A filósofa americana Judith Butler atribuiu ao medo a reação à sua participação em um evento no Sesc Pompeia esta semana, que gerou um abaixo assinado com mais de 350 mil assinaturas pedindo o seu cancelamento. “Acho que me sinto triste com tudo isso, pois a postura de ódio e censura é baseada em medo, medo de mudança, medo de deixar os outros viverem de uma maneira diferente da sua. Mas é essa habilidade de viver com a diferença entre nós que vai nos sustentar no longo prazo”, diz “Precisamos ser capazes de abrir nossas mentes para entender com quem co-habitamos no mundo, não para subordiná-los a uma forma de viver, mas para aceitar modos de vida no plural, a complexidade de que somos feitos.”
Butler é professora da Universidade da Califórnia e um dos principais nomes da filosofia contemporânea. Temas delicados fazem parte de sua rotina como pensadora. Ela lança nesta segunda-feira, 6, o livro Caminhos Divergentes: Judaicidade e Crítica do Sionismo, em debate promovido pela Unifesp, pelo Instituto de Cultura Árabe e pela editora do livro no Brasil, a Boitempo. Já não há vagas, mas o evento será transmitido ao vivo pelo Facebook. De terça-feira, 7, a quinta-feira, ela estará envolvida com o seminário Os fins da democracia, no Sesc Pompeia, organizado pelo Convênio Internacional de Programas de Teoria Crítica (UC Berkeley) e pelo Departamento de Filosofia da USP, em parceria com o Sesc. Também não há mais vagas.
Um dos principais temas de seu trabalho, no entanto, está relacionado às teorias de gênero, que ela abordou em livros como Corpos que Contam; Sobre os Limites Discursivos do Sexo e Problemas de Gênero; Feminismo e Subversão da Identidade. E, ainda que não seja esse o tema de sua participação no evento do Sesc Pompeia, foi ele que despertou as críticas reunidas no abaixo-assinado que começa dizendo “Judith Butler não é bem-vinda no Brasil! Nossa nação negou a ideologia de gênero no Plano Nacional de Educação e nos Planos Municipais de Educação de quase todos os municípios. Não queremos uma ideologia que mascara um objetivo político marxista”.
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“Não conheço o Brasil bem o suficiente para saber quem são essas pessoas, mas talvez algumas delas nem sejam reais, apenas robôs”, diz ela, em entrevista por e-mail. Para Butler, é possível entender essas críticas à luz de um contexto mais amplo “Se acreditássemos que o mundo estivesse caminhando para a frente, exemplificando progresso, provavelmente estaríamos errados. Sempre houve pessoas que desprezaram o que outros chamam de progresso. Ainda existem pessoas que querem viver em um mundo no qual se aceita a ideia de supremacia branca, por exemplo. Eles não se sentiam livres para falar disso, mas, agora, com novos líderes de posturas autoritárias, sentem-se à vontade para falar.”
Para Butler, a teoria de gênero, como descrita por seus críticos, é uma “caricatura”. “Acredito que a maioria das pessoas que assinam esse tipo de petição formam sua própria ideia do que seja ‘gênero’ e ‘Butler’ a partir de comentários feitos nas redes sociais e em sites conservadores. Nesses espaços, a teoria de gênero é descrita como uma caricatura, o que causa medo e ansiedade. Para as pessoas que acreditam que as diferenças entre os sexos são naturais, que a heterossexualidade é natural e que o casamento e as famílias heterossexuais são naturais, a ideia de que eles possam mudar com o tempo, que pode haver casamentos gays, desejo ou mulheres sem interesse em reprodução são difíceis de aceitar. As mudanças sociais conquistadas pelo feminismo, pelas políticas LGBTQ e por mobilizações contra o racismo geraram ansiedade naqueles que baseiam suas ideias de gênero, desejo ou parentesco em uma noção fixada a respeito do que é natural ou determinado por Deus. Se gênero é uma forma de falar sobre os vários significados que o corpo pode assumir, a consequência é que a intimidade das pessoas conservadoras, os arranjos sociais nos quais elas confiam, suas ideias de família e de nação estão ameaçadas.”
Butler tem refletido não apenas sobre os temas em si – mas sobre a maneira como se dá a discussão a respeito deles, em um clima de crescente oposição e radicalização. “Talvez este seja um momento de refletir por que as pessoas que têm o casamento heterossexual como o centro de suas vidas, por exemplo, exigem que todas as pessoas pensem da mesma forma. Entendo que questões como os diferentes padrões de desejo entram em conflito com algumas crenças religiosas e morais profundas e arraigadas. Mas, para uma sociedade não ser destruída, tudo isso precisa ser discutido: o medo, o ódio, mas também o desejo e a possibilidade de amor. Viver em sociedades contemporâneas significa aceitar a diversidade. Somos seres complexos e em transformação, mas muitas vezes não queremos falar de mudanças. A questão em que talvez possamos todos concordar é que o amor por si só não machuca, que a liberdade de expressão de gênero não machuca ninguém. Todos buscamos viver e respirar da maneira que é possível para nós. É fundamental suspender julgamentos sobre todas essas questões.”
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A consequência do momento atual, ela diz, é um clima de ódio que gera o desejo de dominação que, por sua vez, pode se transformar em violência. “É difícil aceitar aqueles contra quem se sente hostilidade, mesmo raiva. E ainda assim todos os grandes teóricos da não-violência insistem que a raiva não precisa se transformar em violência, e que podemos, até mesmo em meio a conflitos, afirmar o direito de vida do outro. Se considerarmos as taxas terríveis de feminicídio em toda a América Latina, precisamos nos perguntar de onde essa violência emerge. E por que ela assume esta forma? Não são indivíduos apenas que cometem esses atos. Essas são práticas sociais reproduzidas entre homens ao longo do tempo. Violência é a dominação extrema. Para aqueles que estão preocupados com a fragmentação e a corrosão da sociedade, talvez seja importante considerar os efeitos corrosivos de se matarem mulheres, incluindo mulheres trans, e o que isso diz sobre como o ódio e a violência se tornaram institucionalizadas.”
Como pano de fundo a essas e outras questões – como o conflito entre Israel e Palestina -, Butler, que lança ainda A Vida Psíquica do Poder: Teorias da Sujeição, pela Autêntica, identifica um aspecto fundamental: a ideia de convivência democrática entre as diferenças. “Há uma falha em ver que é nossa obrigação aceitar e afirmar que todos têm o direito de pertencer a este mundo, e que este direito deveria ser compartilhado igualmente. A ideia de igualdade parece tão absurda! Basta dizer a palavra para ser chamado de comunista! E, ainda assim, apenas quando nossa capacidade de afirmar a igualdade e a liberdade e de lutar contra a injúria social e a exploração econômica for fortalecida é que a fragmentação será transformada em um conjunto vibrante de diferença, e a democracia será possível, ou seja, o poder de fazer o mundo em que vivemos, de governarmos a nós mesmos segundo as regras que determinamos, com base na igualdade, na liberdade e na justiça.”
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