Onde antes se via pés de tabaco plantados na propriedade de Armindo Petry, não se vê mais. Há três anos, o morador de São José da Reserva, interior de Santa Cruz do Sul, foi obrigado a abandonar a atividade à qual se dedicou durante toda a vida. Hoje a família depende da aposentadoria da esposa Rejane e de uma pequena criação de porcos. Tudo isso por causa de um imbróglio que não consegue resolver: dívidas do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), que teriam sido feitas em seu nome de forma indevida.
Petry é um dos 5.744 agricultores do Vale do Rio Pardo que, segundo apontou uma investigação da Polícia Federal, foram lesados por um esquema criminoso operado pela Associação Santa-Cruzense de Pequenos Agricultores Camponeses (Aspac), braço jurídico do Movimento de Pequenos Agricultores (MPA), que intermediava os financiamentos com o governo federal. Ao todo, R$ 9,9 milhões teriam sido desviados do programa.
O inquérito da chamada Operação Colono foi concluído em agosto de 2015 e indiciou 14 pessoas. Passado um ano e meio, porém, o Ministério Público Federal (MPF), a quem cabe oferecer denúncia à Justiça contra os acusados ou arquivar o processo, ainda não se manifestou.
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Entre as vítimas, crescem o receio da impunidade e a aflição sobre suas próprias situações. A família de Petry é cobrada por dívidas referentes a uma série de empréstimos que somam R$ 70 mil, mas ele garante que jamais recebeu esse dinheiro e sequer tinha conhecimento desses contratos. Um dos créditos que constam em seu nome, de R$ 9,8 mil feito em 2009, refere-se ao plantio de pastagens para 48 vacas, mas a família jamais possuiu criação de gado.
“Eu fiz um Pronaf na década de 90 e não terminei de pagar. Daí eles (pessoas ligadas à Aspac) vinham aqui e me diziam para assinar um papel para prorrogar a dívida. Nunca me falaram que estavam fazendo outros contratos”, conta Petry, que não sabe ler ou escrever. Procurado com frequência por firmas de cobrança e com o nome inscrito no SPC e Cadin, Petry não conseguiu manter a produção fumageira. “Fui ver com a empresa por que o meu adubo não estava vindo, e aí descobri que era por isso.”
De tão angustiada, Rejane já esteve em depressão e quis entregar parte do patrimônio da família para dar fim ao drama. Seu medo é perder as terras, que constam como garantia nos contratos. A expectativa agora é pela Justiça. “Eu só quero saber onde foi parar esse dinheiro. E não vou pagar porque não recebi”, conclui Petry.
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O TAMANHO DA FRAUDE
5.744 produtores rurais – do Vale do Rio Pardo teriam sido lesados pelo esquema
criminoso, segundo apontou o inquérito da PFR$ 9,9 milhões – teriam sido desviados por funcionários da Aspac em Santa Cruz e Sinimbu, que tratavam sobre transferências e liberação de recursos com servidores do BB
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Primeiras sentenças têm resultados distintos
Desde que o escândalo do Pronaf veio à tona, mais de cem ações individuais já foram ajuizadas contra o Banco do Brasil por agricultores da região que alegam ter sido vítimas da fraude. Os processos pedem a suspensão das cobranças, a regularização dos débitos e indenização por dano moral ou material.
Segundo um dos advogados que representam produtores, Edmar Hermany, até agora somente cerca de 10% dos casos já têm sentença, e os resultados variam.
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A Gazeta do Sul teve acesso a três sentenças, que saíram entre outubro e novembro do ano passado. Em todas as situações, os agricultores afirmam não reconhecer contratos de Pronaf registrados em seus nomes e alegam que recursos depositados nas suas contas foram movimentados sem seu conhecimento.
Em dois casos, o banco foi condenado. Segundo o juiz André Luís de Moraes Pinto, da 2ª Vara Cível do Fórum de Santa Cruz, a instituição não justificou ou comprovou a legalidade das transferências de recursos das contas dos produtores. “Resta indubitável, portanto, que o requerente foi mais uma das tantas vítimas da denominada ‘Fraude do Pronaf’, descortinada nos municípios que compreendem a Região do Vale do Rio Pardo ainda no ano de 2014”, escreveu o magistrado.
Já no terceiro caso, a ação foi julgada improcedente pela juíza Josiane Estivalet, da 1ª Vara Cível, que alegou não haver provas de que as movimentações na conta bancária foram fraudulentas. “O simples fato de ter sido descoberta a denominada ‘fraude do Pronaf’, por si só, não possui o condão de invalidar todos os contratos que foram firmados por tal modalidade na região”, alegou.
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Delegado vê risco de prescrição
O Código de Processo Penal prevê prazo de 15 dias a partir da conclusão do inquérito para o oferecimento da denúncia, quando o réu não está preso. A não ser que o órgão solicite diligências complementares – o que aconteceu no Caso Pronaf.
Por se tratar de um processo complexo e extenso, a Polícia Federal já contava com uma espera maior. A demora do MPF em se manifestar, no entanto, é considerada grave. “É lamentável que um trabalho tão importante da PF, pelo qual foi revelado um dos maiores esquemas de desvio de recursos públicos da região, comprovando o prejuízo causado a milhares de agricultores, esteja aguardando tanto tempo para o desfecho judicial”, disse Luciano Flores de Lima, delegado que conduziu a investigação.
O maior risco, segundo ele, é de que essa lentidão inviabilize a punição caso os crimes sejam confirmados. “Se continuar nesse ritmo, a prescrição de alguns crimes será provável e o sentimento de impunidade que tanto aflige nossa sociedade continuará ocorrendo”, afirmou Flores, que atualmente está alocado em Vila Velha (ES).
RELEMBRE COMO FUNCIONAVA O ESQUEMA
- Segundo a investigação, após serem liberados pelo governo federal, os recursos de financiamentos eram transferidos das contas bancárias dos agricultores para contas da Aspac. Isso ocorria porque os produtores assinavam autorizações em branco. Em alguns casos, o dinheiro era mais tarde devolvido. Em outros, não.
- Com apoio de políticos, líderes do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) intercediam junto ao governo federal para conseguir a prorrogação ou perdão das dívidas dos agricultores. Em função disso, muitos não chegavam a tomar conhecimento sobre o que havia acontecido.
- O esquema começou a ruir quando as prorrogações deixaram de sair e os agricultores começaram a descobrir que havia pendências em seus nomes – em alguns casos, superiores aos seus patrimônios pessoais. Os indiciados negam as irregularidades levantadas pela PF.
OS INDICIADOS
– 1) Wilson Rabuske: coordenador do MPA no Vale do Rio Pardo e ex-vereador pelo PT em Santa Cruz.
– 2) Vera Lucia Lehmenn Rabuske: esposa de Wilson
– 3) Perci Roberto Schuster: presidente da Aspac.
– 4) Maikel Ismael Raenke: atuava junto ao MPA em Sinimbu e é ex-vereador pelo PT no município.
– 5) Marlise Teresinha Goulart: atuava junto ao MPA em Sinimbu
– 6) Vania Emília Müller: trabalhou no MPA/Aspac entre 2003 e 2013
– 7) João Carlos Hentschke: gerente-geral em Santa Cruz entre agosto/2007 e fevereiro/2011
– 8) Wilson Luiz Bisognin: gerente-geral em Santa Cruz entre março/2011 e julho/2012
– 9) Vladimir Barroso: gerente-geral em Sinimbu entre julho/2007 e fevereiro/2011 e em Santa Cruz entre julho/2012 e junho/2014
– 10) Juliano Chedid Matte: gerente-geral em Sinimbu entre fevereiro/2011 e janeiro/2013
– 11) Clovis Kegler: funcionário do BB em Santa Cruz
– 12) Sérgio Augusto Teixeira Silveira: gerente de relacionamento em Santa Cruz
– 13) Rafael Spalding Cavalli: gerente de relacionamento em Sinimbu
– 14) Fabiana Palhano: funcionária em Sinimbu
*Todos os funcionários do Banco do Brasil foram desligados do quadro da instituição.
Entre as vítimas, crescem o receio da impunidade e a aflição sobre suas próprias situações. Foto: Rodrigo Assmann
Sem crédito, agricultor teve que sair do campo
Após duas décadas trabalhando na produção de tabaco e milho e na criação de porcos em uma propriedade em Linha Felipe Neri, Décio Frantz abandonou a vida no campo há cerca de quatro anos e atualmente trabalha como pedreiro na cidade. O motivo: dívidas do Pronaf.
O drama começou após Frantz realizar dois financiamentos, um para construir um galpão e outro para custeio pecuário, que não conseguiu quitar. Segundo ele, pessoas ligadas à Aspac procuravam-no pedindo sua assinatura para prorrogar o débito. Frantz, porém, admite que não conferia os documentos que assinava. Mais tarde, descobriu que outros empréstimos haviam sido feitos em seu nome e identificou movimentações na sua conta bancária que não reconhecia.
Ao todo, foram cinco contratos entre 2009 e 2010, mas ele afirma ter recebido os valores apenas dos dois primeiros, enquanto dos demais sequer tinha conhecimento. Em uma ocasião, chegou a pedir dinheiro a amigos para tentar zerar a pendência, mas continuou sendo cobrado. Hoje, sabe apenas que deve mais de R$ 20 mil. Com crédito negativado, ele se viu obrigado a deixar a lavoura. “Quando vi que não tinha mais jeito no banco, resolvi parar. Se tivesse condições, continuava”, conta.