípios poderão criar e promover “centros de atendimento integral e multidisciplinar para mulheres e respectivos dependentes em situação de violência doméstica e familiar; casas-abrigo para mulheres e respectivos dependentes menores em situação de violência doméstica e familiar; delegacias, núcleos de defensoria pública, serviços de saúde e centros de perícia médico-legal especializados no atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar; programas e campanhas de enfrentamento da violência doméstica e familiar; e centros de educação e de reabilitação para os agressores”.
De lá para cá, embora muito tenha se falado sobre o aspecto da lei que estabelece a possibilidade de encarceramento de agressores, o lado da rede de apoio não ganhou a mesma projeção no debate público. Para a promotora Silvia Chakian, coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica do Ministério Público de São Paulo, “essa rede de atendimento é fundamental para que essa mulher tenha as consequências da violência minimizadas e para que outros casos sejam prevenidos”.
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Antes da existência da rede de apoio, a mulher era submetida a uma verdadeira peregrinação em busca de instituições públicas. Além dessa dificuldade, muitas vezes era recebida por pessoas que não estavam preparadas para tratar de casos de violência, podendo submetê-la a um sofrimento continuado ou mesmo tratá-la com preconceito.
A expectativa é que situações desse tipo se tornem menos comuns com a estruturação dessa política, explica a promotora. Apesar da importância, a estruturação é incipiente. Além de receber relatos de mulheres que apontam que são revitimizadas e que se sentem pouco acolhidas nas delegacias, a promotora afirma que as instituições que deveriam apoiá-las ainda não estão devidamente estruturadas e articuladas.
“A deficiência é vista em todos os lugares, mas piora quando analisamos a interiorização”, disse. De acordo com a promotora, mesmo em São Paulo, que tem mais dinheiro e capacidade de estruturação dessa rede do que outros estados, muitas cidades ainda não têm, por exemplo, casas-abrigo. A ausência desse apoio é central, pois “são essas mulheres que estão morrendo em silêncio dentro de casa: as que não têm sequer onde buscar ajuda”, destaca Chakian.
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A Agência Brasil procurou a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), vinculada à Presidência da República, para saber quantos atendimentos já foram registrados em unidades da Casa da Mulher Brasileira e como está a estruturação da rede de apoio, inclusive do ponto de vista regional, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.