A partir da chegada dos imigrantes alemães para colonizar várias áreas gaúchas, entre elas a de Santa Cruz do Sul e de outras localidades do Vale do Rio Pardo, novos elementos socioeconômicos e culturais foram introduzidos no Rio Grande do Sul. Entre eles, e logo um dos mais salientes, a língua com a qual se comunicavam esses estrangeiros migrados para o Sul do Brasil.
E foi sobre a língua e as adequações que ela sofreu ao longo do tempo que a professora e pesquisadora santa-cruzense Lissi Bender se debruçou, fazendo dessa uma de suas áreas de estudos. Aos 70 anos, Lissi reside na Alte Pikade, ou Picada Velha, a atual Linha Santa Cruz, ponto inicial da fixação dos imigrantes na Colônia de Santa Cruz. Colunista da Gazeta do Sul, é doutora em Ciências Sociais (área de concentração: Antropologia Cultural) pela Universidade Eberhard Karls, de Tübingen, na Alemanha; professora do ensino superior aposentada (lecionou na Unisc) e autora de diversos livros.
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Enquanto escritora, integra a Academia de Letras de Santa Cruz do Sul. Aqui, Lissi compartilha um artigo exclusivo sobre o patrimônio que constitui a língua alemã para a região.
“A cidade de Santa Cruz é um produto da frondosa e frutífera árvore cujas raízes foram alimentadas no solo da velha Germânia e que estendeu seus galhos para o lado de cá do oceano, ou seja, a imigração alemã.” Fonte: livro Centenário de Santa Cruz do Sul.
Em Santa Cruz (do Sul), a língua alemã e a cultura de origem germânica fazem parte do cenário regional desde a sua fundação, com a vinda dos primeiros imigrantes à Colônia Santa Cruz. No próximo ano a região completará 175 anos de presença da língua alemã. Ela faz parte de sua identidade, de seu patrimônio imaterial, para além de fazer parte da identidade de seus falantes.
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Isso pude constatar em pesquisas e em meus estudos de doutorado. O idioma alemão continua vivo, seja na linguagem oral, em cantos, orações, receitas culinárias, poemas. Pude comprovar também que existe uma expressiva quantidade de pessoas que cultiva o idioma, principalmente em família e entre amigos; a maioria das pessoas pesquisadas entende que o idioma faz parte da identidade regional, mas carece de maior visibilidade e de valorização; que a língua é pouco prestigiada pelas instâncias públicas, pelas instituições educacionais e culturais, e menos ainda pela imprensa e pela mídia em geral; que, com essa ausência de prestígio e falta de valorização efetiva visível, Santa Cruz condena esse seu patrimônio imaterial à extinção.
Haveremos de considerar que línguas são uma das maiores expressões de diversidade existente na humanidade. Línguas são suporte de culturas e merecem continuar presentes para o bem da coletividade em que estão inseridas, também para o bem da imensa diversidade cultural brasileira suportada por muitas línguas vivas que necessitam de um olhar valorativo atencioso por parte de todos.
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Promover a visibilidade, a valorização e a difusão dos diferentes idiomas presentes no Brasil, em nosso caso da língua alemã, vai também ao encontro da conjuntura política, social e cultural contemporânea. Em nível de Brasil, reconhece-se aos poucos o valor da presença, tanto de línguas nativas quanto das de imigrantes.
Elas são cada vez mais reconhecidas como línguas do Brasil, como línguas regionais. Estão sendo estudadas e registradas em livro sob o título de Línguas do Brasil por instituições públicas como o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), vinculado ao Ministério da Cultura.
No mundo contemporâneo, grande parte da população fala mais de um idioma. Assim também é no Brasil, apesar de predominar o mito de país com uma única língua, por reconhecer (até pouco tempo) apenas uma e, historicamente, ter tomado medidas para excluir as demais.
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A começar pelo Diretório dos Índios, que, em 1757, impunha sobrenome português aos índios e lhes proibia o uso e o estudo da língua brasileira – conhecida como Tupi ou Língua Geral – e previa punição de morte a quem desacatasse a ordem. Em 17 de agosto de 1758, a língua portuguesa foi decretada idioma oficial do Brasil, através de um decreto do Marquês de Pombal, a serviço do governo de Portugal. Em 1759, Pombal expulsou os jesuítas, que haviam catequizado os índios por meio da língua falada por eles. Além disso, haviam produzido literatura em língua indígena.
A política de eliminação da diversidade linguística culminou em 1937, quando Vargas, com seu projeto nacionalista, baniu a língua alemã das escolas e mandou confiscar livros em idioma alemão. No interior de Venâncio Aires, toda uma grande biblioteca com literatura alemã foi incinerada.
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Em Santa Cruz, um dos maiores jornais de circulação no Rio Grande, o Kolonie, foi proibido e teve suas máquinas quebradas. E até 1956 continuava proibida a aprendizagem de idiomas estrangeiros para menores de 12 anos no Brasil. Até hoje, o aprendizado de idiomas é relegado a um segundo plano no currículo escolar, com uma carga horária semanal que não ensina ninguém a dominar idioma algum.
Apesar de tudo isso, diversas línguas continuam presentes, o que faz do nosso um país culturalmente rico e diversificado, uma “VielfachIdentitätgesellschaft”, para usar uma expressão do embaixador austríaco Walter Lichem. Esta expressão, que remete à identidade social cultural diversificada, não se refere apenas a diferentes identidades, mas também a uma sociedade em que o indivíduo em si incorpora uma identidade múltipla, sem que isso o torne menos brasileiro. Pelo contrário, habilita-o a se inserir melhor por um Brasil mais próspero, cultural e economicamente.
E este é um dos desafios da sociedade moderna, afirma Lichem: aprender a compreender o “diferente” como um potencial, como fonte para o enriquecimento e não como ameaça, conforme o Nacionalismo de Vargas compreendia. Estados nacionalistas como o concebido pela ditadura de Vargas, que compreendia o país enquanto nação una em torno de uma cultura e uma língua, não cabem mais no mundo de hoje. Nós, seres humanos, nos desenvolvemos quando conhecemos e reconhecemos a alteridade, alerta Lichem.
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O cientista e pedagogo Dietmar Larcher (in: Das neue Curriculum für den Deutschunterricht an italienischsprachigen Schulen in der Provinz Bozen. ,, In Siegfried Baur, Augusto Carli & Dietmar Larcher (Hrsg.) Interkulturelles Handeln. Neue Perspektiven des Zweisprachlernens. Meran: Alpha & Beta, p. 25-33, 1995), defende a integração e a manutenção das línguas minoritárias.
Larcher reconhece que isso no cotidiano não é fácil de ser atingido, porque, afinal, o outro, que vem de outra cultura, fala outro idioma, normalmente é tido como não pertencente. Por isso, conflitos são possíveis, mas estes podem e devem ser solucionados pacificamente, principalmente por meio de promoção pública da consideração e de valorização das diferentes culturas e línguas existentes num lugar.
Um processo integrativo, conforme Larcher, requer que todos os cidadãos de uma coletividade sejam corresponsáveis por ele e contribuam positivamente para a integração no meio social. Para isso, as diferentes línguas existentes precisam ser reconhecidas, promovidas e vistas como promotoras do desenvolvimento coletivo.
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Larcher também reconhece a necessidade de uma ou mais línguas conhecidas por todos, para sua esfera pública. Mas considera importante que todas as demais línguas regionais (e mesmo as variações linguísticas do idioma oficial) sejam entendidas como pertencentes ao país e à região em que estão presentes e compreende que todas elas, junto com as culturas por elas suportadas, enriquecem o país como um todo e, particularmente, beneficiam a coletividade e a região em que estão inseridas.
Diversos países oferecem exemplos de pluralidade linguística bem-sucedida. O embaixador austríaco Walter Lichem descreve o modelo canadense, no qual o inglês e o francês são oficiais desde 1960. Também a Suíça possui quatro línguas oficiais e mais 25 dialetos considerados pertencentes ao país e cultivados nos meios midiáticos. A Bélgica igualmente poderia ser tomada como exemplo. Lá existem três línguas oficiais: neerlandês, francês e alemão. Além deles, há uma variedade de línguas e dialetos não oficiais e minoritários sendo falados na Bélgica.
Conforme Lichem, faz-se necessário uma política linguística que considera as diferentes contribuições advindas de outras línguas e culturas. Isso é relevante num país de imigração como o nosso, em que, para além das línguas indígenas (em torno de 170), todas são línguas imigrantes (entre 20 e 30).
No entanto, políticas linguísticas não se restringem a medidas tomadas oficialmente pelos governos, mas, principalmente, medidas e contribuições tomadas regionalmente, onde a língua, diversa da oficial, está presente. Essas medidas devem, em primeira linha, ser tomadas pelos governos estaduais e municipais.
Mas, para além dessas instâncias, Lichem considera como medidas políticas todas as intervenções e contribuições tomadas pelas instituições culturais, educacionais, igrejas, todas as mídias, universidades, no sentido de promoverem a vida comunitária e a língua minoritária localmente presente. E aqui as diferentes instâncias culturais e educacionais poderiam se incluir de forma muito exitosa. Pois um lugar, uma região, é realização, materialização promovida pelas pessoas que, por meio de suas ações, suas particularidades culturais, sua literatura, sua criatividade, sua história, realizam o lugar, a região.
Essa ideia é também defendida por Yi Fu Tuan, da chamada “Geografia Humanística”. Ele defende a ideia de que se deve pensar um lugar, uma região, como algo processual, porque a situação e a materialização de um lugar não são uma realidade dada, mas uma realidade construída.
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Conforme Tuan, pessoas não são somente introduzidas num lugar, mas estão continuamente envolvidas na construção de um lugar e responsáveis por ele. Para sua concretização e desenvolvimento, podem e devem contribuir todos os conhecimentos e saberes existentes.
E, nesse processo, língua, ou dialeto regional, exerce fator importante na construção do lugar, conferindo-lhe uma especificidade que participa da sua identidade. Para além disso, contribui igualmente para a construção de estruturas culturais e econômicas de fomento ao desenvolvimento econômico, social e cultural. Mas, para isso ser possível em nossa região, faz-se necessário um olhar valorativo para o idioma regional que participa de sua materialização desde o princípio.
Empenhos em favor do cultivo e da permanência da língua alemã serão construtivos. Valorizando-a, estaremos também possibilitando seu reconhecimento, e isso fortalece a tolerância interna dos seres, permite-lhes entender que a vida pode ser constituída e enriquecida de diversas formas; quando aceitamos e reconhecemos o valor de outras línguas presentes em nosso meio de vida, aprendemos a cultivar consideração para com o diferente. Além disso, significa valorização de elementos linguísticos e culturais que tornam nossa região, nosso lugar, especial, diverso de outros.
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Nesse sentido, uma postura de valorização é igualmente positiva para que Santa Cruz do Sul não se perca na “mesmice global“, para usar uma expressão do geógrafo Milton Santos, para que o global não suplante as especificidades locais. Ser a favor da valorização do idioma regional alemão não significa necessariamente saber falar o idioma, mas verter um olhar atencioso e favorável a sua presença. Quando crianças e jovens recebem ecos positivos acerca da língua da família, desenvolvem o sentido de seu pertencimento a sua própria história de vida e a sua comunidade. Mais: o cultivo da língua regional alemã abre novas perspectivas para o desenvolvimento pessoal e coletivo.
Com o livro Spurensuche – Rastros, lançado em 2014 pela Editora Gazeta, a professora e pesquisadora Lissi Bender trouxe uma contribuição fundamental ao resgate e à fixação de elementos culturais associados à colonização alemã em Santa Cruz e na região.
Na obra, ela registrava suas descobertas realizadas durante anos de dedicação aos estudos sobre a imigração alemã, em especial quanto à preservação e valorização da língua pela qual se comunicavam os imigrantes.
Naturalmente, ao longo dos anos de vivência na nova terra, os imigrantes e seus descendentes a foram adequando à nova realidade, incorporando termos e soluções linguísticas, que resultaram em diversos dialetos. Uma vez que Lissi deu continuidade a suas pesquisas, uma nova, ampliada e atualizada edição deve chegar em breve ao público.
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