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Opinião

Precisamos retirar as algemas mentais

Muitas pesquisas ganham notoriedade por seu conteúdo controverso. Na era das mídias, um link é compartilhado milhares de vezes, sem provocar um debate real a respeito do assunto tratado. Na semana passada, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou os resultados de uma pesquisa encomendada ao Datafolha. O estudo analisou a percepção popular sobre temas na área da violência e entrevistou 3.625 pessoas em 217 cidades de todas as regiões do País.

O clichê dos intransigentes, “bandido bom é bandido morto” teve apoio da maioria. A cada 10 brasileiros na pesquisa, seis concordam com o teor desta frase que agride os direitos e liberdades básicas de todos os seres humanos. O discurso de ódio tem origem e fundação na ignorância, e não deve ser multiplicado sem a devida desconstrução. 

Talvez a maior falha seja que os criticantes conseguem ver apenas o crime. Apenas a violência. Mais da metade da população brasileira falha em ver esta situação sob uma perspectiva humana. De que existe uma pessoa, um ser humano, que vive e respira, que errou e cometeu este crime. E ainda além, que a criminalidade tem diversas causas, que permitimos que sejam perpetradas: a carência da educação, a situação de pobreza e a ausência de condições básicas de saúde. Junte-se a isto uma miríade quase infinita de outras complicações sociais, e o resultado é a crise de segurança que vivemos atualmente. Fato é, que a atual política de encarceramento não resolve nada, e a tendência é piorar. 

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A presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Cármen Lúcia declarou no último dia 10 que um preso custa mais por mês, do que um estudante do ensino médio aos cofres públicos, e que isso demonstra algo realmente errado em nossa pátria. “Darcy Ribeiro fez em 1982 uma conferência dizendo que, se os governadores não construíssem escolas, em 20 anos faltaria dinheiro para construir presídios. O fato se cumpriu. Estamos aqui reunidos diante de uma situação urgente, de um descaso feito lá atrás”, disse a ministra.

Esta pesquisa enfatiza não apenas uma falta de empatia latente, mas também demonstra a crise de confiança nas forças de segurança e no Estado, e a deterioração da ordem social. Neste contexto surgem justiceiros, linchamentos, entre outras atrocidades. E isso é algo que não podemos permitir. Como uma sociedade pensante e politizada, é preciso gerar consciência sobre o que causa as contrariedades que encontramos, para então se produzir um enfrentamento sem jamais julgar um crime ou um criminoso apenas num conta-gotas, sempre analisando a situação universalmente.

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“Ordem e progresso são duas cantilenas/Cantadas no compasso das algemas”, canta a banda de Caxias do Sul Cuscobayo em sua canção chamada Comandos em Ação. E parece mesmo que o brasileiro vive numa distopia de vingança, onde a justiça só é boa quando conveniente. Aqueles nos elos mais fortes e até no meio da corrente são incapazes de compreender a situação de quem está no lado mais fraco. “Tu anda pela rua e olha ao teu redor/ Tu teme alguma coisa, não quer admitir/ Que essa insegurança que tu sente/ É uma projeção da mente/ Um espelho social do nosso ser/ Que busca harmonia em pesos diferentes/ Que tenta achar a luz procurando no escuro”, completa a música dos caxienses. 

Para mais de um milhão de brasileiros encarcerados por ano, a punição não é equivalente aos crimes cometidos. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Brasil tem atualmente mais de 711 mil presos, ocupando a 4ª posição do ranking mundial. Este não é um número que deve causar orgulho, e sim vergonha. Quando o discurso mais ouvido é de que este é o pais da impunidade, percebemos que ainda existe muito desconhecimento.

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A maioria prefere se colocar no lugar das vítimas. “E se fosse um parente seu que fosse assaltado ou morto?” Mas você já parou um dia pra se imaginar no outro lado? Mesmo que você diga pra si mesmo que nunca praticaria um crime, todos nós cometemos pequenas infrações, e estamos sujeitos a ser presos. Nesse caso, ninguém quer se imaginar sofrendo as humilhações e brutalidades de uma cadeia. Não é mesmo?

Porque se existe quem pense que o encarceramento é pouco, certamente não conhece as condições das prisões brasileiras. Retirar a liberdade de uma pessoa, tem como objetivo o arrependimento pelos crimes, a compreensão dos erros e a ressocialização para um retorno inclusivo na comunidade. Mas na prática nada disto acontece. Principalmente porque lugar-comum é se referir aos presos como “vagabundos”, “meliantes”, “bandidos”, “marginais” como se a criminalidade fosse um fator externo, e não uma parte da própria sociedade.

As carências do sistema prisional abrangem desde a falta de vagas, que gera despropósitos como homens algemados a lixeiras, transportados dentro de porta-malas, dividindo celas com dezenas de outros presos e detidos em contêineres. As vezes sem acesso a condições mínimas de saneamento, saúde e alimentação. Mas também fere não propiciar oportunidades de ressocialização perdurável. Sem isto, o tempo de aprisionamento serve apenas para torturar esses homens e mulheres, sem contribuir para uma segurança pública mais justa e eficaz. 

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Busca por exemplos

A advogada, escritora, ativista e jornalista Carmela Grüne, de 33 anos, realiza desde 17 de agosto de 2011 o projeto Direito no Cárcere, que ocorre na Galeria E1, do Presídio Central de Porto Alegre (PCPA). A prática beneficiou até hoje mais de 650 detentos em tratamento de dependência química, atingindo diretamente entre detentos, familiares, voluntários e equipe técnica mais de duas mil pessoas.

Quando alguém diz pra Carmela: “Bandido bom é bandido morto. Leva pra tua casa”. Ela responde: “Eu levo!”. Sua primeira experiência com o cárcere foi no Rio de Janeiro, em Nova Iguaçu. Ela luta contra uma cultura onde o detento não é tratado pelo nome, e acredita que precisamos remover as algemas mentais (frase que dá nome a este texto) e enxergar a população encarcerada com a dignidade que lhes é devida. Carmela fala sobre homeostase cultural, que se dá quando conseguimos mudar a nossa vida e ressignificar a experiência negativa.

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Desde sua criação diversas ações de mobilização social foram realizadas entre atividades educativas, artísticas e culturais. A iniciativa criou a primeira plataforma de expressão de apenados em regime fechado no Brasil, divulgando de dentro para fora do cárcere, com um olhar muito além da cultura de espetacularização.


Gabriel Romano e Grupo no Direito no Cárcere. Foto: Carmela Grüne/Divulgação.

Entre os voluntários ilustres do Direito no Cárcere, uma das apresentações mais recentes foi da banda gaúcha de música experimental e instrumental Gabriel Romano e Grupo. O violinista Ivan Andrade conheceu o projeto através do Facebook, estabeleceu contato e convidou o restante do grupo para uma participação. “Eles prontamente aceitaram, e foi uma experiência bem positiva, pela organização interna que existe e pela maneira que fomos recebidos lá”, conta.

O músico Fabricio Gambogi, também integrante do Gabriel Romano e Grupo diz que a participação é uma forma de contribuir com algo em que acredita, que está ao alcance. “Nós fomos tocar para uma galera que está muito carente de compreensão, não só de liberdade, mas também de cuidados. Não é porque eles estão presos, que não merecem ler um livro, ouvir uma música. Encher a cabeça destas pessoas com arte, cultura e debates é muito mais produtivo para se reconstruir.”

“Todos nós queremos segurança, nós buscamos isso e todos queremos sair numa cidade segura. Mas o que nós estamos fazendo para mudar essa realidade?”, pergunta Carmela em sua inspiradora palestra ‘Traficantes de sonhos roubados’ no TEDx.  Ela diz ainda que “não há uma consciência de que este discurso de ódio que a gente acaba ouvindo tenha que ser mais do que uma crítica. A gente precisa saber quem são essas pessoas que estão lá dentro.” 

Na sua fala de menos de 20 minutos, a advogada defende o direito universal, e a expansão do protagonismo. “A invisibilidade no cárcere, ela é muito forte. Existe uma sede de sangue, que pega toda a carga deste crime o coloca em um jovem, que também tem sonhos, e pra quem faltou uma oportunidade. Precisamos enxergar essa população, a gente pode até ver, mas enxergar é diferente. Precisamos de uma janela de visibilidade”, diz.

No próximo dia 25 ocorre o V Ciclo de Estudos Direito no Cárcere, que oportuniza um diálogo sobre a realidade de quem vive atrás das grades. No evento que acontece no Auditório do Presídio Central de Porto Alegre, falas da advogada Raquel Elena Rinaldi Maciel, do procurador de Justiça do Ministério Público do Rio Grande do Sul Gilmar Bortolotto, do artista plástico Aloizio Pedersen, do juiz da Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre Sidinei José Brzuska, do Delegado de Polícia no RJ Orlando Zaccone além do ex-Integrante do Projeto Direito no Cárcere Henry Cruz Junior e dos detentos integrantes do projeto. As inscrições estão esgotadas, mas o evento será transmitido ao vivo através da página no Facebook.


Participantes do projeto com Gabriel Romano e Grupo; à frente Carmela Grüne. Foto: Divulgação

“Nós precisamos dar vidas a estes sonhos, e não só quando são crianças, precisamos que este 1 milhão de pessoas que passaram por presídios possam voltar a crescer; esse tempo no cárcere está passando, e precisamos fazer que ele seja construtivo. Preocupem-se com o tempo de vocês, com o tempo de quem não tem uma oportunidade. Levem suas vivências, compartilhem suas experiências. A gente precisa de multiplicadores, para acabar com o preconceito e a discriminação”.

É muito fácil disseminar preconceitos e ignorar as verdades. Difícil é desconstruir julgamentos, estender a mão, se colocar como um agente de mudança efetiva para a redução da criminalidade. Se você senta no conforto de casa com um notebook ou smartphone em mãos, dispersando ódio incessantemente enquanto protegido pelo anonimato da internet, sem consciência, e sem tomar nenhuma atitude no mundo real, não deveria criticar aqueles que fora do mundo virtual estão trabalhando duramente para realizar uma modificação na forma como tratamos a população carcerária.

A crise na segurança pública gaúcha que atingiu níveis alarmantes em 2016 é reflexo de uma série de problemas. O Estado trabalha em várias frentes para resolver isso, mas porque não, como cidadão ter um posicionamento?  No lugar de uma população armada “para lutar a guerra da violência urbana”, é muito mais eficaz lutar com educação, com arte e com compreensão. No lugar de uma cultura vindicativa, excludente e discriminatória, busque ações para uma sociedade mais justa, humanizada e igualitária. No lugar da hostilidade e da segregação, procure formas de contribuir: existem muitas. 

O ponto aqui não é se você concorda ou não, isso não vai impedir os voluntários que tentam oferecer melhores condições de vidas a um punhado de seres humanos renegados pela maioria. O ponto é que aqueles mais ferinos ao criticar esses projetos, são aqueles que não movem uma palha pelo bem comum, pessoas que não tomam nenhuma atitude. Falta compreensão, falta, como Carmela diz, retirar as algemais mentais. Críticas vazias não contribuem para a vida em sociedade, ações sim. 

Saiba como ajudar:

Atividades previstas abertas ao público:

  • 25/11 – V Ciclo de Estudos Direito no Cárcere (evento aqui)
  • 10/12 – Café Solidário Estado de Direito (evento aqui).

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