Dar sentido às coincidências que se colocam em nosso caminho é um exercício poderoso. Se mensagens divinas e recados astrológicos soam por demais vazios a ouvidos pragmáticos como os meus, vale mais a pena reconhecer os acasos, atribuindo-lhes algum significado que nos garanta alguma segurança, sobretudo em tempos sombrios.
Pois bem.
Quase em frente ao edifício onde moro, há um ipê, desses que antecipam a primavera e enchem a cidade de cor tão logo os dias mais frios do ano se despedem. Consigo enxergá-lo pela janela da sala e, na tarde do último domingo, notei as primeiras e ainda discretas pinceladas de rosa em meio ao verde das folhas, sinal de que a floração está próxima.
Publicidade
Nada de especial não fosse o fato de que domingo era Dia dos Avós, e a imagem de um ipê em flor me remete instantaneamente a meu avô materno. Homem de rara erudição, o vô Elbio há quase 25 anos escreveu um breve conto chamado “Os ipês… os ipês!”, no qual, sob o olhar de um neto, um velhote descobre, no alto dos 78 anos, a beleza fascinante das pequenas coisas que nos cercam.
O texto é de uma delicadeza ímpar, assim como era o seu autor. Vô Elbio foi militar, chegou a coronel, mas esqueça qualquer estereótipo que isso possa invocar. Era uma pessoa tenra, de olhar sempre sereno e uma generosidade sem fim. De longe, o melhor ser humano que conheci. Uma vez aposentado, dedicou-se à literatura e, se não alcançou fama, obteve reconhecimentos importantes, incluindo um Prêmio Guimarães Rosa, o que não é para qualquer um.
Retornei essa semana ao conto dos ipês, que sempre foi o xodó da família e que, de tantas leituras e releituras ao longo da vida, eu seria capaz de citar alguns trechos de cabeça. Porém, talvez por efeito das circunstâncias, nunca me senti tão na pele do neto narrador como dessa vez, e jamais havia percebido o quanto a história traduz com exatidão a postura que meu avô parecia manter em relação à vida. “Vê-se tanto e tanto se aprende! E é sempre depois de muitos e muitos anos que constatamos ainda não havermos visto aquilo que está – e esteve sempre – a um palmo de nossos olhos. Talvez o que tenha acontecido com vovô: obstinar-se uma vida quase inteira na recusa em descobrir o que vale ser descoberto”. Assim como o velhote do texto, o vô Elbio também sabia enxergar beleza no mundo e a sua bondade e ternura tão singulares eram a forma com que retribuía
Publicidade
Eis que me vejo, 12 anos depois de sua partida, diante da lembrança dele, ativada por uma flor de ipê que nascia preguiçosa em um domingo invernal de Dia dos Avós. E isso tudo em meio a um momento de desesperação, em que as incertezas se multiplicam, as saudades machucam, a morte nos ronda e, paradoxalmente, a intolerância e a irracionalidade parecem ganhar força.
Tal acaso não poderia me levar a outra conclusão. O que nos resta hoje para manter a calma é o que o vô Elbio tinha de sobra: esperança e amor pela vida, pelas pessoas, por um mundo ao qual será bom retornar quando tudo isso passar. Penso nisso, e nele, a cada vez que olho pela janela agora. E quando a angústia bate, lembro do que ele nos ensinou e que é tão simples quanto libertador: que os ipês florescem em agosto.
Publicidade