Em 1919, alguns meses após a gripe espanhola assolar o Brasil, a população voltava às ruas para lavar a alma no que chegou a ser chamado de “carnaval da Ressurreição”. Há um ano, foi no carnaval que os primeiros casos de Covid-19 começaram a se espalhar pelo País, mas parece que ainda estamos bem longe de uma nova festa da redenção.
O tempo de duração é o que talvez mais diferencie as duas pandemias. Apesar do século que as separa, as duas têm muito mais semelhanças do que os avanços sociais e científicos desse período poderiam admitir como razoáveis. É o que argumenta o neurocientista Stevens Rehen, da Universidade Federal do Rio de Janeiro e do Instituto D’Or, que publicou nesse sábado, 13, no portal do Estadão, artigo inédito em que faz um paralelo histórico e de saúde pública das duas doenças.
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O pesquisador destaca, em especial, o negacionismo sobre os perigos dos vírus, a oferta de curas milagrosas, as mortes que não puderam ser veladas, a perda de empatia pelo tamanho da tragédia. No texto ele resgata relatos, como os do escritor Nelson Rodrigues, que poderiam perfeitamente descrever os dias atuais.
“A gripe espanhola foi justamente a morte sem velório. Morria-se em massa. E foi de repente. Os primeiros ainda foram chorados, velados e floridos. Mas quando a cidade sentiu que era mesmo a peste, ninguém chorou mais, nem velou, nem floriu. (…)”, escreveu o dramaturgo, em 1967, em memórias resgatadas por Rehen e Igor Fonseca, da ArtBio, que o ajudou na coleta de materiais.
Em entrevista ao Estadão, ao comparar as pandemias, o neurocientista carioca diz que “o sentimento que resume o contraste entre o conhecimento disponível e sua aplicação em favor da saúde é de frustração” e a sensação é que “paramos no tempo porque perdemos a capacidade de dialogar, com nós mesmos, com o passado e com o futuro”. Confira abaixo.
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Quais as semelhanças que você vê entre a gripe espanhola e a atual pandemia?
As semelhanças vão além do agente de transmissão viral e sua rápida disseminação. Nesses dois momentos, governos e parte da sociedade desacreditaram a existência e o impacto das pandemias. Alguns países chegaram a omitir informações, censurando cientistas e imprensa. Também não faltaram teorias conspiratórias. Em 1918, dizia-se que a gripe tinha sido espalhada pelos alemães em garrafas jogadas ao mar. Em 2020, tem gente acreditando que o coronavírus foi criado pelos chineses. Há também um paralelo de futuro. Na década de 1920, os pacientes com transtornos mentais aumentaram sete vezes. Os sobreviventes relataram distúrbios do sono, depressão, confusão mental, houve elevação nas taxas de suicídio. Não é impossível que um cenário semelhante ocorra nos próximos anos.
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Você cita relato de Nelson Rodrigues de que a gripe era a morte sem velório – o que também acontece hoje. As pessoas deixaram de se comover num cenário de mais de 230 mil mortos?
O caráter trágico de Nelson Rodrigues é que o torna tão atual. Seguimos “normalizando” a perda dos direitos, a miséria do povo, a violência e a morte. E pílula do câncer, Brumadinho, Mariana, zika, microcefalia, cloroquina, negacionismo da vacina, da máscara, do clima, aumento de feminicídios, cemitérios lotados, luto permanente… O que é mais rodriguiano que isso?
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Você conta que remédios sem efeito e notícias de curas milagrosas proliferaram na gripe espanhola. Hoje o governo defende remédios ineficazes. Como compara essas duas situações?
Elas são distintas, mas com desfechos semelhantes. Há 100 anos debatia-se sobre qual seria o “germe causador” da gripe espanhola. Em 2020, a ciência sequenciou o coronavírus dez dias após a comissão de saúde de Wuhan ter reportado os primeiros casos de pneumonia. Nos países que abraçaram as evidências, os impactos da Covid foram bem menores. Naqueles onde elas foram negadas, a situação foi diferente. A população brasileira equivale a 2,7% da população mundial, e nós enterramos 10% dos mortos de todo o mundo.
Os conhecimentos científicos de hoje são imensos – mas o obscurantismo é parecido. Paramos no tempo?
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Como disse Hipócrates, existem duas coisas: ciência e opinião. A primeira gera conhecimento; a segunda, ignorância. O obscurantismo passa a ser regra quando quem nos governa nega a ciência. Paramos no tempo porque, apesar de falarmos mais do que nunca (nas redes sociais), perdemos a capacidade de dialogar, com nós mesmos, com o passado e com o futuro. E a sensação angustiante é a de que no Brasil a ciência não se liberta dos voos de galinha. Vivemos uma política de cancelamento dos saberes. Não existe planejamento de futuro no Brasil que não seja distópico. Vivemos uma realidade “paralela” sem ciência, sem tecnologia, sem cuidado ao próximo, sem empatia, sem vacinas em quantidade suficiente, mas com vazamento de dados de milhões de pessoas.
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