Símbolo da tradição gaúcha, a chama crioula é acesa todos os anos desde 1947. Neste ano, não foi diferente. Porém, a pilcha ganhou a máscara como complemento, em uma medida de proteção contra o coronavírus. A pandemia afetou o tradicionalismo, um segmento intimamente relacionado às interações sociais, por meio das rodas de mate, tertúlias, acampamentos, bailes, grupos de danças, festivais artísticos, rodeios e esportes campeiros. Por isso, o ano foi de adaptação à nova realidade.
Presidente do Conselho Fiscal do CTG Lanceiros de Santa Cruz, o tradicionalista Roni Ferreira Nunes salienta que é um momento de cultuar a tradição de forma virtual. “Não vamos deixar de ser tradicionalistas. Vamos tomar um mate em frente ao computador. A saúde da população vem em primeiro lugar. Tem pessoas da minha família no grupo de risco. Portanto, não estou tendo contato físico”, destaca. Em outra oportunidade, Nunes precisou acompanhar a performance do CTG Lanceiros de Santa Cruz no Enart de forma remota. “Todos os anos, desde o Fegart, eu assistia a apresentação pessoalmente. Teve um ano que não deu. Precisei ficar cuidando de uma pessoa da família no hospital e acompanhei por meio de um celular. É semelhante ao que está acontecendo neste ano”, complementa.
Para o empresário e integrante do grupo Cavaleiros da Integração, Alaor Canez, o sentimento é de frustração. A cavalgada do grupo para buscar a chama crioula, de forma oficial, chegaria a 26 anos. “Está sendo um ano bem ruim para quem anda a cavalo. Estamos envolvidos a todo momento com isso. Quando chegamos com a chama para a Semana Farroupilha, começamos a projetar como será no ano seguinte, já que o calendário está definido até 2045”, comenta. Na visão de Canez, poderia haver uma flexibilização para os festejos farroupilhas. “Acredito que faltou um pouco de bom-senso. Em outras regiões, houve uma certa liberação. Aqui foi adotada uma linha mais rígida”, considera.
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A professora e coordenadora do Departamento Cultural da Família Nativista Alma Gaúcha, Zoraia Pereira dos Santos enxerga a Semana Farroupilha deste ano como atípica, mas dentro do objetivo de cultivar a tradição, principalmente com ensinamentos às crianças. “Temos mateadas virtuais das entidades e fandangos na sala com as crianças. As escolas tem trabalhado fortemente nesse sentido. Minha filha participou de atividades direcionadas. Precisamos nos adaptar”, avalia. O Grupo de Prendas Caetana Gonçalves da Silva, do qual Zoraia é integrante, organizou uma live solidária na sexta-feira para auxiliar na campanha Ame Juju.
O Grupo Fandangaço se mantém em atividade por meio de lives na internet. Conforme o vocalista Beto Sampaio, o conjunto havia acertado a participação em um projeto, de uma cervejaria, que teria um trio elétrico durante a Semana Farroupilha, em Santa Maria, Alegrete e Uruguaiana. “A gente teria essa renda importante, mas o projeto foi impossibilitado. No dia 20, teria um show em Cachoeira do Sul no formato drive-in, mas também acabou cancelado. Estamos parados. Está muito ruim para a música”, explica. Outro grupo tradicional da região, o Novos Tropeiros acumula prejuízos. “Não foi somente na Semana Farroupilha. Tivemos a agenda do ano cancelada. Fomos seriamente prejudicados”, diz o vocalista Maurício Luiz da Silva.
Entidades afetadas pela pandemia
Em Santa Cruz do Sul, as 12 entidades integrantes da Associação Tradicionalista Santa-Cruzense (ATS) tiveram que concentrar as atividades em plataformas online durante a Semana Farroupilha. Conforme a presidente da ATS, Rosângela Jochims, as entidades foram desafiadas a elaborar propostas diferentes com o intuito de manter a chama da tradição acesa. “Por meio das páginas no Facebook, cada entidade divulgou suas potencialidades à comunidade, com apresentações, entrevistas, divulgação de conteúdo cultural. Cada um se organizou da melhor forma. Foi importante para que as pessoas de fora possam conhecer o trabalho realizado”, sublinha.
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Na quarta-feira à noite, a chama crioula municipal foi gerada no CTG Rincão da Alegria, com a presença restrita de autoridades e convidados. No domingo, 20, a página ATS Tradicionalista do Facebook (facebook.com/anatradicionalista.santacruzense.5) terá uma transmissão ao vivo das 14 às 18 horas, organizada pelas entidades da ATS e a Secretaria Municipal de Cultura, com premiações, homenagens e a presença do padre Jolimar Márcio Lemos da Silva para a bênção. “Tudo será feito dentro dos protocolos sanitários”, enfatiza Rosângela.
Conforme o patrão do CTG Rincão da Alegria, Maicon Vidal, a pandemia trouxe uma reflexão sobre como devemos valorizar o que estamos acostumados. Para ele, se o isolamento afastou as pessoas de forma física, promoveu uma aproximação por meio da internet. “As invernadas estão paradas desde 15 de março. Não sabemos como será o retorno. Cria-se uma rotina de ensaio e o vínculo sentimental pela dança. A questão econômica também foi afetada. O CTG ficou uma casa sem alma”, comenta. Vidal classifica o cancelamento do Enart como um banho de água fria. “Estamos sem o amor e carinho entre os colegas de dança e da patronagem. É um ano muito difícil. O Enart é um norte para os grupos e temos um ano de trabalho até a final em novembro. É uma situação emergencial, temos que preservar as vidas. Mas nos entristece bastante ficar sem o evento após 35 anos. Quando voltar, vamos valorizar ainda mais e será mais forte esse amor à tradição. Vai ser bem mais intenso para comemorar as vitórias ou se consolar nas derrotas”, argumentou.
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O CTG Lanceiros de Santa Cruz é um tradicional participante das Danças Tradicionais Força A no Enart. Na Semana Farroupilha, realiza uma extensa programação na sede da entidade. O patrão Luciano de Oliveira Pereira lamenta a impossibilidade de festejar a principal data do tradicionalismo no modo convencional. “Ficamos tristes com o CTG vazio. O galpão está sempre cheio, durante toda a semana. Os grupos ensaiando, com as famílias presentes. Neste ano, estamos sentindo falta. Tivemos um grande prejuízo pela dispersão. Não sabemos se conseguiremos manter o engajamento dos integrantes. A vida das pessoas vai mudar, não será como antes”, aponta. Pereira diz que o departamento cultural mantém atividades virtuais, embora os eventos planejados tenham sido cancelados. “Esperamos que a pandemia passe logo. Não acredito que teremos uma normalidade como antes. Mas temos que levantar a cabeça e seguir na luta. Vamos ter a nossa ronda crioula no sábado, mas de forma restrita”, completa.
Para o coordenador da 5ª Região Tradicionalista, Luiz Clóvis Vieira, o momento é de reinvenção. “As entidades tiveram que se adaptar às redes sociais. Muitas não tinham nem noção do que a internet poderia proporcionar. Como pode atingir um número maior de pessoas. A parte positiva da pandemia foi esse aprendizado, que proporcionou a aproximação das pessoas. Na região, foi uma Semana Farroupilha satisfatória dentro das condições impostas”, diz.
Vieira salienta que alguns municípios chegaram a ter geração da chama crioula. “Ninguém deixou passar em branco. De alguma forma, todos os municípios tiveram algum tipo de programação. A maior preocupação são as crianças. Há a dificuldade de mantê-las interessadas para dar continuidade, mas temos a esperança que iremos conseguir”, comenta. A patrona Alessandra Carvalho da Motta realizou uma palestra online nessa sexta-feira, promovida pelo Departamento Cultural da 5ª RT. Em outubro, haverá um encontro de patrões para definição dos próximos passos na realização das atividades.
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Patrona local
Fundadora do CTG Tio Itia, de Cerro Alegre Baixo, a professora Célia Carvalho Lacerda (foto), de 54 anos, foi escolhida como patrona da Semana Farroupilha de Santa Cruz do Sul. Ela é natural de Linha Pinhalzinho, interior de Sinimbu. Como educadora, Célia utiliza o tradicionalismo como ferramenta no processo de aprendizagem.
No CTG Tio Itia, ela difunde as pesquisas realizadas na comunidade escolar. “Considero imprescindível o resgate e a vivência das tradições gaúchas no meio estudantil. Também o incentivo aos departamentos culturais, artísticos e campeiros nas entidades tradicionalistas”, defende a patrona, atual coordenadora do grupo de cavalgadas Cavalaria Paladina Santa-Cruzense.
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Para Célia e a família, o tradicionalismo é um estilo de vida. Durante a pandemia, o resgate e preservação da tradição devem ser mantidos, segundo ela. “Temos que pelear com as armas que temos. Hoje é a internet, que agregamos à nossa luta pela tradição. Me sinto honrada de poder representar a minha entidade e o tradicionalismo de Santa Cruz como um todo”, afirma.
Semana Farroupilha Estadual
A patrona estadual é a ex- Primeira Prenda do Estado e funcionária pública Alessandra Carvalho da Motta, escolhida pela Comissão Estadual dos Festejos Farroupilhas, presidida por César Oliveira. O tema escolhido para os festejos deste ano foi “Gaúchos sem Fronteiras”, para homenagear os desgarrados que decidiram viver em outros estados e países. “O objetivo é valorizar os gaúchos que deixaram o Estado para conquistar novas querências, empreendendo, fundando cidades, abrindo novas fronteiras agrícolas e fundando CTGs fora do Estado e do Brasil”, explicou a presidente do MTG, Gilda Galeazzi. De acordo com a Confederação Brasileira da Tradição Gaúcha (CBTG), existem 2.375 entidades tradicionalistas fora do Rio Grande do Sul, vinculadas a sete MTGs estaduais. No exterior, são 16 CTGs.
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Alessandra é natural de Cachoeira do Sul, servidora pública federal no TRF da 4ª Região e atuou por mais de 20 anos como artista, bailarina, professora, avaliadora, coreógrafa, apresentadora, palestrante e pesquisadora. Formada pela PUC/RS em 1983, sendo especialista em Direito Penal pela Ufgrs, ela é conhecida no Movimento Tradicionalista Gaúcho por ter sido 1ª Prenda da Ronda Estudantil de Cachoeira do Sul, 1983, 1ª Prenda do Colégio Barão do Rio Branco, 1984, 1º Prenda do Sesquicentenário da Revolução Farroupilha de Cachoeira do Sul, 1985, 1ª Prenda do CTG José Bonifácio Gomes, 1ª Prenda da 5ª RT gestão 85/86, 1ª Prenda do RS gestão 86/87 e Conselheira do MTG em 1987 e 1988, na gestão de Zeno Dias Chaves. Também é suplente no Conselho Estadual de Cultura e membro da Comissão Gaúcha de Folclore.
Chama
O Acendimento da Chama Crioula, que marca a abertura dos Festejos Farroupilhas a cada ano, foi transferido para 2021, mantido no município de Canguçu, na 21ª Região Tradicionalista. Neste ano, houve o acendimento alternativo no dia 14 sob o cipreste localizado na frente da casa do capitão farroupilha Gomes Jardim, em Guaíba. A chama foi conduzida em um catamarã até Porto Alegre e o candeeiro foi conduzido por cavalarianos até o Palácio Piratini, onde o governador Eduardo Leite aguardava junto com o vice-governador Ranolfo Vieira Júnior e o presidente da Assembleia Legislativa, Ernani Polo.
Por iniciativa da Secretaria Estadual de Educação, as escolas propuseram atividades aos seus alunos que envolveram videoconferências e trabalhos sobre comidas típicas, danças, música e a cultura gaúcha como um todo. Como alternativa ao Acampamento Farroupilha de Porto Alegre, o Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) e a Fundação Cultural Gaúcha (FCG) montaram um estúdio com 700 metros quadrados no parque Maurício Sirotsky Sobrinho para a transmissão diária de shows e oficinas nos canais no Youtube do MTG e da FCG e na página do MTG no Facebook e compartilhado nas plataformas da Prefeitura Municipal de Porto Alegre.
Origem da Semana Farroupilha
Em 1947, João Carlos D’Ávila Paixão Côrtes, então com 20 anos, era um jovem estudante do Colégio Estadual Júlio de Castilhos, de Porto Alegre. Certo dia, quando foi a um bar tomar um cafezinho, avistou uma bandeira do Rio Grande do Sul servindo de cortina em uma janela, o que lhe causou muita indignação. Para ele, criado no meio rural em Santana do Livramento, era um reflexo causado pelo modismo norte-americano que os jovens dos países ocidentais buscavam copiar. Além disso, a ditadura imposta pelo presidente Getúlio Vargas havia proibido manifestações e práticas regionais. Assim, Paixão Côrtes e mais outros sete estudantes daquele colégio resolveram criar um Departamento de Tradições Gaúchas com a finalidade de pesquisar e resgatar as tradições gaúchas que estavam esquecidas, com o intuito de preservação, desenvolvimento e revitalização dos costumes.
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Entusiasmados com a ideia, procuraram o major Darcy Vignolli, da Liga de Defesa Nacional, responsável pela organização das festividades da Semana da Pátria. Ao militar expressaram o desejo de se associarem aos festejos, propondo a retirada de uma centelha do fogo simbólico para transformá-la em chama crioula, como símbolo da união indissolúvel do Rio Grande do Sul à Pátria Mãe, para que aquecesse o coração de todos os gaúchos e brasileiros até o dia 20 de setembro, data alusiva à eclosão da Guerra dos Farrapos.
Naquela ocasião, o major Vignolli convidou Paixão Côrtes para montar uma guarda de gaúchos pilchados em honra ao herói farrapo David Canabarro, que seria transladado de Santana do Livramento para Porto Alegre. Paixão Côrtes reuniu oito gaúchos bem pilchados, e no dia 5 de setembro, prestaram a homenagem ao general farroupilha. O piquete formado por Antônio João de Sá Siqueira, Fernando Machado Vieira, João Machado Vieira, Cilço Araújo Campos, Ciro Dias da Costa, Orlando Jorge Degrazzia, Cyro Dutra Ferreira e João Carlos Paixão Côrtes é conhecido como o Grupo dos Oito ou Piquete da Tradição.
Eles conduziram as bandeiras do Brasil, do Rio Grande do Sul e do Colégio Estadual Julio de Castilhos. No dia 7 de setembro, à meia-noite, antes da extinção do fogo simbólico da Pátria, Paixão Côrtes, Fernando Machado Vieira e Cyro Dutra Ferreira retiraram uma centelha da pira, que então originou a primeira chama crioula. Ela ardeu em um candeeiro crioulo até meia-noite do dia 20 de setembro, quando foi extinta no primeiro baile gaúcho, organizado no Teresópolis Tênis Clube pelo grupo. Já em 1948, foi criado o 35 CTG em Porto Alegre, em 24 de abril, a primeira entidade tradicionalista.
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