É numa pequena sala na Rua Carlos Maurício Werlang que a pintura, a arte e, por que não, a terapia coletiva caminham juntas. Naquele ateliê onde os pincéis e as tintas se harmonizam com o desenho retratado na tela, o bom humor é soberano e o compartilhamento de ideias acontece de forma espontânea. Inspirados pela orientação da artista plástica Márcia Marostega, alunos de diferentes idades e estilos de vida procuram esquecer o que ocorre lá fora. Durante três horas semanais – às vezes, até mais – aprendem que criatividade é se permitir e senso estético nem sempre é (só) um dom. É uma capacidade lapidada conforme as referências recebidas e, claro, muito esforço desprendido.
“Não existe estar pronto. Existe a vontade de fazer alguma coisa, de colocar na tela um sentimento e uma percepção”, diz Elusa Borowski Morsch. Aluna veterana de Márcia, a aposentada, que ainda comemora a conquista do Prêmio Aquisição (Bento Gonçalves) em junho deste ano, afirma que a troca é uma das principais motivações para estar ali. “É muito bacana porque não fazemos esse trabalho isolado. Uma interfere na pintura da outra.”
Márcia, que herdou algumas alunas do projeto Uniarte da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), quando ministrou cursos de 1997 a 2010, comemora 20 anos de parceria com as suas aprendizes. “Arte pra mim é cura, é prece. É onde eu externo as minhas emoções.” E nesse contexto, a artista, que ainda traz na bagagem curso de pintura feito na cidade de Florença, na Itália, procura entender como cada aluna desenvolve o seu trabalho. “Eu acredito que a pintura e o desenho são práticas muito pessoais. Cada uma aqui dentro tem o seu jeito de fazer. Procuro sempre respeitar isso.”
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No momento da criação, por exemplo, ela deixa claro que sua função não é apontar o que é certo – ou errado. Concentra-se em mostrar os caminhos e estar presente. E a aluna Elusa comprova. “Temos a liberdade de fazer o que queremos. A Márcia nos doa a sua experiência e conhecimento através de referências e técnicas. É assim que aprendemos a ser autônomas.” Silvani Gassen Dal Forno acrescenta: “Meu sonho era viver isso aqui depois que me aposentasse. Sou cada vez mais apaixonada. O trabalho de mãos me encanta.”
Frequentes viagens a exposições
Engana-se quem pensa que o envolvimento no ateliê da Márcia se resume à produção das telas. Em busca de novas referências, o grupo já viajou para o Instituto Inhotim (MG), sede de um dos mais importantes acervos de arte contemporânea do Brasil, e visita locais como o Museu de Arte de São Paulo (Masp), Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs) e Fundação Iberê Camargo. “Estamos sempre prontos para participar de eventos e visitar novos espaços. Nada é estanque”, diz Márcia Marostega.
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A turma do ateliê, inclusive, reúne artistas que expuseram até na Europa. Este ano mesmo, a aluna Cynthia Scanavino exibiu suas obras na Espanha. Ainda em 2004, quando Márcia orientava os cursos na Uniarte, um grupo de aprendizes foi convidado a levar seus trabalhos em Portugal. Este ano as telas de Márcia Marostega já foram vistas em exposi- ções no Chile, Peru, México e Argentina. Para ela, é nas viagens e constantes visitas a museus, exposições e galerias de arte que se criam apreciadores de arte e se fomenta um público consumidor.
PINCELADAS
Idade: Não há idade, muito menos pré-requisito para se integrar às atividades do ateliê. Segundo Márcia Marostega, a sua aluna mais nova começou na pintura quando ainda tinha 9 anos e a mais velha tem 87. E também não é só mulher, ok? Hoje a artista ensina para três alunos homens e reforça o convite para que os interessados se desloquem ao ateliê. “É pequeno, mas bem aconchegante”, garante.
Quer tentar? Quem tiver interesse em conhecer o despojado e bem-humorado ateliê de Márcia pode entrar em contato pelos telefones (51) 3715 2453 ou 99818 3931. Os trabalhos da artista também estão presentes no endereço rebbubble.com/people/marostega. Os encontros ocorrem terças e quintas, das 8h30 às 11h30 e das 14 às 17 horas. Nas quartas, as aulas são das 18h30 às 21h30. O ateliê fica na Carlos Maurício Werlang, 106.
Netinha: Há aprendizes que vendem, outras que doam – muitas obras, aliás, estão expostas nos quartos e corredores dos hospitais Santa Cruz e Ana Nery – e aquelas que têm um objetivo especial. Nesta tela, Eli Gründling Lawisch, 78, pintou a netinha Luana, de apenas 1 aninho e dez meses. A pintura está sendo preparada para ser entregue como presente de Natal. Uma relíquia de recordação.
Eli Gründling Lawisch, 78, pintou a netinha Luana. Foto: Lula Helfer.
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“É o remédio que eu não tomo”
Nair Rohde tem 67 anos e desde os 53 frequenta o ateliê da Márcia sem falhar. Em sua visão, o envolvimento com o grupo e com a arte tem dois significados. “Essa integração é o vidro de remédio que eu não tomo; é uma ‘cachaça’ que vem acompanhada de muito carinho”, brinca.
Já para a integrante que há menos tempo está no grupo, Zélia Natália Coletti Ohlweiler, 70, tratase de um desafio constante. “Eu sempre quis pintar, mas enquanto trabalhava não conseguia aliar as duas coisas”, lembra. Um ano após se aposentar como professora da Unisc, em 2013, decidiu que era hora. “Eu precisava ocupar meu tempo, mas foi necessário coragem. Procurei a Márcia e perguntei: tu aceitas alguém que não sabe fazer nada?”, lembra aos risos. E a acolhida não poderia ter sido melhor. “Fui recebida com muito afeto. Hoje faço dessa atividade um lazer produtivo onde me realizo.”
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A feliz acolhida relatada por Zélia é compartilhada por todas as meninas reunidas na manhã da última terça-feira, lá no ateliê. Segundo Elusa, é no pequeno estúdio onde cavaletes dividem espaço com pincéis que muitos desabafos acontecem. “É mais do que pintura. Aqui nós partilhamos inúmeros momentos da vida. Construímos sinceridade e transparência.”
PARCERIA
Quem circulou pela Casa das Artes Regina Simonis do dia 21 de novembro a 2 de dezembro pôde conferir uma exposição montada para lembrar os 20 anos de parceria entre Márcia Marostega e suas aprendizes. Chamada Memória: a Imagem das Palavras, a mostra reuniu trabalhos que buscaram representar recordações de momentos marcantes da vida das artistas, influenciados por elementos específicos da arte, como a literatura e a música, bem como por lembranças da infância e da família. Segundo Márcia, pelo menos uma vez por ano o grupo organiza uma exposição em Santa Cruz do Sul.
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