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Prematuros

Os pequenos valentes

“Só entendemos direito o milagre da vida quando deixamos que o inesperado aconteça.” A frase escrita em uma das fotografias fixadas nos murais da entrada da UTI Neonatal, do Hospital Santa Cruz, resume o sentimento de quem esteve próximo de perder, mas venceu. A imagem do sorridente Arthur é uma entre tantas que retornam como agradecimento para quem se dedicou a eles. Há dois anos e meio, numa tentativa de fazer ainda mais pelos pequenos e suas famílias, nasceu o Pequenos Valentes do HSC. Além de disseminar esperança, essa ação levou a equipe a descobrir que a enfermagem podia ir muito além.

Em um ambiente no qual as famílias se equilibram entre ter esperanças e temer pelo pior todos os dias, o Pequenos Valentes surgiu aliado a um outro projeto. Na Hora do Conforto, os bebês eram colocados em redes, para descansarem em um momento especial. Quando as mães viam as crianças assim, achavam tão bonito que fotografavam com os celulares. As fotos singelas marcavam mais uma vitória. Vendo a reação dos pais, a técnica em enfermagem Jocecléria Brixner, 41 anos, que há 16 anos trabalha com os prematuros, achou que podia deixar aquela cena mais bela.

Com habilidade nas agulhas, Joce, como é carinhosamente chamada pelas colegas, passou a tricotar toucas e meinhas. De todas as cores e temas. “Eu queria colorir mais a foto. Pra não ficar aquele bebê apagadinho na rede”, sorri. “Isso parece um newborn”, observou a enfermeira Leila Patrícia de Moura, 29 anos. “O que é um newborn?”, questionou Joce. “Ah, estilo Anne Geddes.” A partir dali, a técnica em enfermagem iria para a internet desvendar o tal newborn – sessão de fotos feitas com recém-nascidos – e  se apaixonar por ele. Pouco tempo depois, com uma câmera digital, que cabia no bolso, as duas davam início ao Pequenos Valentes.

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Nele, os prematuros são fotografados com diferentes roupinhas e cenários. Tudo ali mesmo, dentro do hospital. “A prematuridade é um momento difícil. Eles sonham com aquele bebê perfeito, que nasce no tempo normal, que pesa mais de três quilos. Eles idealizam isso a gestação inteira. Acho que todos idealizaríamos. E quando nasce prematuro, 500 gramas, muda. Parece que cai tudo. Eles precisam começar a acreditar naquele nenê de uma outra forma. O projeto vem muito nisso. A gente devolve para os pais a imagem do bebê perfeito, que eles tinham sonhado”, resume Leila.

“Fui amando tanto tudo isso que busquei me aperfeiçoar”, conta Joce, que fez um curso de fotografia e comprou uma câmera profissional. As imagens e as histórias dos bebês são publicadas no site do hospital (www.hospitalstacruz.com.br/pequenos-valentes). “Por meio dessas histórias, a gente consegue atingir outros pais que talvez estejam passando pela mesma situação. Então, ouvindo essas histórias de superação, como a do Otávio (confira na página ao lado), uma outra família consegue criar forças para seguir adiante”, diz Leila.


Empolgada com projeto criado junto com Leila (direita), Joce fez um curso de foto
Foto: Rodrigo Assmann

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“É o marco de tudo”

O resultado das fotografias surpreende até aqueles que convivem com os bebês todos os dias. Quando veem as fotos, os pais não controlam a emoção. Depois de tantos momentos de angústia, desabam. “Eles acham que o bebê é muito frágil. Aí, quando veem as fotos, desmontam”, diz Joce. “Não conseguem acreditar que aquele ali é o nenê deles, que nasceu de 500 gramas e está ali, lindo e fotografando. E que a história deles vai ser contada e estão indo embora. É o marco de tudo. A recompensa por tudo que passaram”, completa Leila.

Mas, para que isso seja possível, todos colaboram um pouco. As colegas que sabem fazer tricô e crochê criam alguma pecinha. O ambiente é montado com o que cada uma pode levar. Aos poucos, um ursinho e uma caixa de madeira se transformam em cenário. As roupas são higienizadas. E assim, o hospital se transforma em um estúdio fotográfico. O bebê é fotografado sobre uma mesa de banho. “Só quem vive e sente consegue entender essa emoção de ver os pais. A Camila (mãe), no dia que a gente fotografou o Otávio, estava junto. Nossa, ela ficava encantada”, conta Leila.

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Mesmo a parte da equipe que não se envolve diretamente com a produção das imagens faz parte do projeto. “Se o bebê está sendo fotografado, é porque ele foi bem cuidado. Então conseguimos trazer isso para estimular a equipe. Elas são responsáveis também por aquilo. Por aquele bebê estar ali, bem”, diz a enfermeira. Dos projetos de humanização mantidos, elas acreditam que é o mais impactante na vida das famílias. “E para nós também. A gente ama. É uma recompensa, né, Joce? A gente descobriu a enfermagem também de outra forma. De fazer coisas que não têm nada a ver com nossa área, mas, ao mesmo tempo, têm tudo a ver com o que a gente desenvolve.”

A vitória de Otávio

9 de janeiro de 2017 seria um dia especial para Camila Fagundes Roos e Eduardo Severo Roos. Era a data prevista para que o primeiro filho do casal, de Santa Cruz do Sul, viesse ao mundo. Mas não foi como planejado. O bebê chegou bem antes. Na manhã de 3 de outubro, a mãe foi diagnosticada com uma síndrome rara. Os órgãos começavam a parar de funcionar. O único tratamento possível era interromper a gravidez. Para ela, eram poucas as chances de sobreviver e para o pequeno, nenhuma. Com 590 gramas, o menino nasceu duas horas depois. Era só o começo de angústias e vitórias que seriam contadas em centímetros, milímetros e gramas.

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O mundo de Camila, 28 anos, e Eduardo, 34, começou a se transformar às 10 horas daquela segunda-feira. Todos os planos para o primeiro filho estavam sendo levados junto com o resultado de um exame. Com Síndrome de Hellp, a mãe não poderia dar continuidade à gestação e os médicos foram claros sobre os riscos. “O Otávio não teria chance nenhuma. Pelo fato da prematuridade, de ele ser muito novinho”, lembra ela. Mas não havia escolha. “As minhas chances também eram pouquíssimas. Reservamos UTI para o Otávio e para mim. E daí começaram o pesadelo e o sonho ao mesmo tempo.” Devido à gravidade do caso, ao meio-dia, a gestante foi levada para a sala de cirurgia.

Do lado de fora, Eduardo tentava controlar o sofrimento. O medo de perder os dois. Assim que conseguiu falar com a equipe médica, fez a única pergunta possível. “Ele nasceu vivo?” Sim. Otávio tinha nascido vivo. “Ele era todo formado, perfeito. Mas era um feto. Não tinha formato de bebê”, recorda o pai. Camila, na UTI, queria perguntar sobre o filho, mas temia a resposta. Não queria ouvir o óbvio. Quando o marido contou que ele estava vivo, não acreditou. Pensou que ele só queria poupá-la. Eduardo, que corria de um lado para o outro nos corredores do hospital, entre o leito da mulher e de Otávio, precisou tirar uma foto com um celular. Era verdade. O menino vivia.

Dois dias depois, Camila percorreria os corredores até a UTI Neonatal, onde poderia ver o seu bebê pela primeira vez, numa mistura de sentimentos. “A gente quer ter filho, mas imagina uma coisa diferente. Aí a gente se depara com uma situação que tu não pode pegar, não pode tocar, nem beijar, nem abraçar.” Só 30 dias após o parto é que ela conseguiria finalmente segurá-lo nos braços. “Foi um colo assim muito bom e, ao mesmo tempo, muito tenso”, conta, no mesmo corredor onde teve medo de perdê-lo.

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Otávio permaneceria na UTI por 64 dias. Nesse período, ele respirou com auxílio de aparelhos. Sempre que o bebê era levado para algum novo procedimento, os pais temiam, mas tentavam se manter em pé. “A gente chorou muito nesse corredor”, conta o engenheiro agrícola, que ampara Otávio, no mesmo canto em que aguardou notícias dele por tantas vezes. Os primeiros 30 dias foram de luta diária. “Às vezes a gente saía de manhã e ele estava bem. Quando voltava, não estava”, recorda o pai. “Assim como ele melhorava rápido, piorava rápido. Aqui se vive um dia de cada vez”, completa Camila.

Aos poucos, Otávio passava a ganhar peso.  “Tudo era uma vitória, cada grama, cada ml de leite. Ele começou com um ml. Cada centímetro, tudo, tudo. Cada gesto que ele fazia. Cada movimento dele, tudo era motivo de força, né, Otávio?”, diz a mãe, enquanto amamenta o bebê. Com o tempo, os dois passariam também a confiar na equipe, que se tornaria o principal apoio ali dentro. “Elas foram sempre muito atenciosas, dedicadas. Elas acreditavam muito nele. Isso nos motivava muito”, conta. Do lado de fora, familiares e amigos reforçavam as esperanças. “Eles foram fundamentais.”

Embora tivessem que abandonar suas rotinas, os pais nem pensavam em ir embora. Só queriam que o filho estivesse bem. “Queríamos passar o maior tempo com ele, conversando. Ele nos dava força”, diz a mãe. Antes de partir, eles passaram pela Unidade de Cuidados Intermediários. Era necessário se preparar para a vida lá fora. “Foi uma surpresa quando ganhamos a alta da UTI. Meu Deus do céu, é uma outra etapa agora. Eu poderia cuidar dele. Poderia trocar, dar banho. E ir embora, então, foi algo sem explicação. Né, meu amor?”, diz a mãe ao filho. 99 dias após o nascimento, às 22h30 de 9 de janeiro, a mesma data em que deveria ter nascido, com 3 quilos e 15 gramas, Otávio deixaria o hospital. Mais um valente havia vencido.


Camila Fagundes Roos e Eduardo Severo Roos
Foto: Rodrigo Assmann

A síndrome

Camila foi diagnosticada, com 25 semanas de gestação, com Síndrome de Hellp, uma complicação obstétrica rara e grave, pouco conhecida, que pode causar tanto a morte da mãe como do bebê. Alguns dos primeiros sintomas da doença são aumento da pressão arterial e inchaço. Mas se o quadro se agravar, pode resultar em falência do coração, hemorragias e ruptura do fígado, levando à morte. O tratamento mais indicado para esses casos é interromper a gestação, independente da fase em que esteja. Em muitos casos, o bebê não sobrevive.

As guardiãs da vida

Enquanto corria de um lado para o outro pelo hospital, entre o leito de Camila e Otávio, Eduardo não sofria sozinho. “A gente ficava olhando ele e pensando em que situação deveria estar. Ele não tinha certeza sobre nenhum dos dois”, conta Leila. Joce lembra que o menino passou por várias intercorrências. A maioria dos bebês atendidos nos oito leitos da Neonatal tem entre 29 e 34 semanas. Otávio nasceu com 25 semanas. “Ele era um prematuro extremo”, salienta.

“Várias vezes, pensamos que não íamos entregar o bebê. Ou não passaríamos o plantão com ele vivo. Ele estar aqui hoje, para nós, é uma surpresa”, ressalta Leila. “São poucos na idade com que o Otávio nasceu, com o peso que ele nasceu, passando as coisas que ele passou. Ele é um milagre da vida. Já tivemos muitos outros iguais a ele que não conseguiram. É um pequeno valente”, completa a enfermeira, que há quatro anos, quando se formou, dizia que jamais trabalharia em uma UTI Neonatal. Acabou sendo seu primeiro emprego. “Depois que tu entras, tu te apaixonas”, confessa.

Além dos bebês, as funcionárias também precisam conviver com os anseios dos pais. “Passamos com eles todos esses momentos de alegrias, de tristezas, angústias. Cada dia é um dia. O que tu achas? Que ele vai ficar bem? Não tem como a gente dizer. Eu já afirmei várias vezes que sim e acabei perdendo. E em outras vezes, disse ‘não’ e acabei ganhando. Para nós, torna-se bastante difícil. É um dia após o outro. Vivemos o hoje.” 

Na Unidade de Cuidados Intermediários (UCI), onde Joce trabalha, o contato é ainda maior. “Eles estão um pouco mais relaxados. Conversam mais. Se abrem mais. O pior já passou.” E no meio disso tudo, elas precisam manter o controle emocional. “A gente já chorou bastante. Mas não temos o direito de sofrer tanto quanto os pais, por mais que sofram”, frisa Leila.

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