Monumental. Nenhuma palavra é mais a propósito para definir o projeto que tem sido desenvolvido pelo historiador, jornalista e professor Luiz Carlos Golin, ou Tau Golin, como é amplamente conhecido em todo o meio acadêmico e das investigações de cunho histórico. Trabalho de fôlego, que já resultou em quatro volumes publicados, totalizando 2.260 páginas, a sua série “A Fronteira” é, seguramente, o mais exaustivo esforço para reunir documentos e informações sobre a ocupação do território do Sul da América. Isso compreende, principalmente, o atual Rio Grande do Sul, mas também o Uruguai (ou, por algum tempo, a Província Cisplatina, nos impérios português e, depois, brasileiro) e a Argentina (ou as províncias do Prata).
A sua série já alcançou até a reta final do século 18, com a ocupação do Brasil meridional, e contemplou a importância da erva-mate nesse contexto. Mais dois volumes estão programados. E em suas investigações, como não poderia deixar de acontecer, ocupa-se da presença de imigrantes (entre eles os alemães) no Sul do Brasil.
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Já por suas origens familiares ou de ascendência o historiador, professor e jornalista Tau Golin, 68 anos, aproxima-se de muitos dos temas com os quais se envolveu em sua trajetória de pesquisador. Seu bisavô por parte de mãe é de Tacuarembó, no Uruguai, casado com uma belga, e dessa relação nasceu sua avó, que casou com um brasileiro de sobrenome “dos Santos”.Outro bisavô era imigrante, oriundo de Gambellara, na Itália.
Sua mãe é de São Gabriel, seu pai é de Viadutos; casaram-se em Carazinho, onde ele foi concebido. O pai foi trabalhar num frigorífico em Capinzal, no Vale do Rio do Peixe, em Santa Catarina, onde Tau nasceu. O pai faleceu quando ele ainda era menino, e por isso foi criado pela avó materna, em São Gabriel, motivo pelo qual se considera fronteiriço. Aos 17 anos foi para Santa Maria, a fim de seguir nos estudos, e essa tornou-se a cidade de sua formação. Ali residiu por muitos anos, até, mais tarde, fixar-se em Porto Alegre e, por fim, em Passo Fundo.
Tau graduou-se em História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), fez mestrado e doutorado em História na PUCRS, e obteve títulos de pós-doutorado na Universidade de Lisboa, em Portugal, e de la República, em Montevidéu, no Uruguai. Desde 1996, leciona nos cursos de graduação em História e Comunicação da Universidade de Passo Fundo, e na pós-graduação desde 2001. Atualmente, desenvolve pesquisas sobre a formação da América meridional e tem publicações sobre conflitos geopolíticos, entre eles a Guerra Guaranítica.
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Uma das características que se salientam nos volumes elaborados por Tau que compõem a série “A Fronteira” é o número de documentos, de mapas, gravuras e fotos que ele compartilha. Só por esse acervo iconográfico, seus registros constituem um dos mais valiosos esforços para vivificar o contexto da ocupação do território do Sul do Brasil e dos países vizinhos.
Como seria de compreender, para os leitores do Vale do Rio Pardo, a proeminência de Rio Pardo no esforço de portugueses para avançar para o interior do Rio Grande coloca-se em evidência. E, justamente por se tratar de um posto avançado em relação a Rio Grande, a Lagoa dos Patos, Porto Alegre e o Guaíba, o Rio Jacuí, como caminho marítimo que favoreceu ou viabilizou esse acesso, é outro elemento que se apresenta em destaque.
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Foi pelo Jacuí que, igualmente, os imigrantes alemães chegaram à região central gaúcha, ao longo do século 19, fixando-se nas colônias criadas no interior de Rio Pardo (a de Santa Cruz) e no interior de Cachoeira do Sul (a Colônia Santo Ângelo, atual Agudo). Lidos no conjunto, os quatro volumes já publicados por Golin oferecem um panorama raro, minucioso, da terra que os imigrantes europeus vieram ocupar.
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Entre projetos audaciosos, uma cavalgada pelo Pampa, em 1980
Entre as principais áreas de estudo às quais Tau Golin se dedica estão: Tradicionalismo, Gauchismo, Revolução Farroupilha, Guerra Guaranítica, Regionalismo, Fronteiras, Geopolítica do Prata, Mídia e Cultura e História Comparada da Navegação. Em outras circunstâncias, exercitando a sua verve de jornalista, engaja-se em projetos e ações culturais. Numa delas, em 1980, ao lado de Pedro Osório Luiz Sérgio Metz, o Jacaré, escritor. autor do romance Assim na terra, realizou uma cavalgada de observação do Pampa. Percorreram a distância entre Santa Maria, onde então estudavam, e Jaguarão, aventura que resultou no livro Terra adentro, publicado em 2006. Tau igualmente gosta de participar de viagens de barco ou de participar de navegações, assunto do qual se ocupa em suas pesquisas.
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Entrevista com Tau Golin
Magazine – Com a imigração, o Estado passa a ter duas realidades: a do sul e da campanha, e a do centro-norte, com a colonização. Como o senhor vê esse processo?
A imigração colocou cunhas naquela formação de um estado dominado pelos oligarcas, pelos senhores proprietários de terras ou pelos seus filhos com curso superior. Mas não por ser característica racial. A questão é que toda a região que se baseia no latifúndio é pobre humanamente, ela é despovoada. As suas necessidades são mais de reprodução rural e não de formação da urbe, da cidade, da complexidade, da modernidade. A modificação que os imigrantes vão provocar no Rio Grande do Sul não é pelo fato de uma virtude de origem racial; é o fato de que vieram para um povoamento de pequena e de média propriedade, de colônia. Isso permitiu uma produção da riqueza muito maior, a constituição de colônias e cidades, com lotes de terras divididas entre as pessoas.
Quais foram as decorrências desse novo modelo?
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Isso vai trazer muito mais progresso, mais produção, mais circulação de dinheiro, e inovação tecnológica. Tanto que a indústria do Rio Grande do Sul vai surgir a partir das funilarias dos imigrantes, e ainda como herança dos mestres de ofício, que terão seus discípulos, que vão ensinar como lidar com o ferro, o aço, os metais, a construir utensílios e meios de locomoção, como carroças, carretas; implementos, embarcações, balsas… Isso vai trazer um desenvolvimento que o mugido do boi, da pecuária no Pampa, não traz. Essa diferença não se dá pela questão do fenótipo das pessoas, mas sim pelo tipo de povoamento que elas exerceram no Rio Grande do Sul. A parte sulina era baseada na agropecuária, e a parte Centro-Norte, baseada fundamentalmente na média e na pequena propriedade colonial. Essa foi a grande revolução. E também uma produção muito voltada para o mercado interno.
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Com isso vieram melhorias também em outros setores, na infraestrutura, por exemplo?
Para que toda a produção pudesse circular, foi necessário investir fortemente em meios. E, quando você tem uma população concentrada fortemente, uma produção do trabalho não mais escravizado, e voltado para o mercado interno, e a necessidade de estabelecer meios de transporte, especialmente o barco e a ferrovia, você tem os alicerces fundamentais do mercado capitalista. Então, o norte não se desenvolveu e chegou ao estágio a que chegou por uma questão de povoamento racial, mas sim pelo sistema de propriedade, que essas pessoas (que povoaram terras indígenas, fundamentalmente) adotaram. Elas vieram para a pequena propriedade, em colônias de 25 a 30 hectares. O módulo rural passou a ser também característica de mercado: o sujeito tinha uma colônia, meia colônia, um quarto de colônia, duas colônias. Isso passou a ser referência de moeda também.
Nesse novo modelo, surgem também novos produtos…
Obviamente, quando há também uma concentração de pessoas de diversas regiões, elas constituem-se do ponto de vista cultural. Há adaptações, circulam conhecimentos… Eles aprenderam a medicina no sertão com os caboclos, com os índios; o que plantar inicialmente, como plantar, o período do ano. Começaram a aprender a tomar mate com os índios, a beneficiar a erva-mate, colocar isso no mercado.
Uma série de produtos que eram tipicamente indígenas são já transformados para o mercado, e não para subsistência, como se fazia nas aldeias. Se bem que as Missões também faziam: ocupavam grande parte do mercado da América meridional. Se pegarmos as abóboras, os feijões, a mandioca, a batata, o fumo, a erva-mate, todos são produtos indígenas que possibilitaram que essa população pudesse se desenvolver e sobreviver. E conhecer também essa territorialidade, porque os indígenas já estavam nesse território há 12 mil anos; isso é um tempo fabuloso.
Que contribuições dos alemães o senhor apontaria?
Um historiador gaúcho, Décio Freitas, escreveu um livro genial, chamado O homem que inventou a ditadura no Brasil, em que ele demonstra que Porto Alegre era praticamente alemã. E era alemã por vários processos; um deles é o domínio no comércio, o abastecimento que descia das colônias. Os alemães é que darão sempre o impulso de modernidade nos centros urbanos, principalmente em Porto Alegre. Todas as inovações, a tecnologia, a medicina, vinham desse pessoal. Porque era uma época em que se integrar era possível. Os alemães fizeram, durante o Império, nos centros urbanos, algo que foi impactante. Muitos deles, quase a grande maioria, eram descendentes de servos europeus, e os servos eram quem dominava o trabalho. E dominavam todos os tipos. Quem produzia no sistema medieval eram os servos: faziam as carretas, os carroções, as encilhas dos animais, as ferragens. Eram alfaiates, sapateiros, marinheiros, marceneiros navais. Isso foi importantíssimo para alavancar o Rio Grande do Sul.
Como o senhor enxerga o contexto de o Rio Grande do Sul ter contado com tantas etnias em sua formação?
Acho que isso está inconcluso ainda; não está bem resolvido, também entre as etnias europeias, que possuem muitos estranhamentos. A questão mais séria dos imigrantes é que eles têm uma hierarquia de classificação das pessoas por raça, algo típico de sistemas integralistas, para os quais as coisas têm de ser integrais e hierarquicamente estabelecidas. É uma ideologia que surge no século 19, e esse pessoal trouxe essa ideologia, e nunca a enfrentou muito teoricamente. E seus comportamentos acabam refletindo isso.
Isso implicou em problemas específicos?
Um grande problema que temos, no Rio Grande do Sul e no Brasil, com as regiões das colônias, é que alguns imigrantes, na Primeira Grande Guerra e na Segunda Grande Guerra, adotaram as bandeiras de seus estados europeus e assumiram isso na América como se fosse um prolongamento dessa origem, uma espécie de maldição de origem.
Possivelmente, muitos dos seus parentes, lá na Europa, não eram fascistas ou nazistas. Mas aqui, a partir do colonato brasileiro, que olhava para o exterior e enxergava o estado, e não as pessoas nem as diferenças dentro desses países europeus, desde longe; e por estarem vinculados a uma diplomacia estatal que exercia papéis reguladores e de vigilância e de comunicação nessa oficialidade da imigração, tudo isso levou, principalmente no mundo colonial do Rio Grande do Sul, a que alguns desses imigrantes e seus descendentes se vissem com uma identidade que foi dada pelo estado nazista e fascista. Acabaram reproduzindo, e por vezes continuam reproduzindo, em muitos estratos, essas ideologias totalmente condenáveis pelas democracias.
Para resumir: ainda temos uma missão cultural, junto com muitas pessoas que são brilhantes, descendentes da imigração, em realmente retirar o estranhamento das regiões de imigrantes em relação à brasilidade; que não enxerguem os brasileiros, os mestiços, os índios, os negros como seres do estranhamento e passem a ser verdadeiramente seres do mesmo espaço nacional, com os mesmos direitos e deveres, a mesma importância.
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