A colônia provincial de Santa Cruz foi criada para receber imigrantes alemães, com os primeiros chegando em 19 de dezembro de 1849. Mas esta não era uma região desabitada, registrando a existência de fazendas no então interior de Rio Pardo. E, em se tratando de uma época ainda marcada pela escravidão, como terá sido a presença de negros no território que passaria a constituir, no futuro, o município de Santa Cruz e as áreas dele emancipadas?
Vários estudos foram conduzidos em níveis de graduação e pós-graduação, os quais evidenciaram que negros (e muitos ainda escravos) contribuíram com sua força de trabalho para o desenvolvimento regional.
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Por lei, os colonos alemães que chegaram a Santa Cruz não poderiam ter escravos. No entanto, famílias de outras etnias, ou mesmo outros empreendimentos, anteriores a 1849 os tinham. Com a abolição, os negros passaram a se inserir nas mais diversas áreas da realidade social e cultural de Santa Cruz e
da região.
A efetiva ocupação regional, de forma mais programática e com viés de produção e inserção no mercado, ocorreu a partir da criação da colônia provincial alemã de Santa Cruz, em 1849. No entanto, antes disso, fazendas já existiam no então interior de Rio Pardo, cidade que era referência na área central do Rio Grande do Sul. Essas fazendas, em sua maioria voltadas à criação de gado, conduzidas por estancieiros, nelas fixados ou mesmo residindo na cidade, tinham escravos como mão de obra. Até esse momento, em grande parte, eram eles que respondiam pelas tarefas produtivas e de rotina.
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De certo modo, a imigração europeia posterior à Revolução Farroupilha, diante da ampliação no debate sobre a abolição da escravatura, tinha por propósito justamente inaugurar novo modelo de produção. Este seria apoiado não mais em mão de obra escrava nas fazendas, e sim na força de trabalho dos colonos, que agora ocupariam pequenas áreas de terra.
Em suas propriedades, eles teriam de optar pela diversificação de culturas, primeiro para assegurar o abastecimento de suas próprias necessidades de alimentos, e logo para obter renda com a venda de excedentes. Com isso, ajudariam a suprir as crescentes demandas de alimentos e matérias-primas também dos centros urbanos próximos, tanto na região metropolitana quanto no interior do Estado.
A presença de escravos em áreas próximas à Colônia de Santa Cruz, bem como de outras colônias alemãs criadas a partir de meados do século 19, não significa, portanto, que eles pertenciam a famílias de imigrantes. Isso nem sequer era possível, pois era vedado aos colonos, por lei, possuírem escravos. Mas eles seguiam presentes, até o momento da abolição, pois pertenciam a outros personagens na sociedade.
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Em 1954, uma reportagem publicada na Gazeta (então ainda Gazeta de Santa Cruz), no dia 1o de junho, trazia uma entrevista que o fundador do jornal, jornalista Francisco José Frantz, realizou no Bairro Bom Jesus com uma ex-escrava, Inácia Garcia de Souza, conhecida como Tia Inácia. Ao que tudo indica, ela estava completando 129 anos e teria chegado a impressionantes 131 anos, como posteriormente revelou matéria da hoje revista Cruzeiro. Tia Inácia narrava principalmente lembranças suas do tempo em que nascera escrava, em Rio Pardo, e dos castigos físicos que testemunhara serem infligidos a muitos outros cativos.
A presença de africanos e de seus descendentes e sua contribuição nos setores produtivos, bem como na rotina social e na cultura em todo o Vale do Rio Pardo, foram temas de diversos estudos acadêmicos ao longo dos anos. Não apenas foram realizadas pesquisas que resultaram em monografias, dissertações e teses, como livros foram escritos sobre essa temática, envolvendo professores universitários e seus alunos orientados.
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Um dos artigos, publicado em revista científica da Unisc, é “Escravos na povoação de Santa Cruz na segunda metade do século XIX”, de autoria de Guilherme Würdig Spindler. Foi elaborado em disciplina do Curso de História da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), e teve como orientadores os professores Roberto Radünz e Olgário Paulo Vogt, ambos igualmente pesquisadores da temática envolvendo a escravidão.
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Spindler ocupou-se de um processo-crime de 1876 no qual Lucas, escravo de Adão Schirmer, fora acusado de ser autor do homicídio da preta Maria, por sua vez escrava de Jacob Graeff. Maria, quitandeira, residia na Vila de Santa Cruz. O que chamou a atenção, nesse caso, é que os proprietários de ambos os cativos tinham sobrenome alemão. Spindler ainda consultara registros da Paróquia de Santa Cruz nos quais constam batismos e óbitos de escravos e libertos entre os anos de 1861, uma década após a fundação da colônia, e 1886, já na iminência da abolição da escravatura.
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Durante cerca de uma década, dois professores então vinculados ao Curso de História da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), Olgário Paulo Vogt e Roberto Radünz, conduziram linhas de pesquisa que, entre outras áreas, ocupavam-se de levantar possíveis indícios, no contexto da Colônia de Santa Cruz e na região de entorno, do período em que vigorava a escravidão. Radünz hoje leciona na Universidade de Caxias do Sul (UCS), onde segue com linhas de pesquisa, mas agora voltadas à realidade colonial da Serra Gaúcha. Vogt está aposentado, e estabelecido com chácara em Pinheiral.
Vogt recorda que, entre outros temas aos quais reservava atenção na primeira década do século 21 (entre eles a importância da fumicultura para Santa Cruz e região), passou a se interessar pelo enfoque do capital social, a força de trabalho. Naturalmente, na época da instalação da Colônia de Santa Cruz, quando imigrantes alemães se fixavam em pequenas áreas de terra, ainda vigorava a escravidão no Brasil.
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Já no momento da vinda das primeiras levas de colonos à região, uma lei imperial de 1848 proibia terminantemente colonos alemães de terem escravos. Pela simples razão de que eles, os imigrantes, vinham justamente em projeto do Império para substituir a mão de obra escrava, diante da crescente pressão internacional, em especial da Inglaterra, para a definitiva abolição desse sistema.
Assim, de fato os imigrantes que chegaram ao Brasil a partir de meados do século 19, quando colônias como Santa Cruz e Santo Ângelo (atual Agudo) foram criadas, não puderam ter escravos. Havia forte vigilância do governo provincial na obediência a essa lei, tanto que o diretor da colônia seguidamente devia reportar como estavam as condições.
Mas, antes disso, na época da criação das primeiras colônias, como a pioneira, de São Leopoldo, essa proibição não existia. Assim, se no início os colonos, na Alemanha, não conheciam esse modelo da escravidão, aqui não apenas era prática, como era legal. E muitos, à medida que se estabeleciam ou reuniam posses, efetivamente os adquiriam para auxiliar em suas tarefas, tanto no comércio quanto em outras atividades.
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Estes, mesmo após 1848, os mantinham, porque eram sua propriedade, como tudo o mais que haviam adquirido. Muitos desses alemães depois se transferiram para outras colônias, regiões ou cidades no Estado, inclusive Santa Cruz, e assim há registros de que famílias de sobrenome alemão, na colônia e na região, possuíam escravos.
A temática da presença de africanos e seus descendentes, e também do flagelo da escravidão, no período em que já estava constituída a Colônia de Santa Cruz, foi abordada em diversas edições da seção “Memória”, assinada pelo jornalista José Augusto Borowsky, nas edições de segundas-feiras da Gazeta do Sul. Em uma série de três colunas, nos dias 25 de março, 1o de abril e 8 de abril de 2019, ele compartilhou informações que recebera de um leitor, Luiz Carlos Ferreira. Este pesquisava sobre a história da família de sua mãe, os Gonçalves da Silva, descendentes de escravos.
A bisavó de Luiz, Celina Gonçalves Mesquita, era neta de escravos e foi casada com um oficial da escola militar de Rio Pardo. Com sua morte na Revolução Federalista, Celina e a filha Alzira Mesquita da Silva (conhecida por Fionga) vieram morar em Santa Cruz. Como frisou Borowsky, ambas eram muito conhecidas na cidade, pois no Natal visitavam casas para cantorias de Reis.
Alzira foi casada com o militar Fermino Rodrigues da Silva e teve os filhos Amaro, Ramona, Agenor, João Eurico, José e Gladis. A filha Ramona também cantava com ela. Gladis foi casada com Pedro Lino Ferreira, sendo os pais de Luiz Carlos.
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Borowsky ressaltou que Pedro foi um dos fundadores da banda do quartel de Santa Cruz, sendo o quilombola mais antigo, ainda vivo, do Quilombo dos Gonçalves, que ficava em Rio Pardo. Já outro irmão, João, era conhecido por Chumica e fora craque tanto no FC Santa Cruz quanto no Avenida. E Amaro por sua vez era exímio cavaleiro, deslocando-se sem arreios e sem sela no cavalo pelos diversos pontos da cidade.
O professor Olgário Vogt recorda que uma circunstância contribuiu, e muito, para um incremento nos estudos em torno da escravidão, na primeira década do século 21, em especial em pesquisas direcionadas a áreas do interior gaúcho.
Ocorre que por essa época o Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul passou a publicar catálogos com muitas informações, permitindo aos pesquisadores acesso mais facilitado a dados como processos-crime, bem como inventários, testamentos ou compra e venda de escravos.
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Por outro lado, passavam a ser disponibilizados na internet, digitalizados, documentos, artigos, monografias, dissertações e teses. Isso viabilizou aos estudiosos acesso a referenciais teóricos das mais importantes universidades do Brasil ou de outros países que tratassem desse ou de qualquer outro tema ou assunto.
E foi nesse contexto que tanto Vogt quanto Roberto Radünz, seu colega na área de História, passaram a orientar trabalhos acadêmicos que investigavam as marcas da escravidão em Santa Cruz do Sul e na região. Uma das pesquisas que acompanharam foi a do estudante Guilherme Würdig Spindler.
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Em paralelo, outros professores, historiadores e alunos passaram a se ocupar do tema da contribuição negra, da ocorrência da escravidão e de assuntos correlatos. Foi o caso de Mozart Linhares da Silva, Mateus Silva Skolaude e João Paulo Reis Costa, entre outros.
Se os imigrantes alemães que assumiam uma área de terras nas colônias (imperiais, provinciais ou mesmo particulares) a partir da metade do século 19 eram proibidos por lei de possuir escravos, no ambiente urbano, ou mesmo fora desses lotes coloniais, a escravidão seguia vigorando. E nas colônias anteriores, a partir de 1824, há registros de que imigrantes possuíam escravos. No caso específico da Colônia de Santa Cruz, também fora dos lotes coloniais, em estabelecimentos na cidade, há indícios da presença deles, eventualmente cedidos ou alugados por seus proprietários.
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Olgário Vogt menciona que, por exemplo, o diretor da Colônia Santa Cruz, Martinho Buff, tinha escravos, e assim vários outros imigrantes que não tivessem recebido lotes coloniais. Além disso, moradores de outras origens étnicas tinham escravos, caso do norte-americano Wilhelm Lewis, proprietário da primeira casa na área urbana de Santa Cruz, na atual esquina das ruas Marechal Floriano com Ramiro Barcelos (e que também fora contratado para construir a primeira igreja católica, com mão de obra escrava).
Também a esposa de Lewis, dona Carlota, hoje nome de bairro na zona sul da cidade, igualmente era proprietária de cativos. Vogt cita ainda nomes como os de João Alves e João Faria Rosa, referidos em documentos como donos de escravos.
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