Com a proximidade do bicentenário da chegada dos primeiros imigrantes alemães ao Rio Grande do Sul, a ser comemorado em 2024, as sucessivas levas e os diversos projetos de colonização desenvolvidos ao longo do século 19 são colocados em evidência.
Mas vários outros momentos, inclusive no século 20, quando a Alemanha já existia como nação, registraram novas imigrações. Estas ocorreram em época marcada pela crise inflacionária alemã, e que trazia os primeiros sinais do crescimento do nacionalismo, que levaria à ascensão do nazismo.
É de um imigrante desse período, da década de 1920, que descende a santa-cruzense Silvana Krause, cientista social que atua como professora da Ufrgs. Em sua dissertação de mestrado em Ciência Política, concluído em 1991 na própria Ufrgs, e que resultou no livro Migrantes do tempo, ela investigou até que ponto as colônias estavam alheias ou pouco se importavam com a política nacional, como se postulava. Pesquisando em jornais de língua alemã, em Santa Cruz, ela descobriu que, na verdade, a cidade se interessava muito e se envolvia com o tema.
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O alemão Edmund Krause deixou sua terra natal, a região de Sachsen-Anhalt, ou Saxônia-Anhalt, no centro-leste do país, no começo da década de 1920 e migrou para o Brasil. Por fim, fixou-se em Santa Cruz, onde desde meados do século anterior havia uma florescente colônia formada por germânicos. Estes, no entanto, haviam tomado a decisão de se fixar na América do Sul numa época em que a Alemanha, enquanto nação, nem sequer existia, constituindo-se basicamente de uma série de condados e ducados (e Sachsen era mais um deles).
Quando Edmund partiu rumo ao Brasil, ao lado da esposa, a Alemanha de fato já existia, unificados que foram todos os estados (num total de 16) por Otto von Bismarck, em 1871. Nas duas primeiras décadas do século 20, contudo, a economia dava sinais de forte esgotamento, com desemprego e elevação do preço dos alimentos, decorrente da crise inflacionária. Com esse pano de fundo, emergia o nacionalismo, que adiante resultaria na ascensão de Hitler e do nazismo.
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Foi nesse contexto que Krause emigrou, e buscou novos ares no Brasil. Na nova terra, um de seus filhos, Lothar Kurt, viria a se tornar um dos mais proeminentes empresários do ramo de máquinas e implementos agrícolas. Casou-se com Ingeborg (ambos são falecidos), e o casal teve as filhas Débora, Martina e Silvana. As duas primeiras residem em Santa Cruz, enquanto a caçula, Silvana, depois de cumprir os estudos no Colégio Mauá e concluir o equivalente ao Ensino Médio já em Porto Alegre, sentiu-se vocacionada para a área de Ciências Sociais, à qual se dedicou como professora (desde 2011, na Ufrgs).
Pois Silvana diz não ter dúvidas de que se sentiu inclinada para essa área de estudos por influência direta do avô Edmund. Ela diz lembrar que, durante a infância e a adolescência, na companhia do avô, este estava sempre conferindo atentamente a situação política tanto de sua Alemanha natal quanto da realidade brasileira e gaúcha. Ele ouvia muito os noticiários em rádio e assinava revistas alemãs, como Spiegel e Stern, e ainda jornais, para se atualizar sobre o contexto social na Alemanha e em outras regiões do mundo.
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Com tal incentivo, Silvana ingressou no curso de Ciências Sociais na PUCRS, que concluiu em 1986. Logo seguiu com o mestrado em Ciência Política, pela Ufrgs, concluindo-o em 1991. Por essa época, no final da década de 1980, passou a lecionar em três universidades, uma delas a Unisc, à qual ficou vinculada até 1993.
Em sua dissertação, manuseou documentações do Arquivo Histórico do Colégio Mauá e conversou muito com o professor Hardy Elmiro Martin e com o atendente do arquivo, Roberto Steinhaus, para entender qual era o interesse dos colonos alemães (e de seus descendentes) pela política em realidade de Brasil, e inclusive na realidade estadual e local.
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A professora Silvana Krause observa que, no século 20, predominava a percepção de que os imigrantes, nas zonas coloniais alemãs, buscavam ficar longe da política ou pouco se envolver com ela e com o debate público, em especial na Primeira República, período que se estende de 1889 até 1930, com a ascensão de Getúlio Vargas. Era justamente a época na qual, por exemplo, seu avô Edmund chegara ao Sul do Brasil. Além disso, era corrente a ideia de que eles se mantinham mais alinhados aos que estivessem no poder.
No entanto, Silvana constatou, em suas pesquisas em jornais e documentos, que não só os alemães e seus descendentes efetivamente se importavam com a política, e com as discussões na ordem do dia, como havia um forte debate inclusive com a circulação de ideias da oposição. É um contexto histórico que, por exemplo, registrou o atentado a uma dos principais líderes santa-cruzenses da época, Carlos Trein Filho, e que por mais de 30 anos, desde o começo da década de 1870, era autoridade local.
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Este, em 1903, foi atacado a golpes de faca próximo de sua casa, situada na vizinhança do Clube União e da praça da Prefeitura. Houve alegações de que a agressão pudesse ter motivação política, ainda que Trein, naquele momento, fosse também incumbido, pelo governo do Estado, de cobrar dívidas junto aos colonos.
A pesquisa realizada por Silvana em Santa Cruz, e que constituiu a sua dissertação de mestrado, resultou no livro Migrantes do tempo, publicado pela Edunisc em 2002, um entre vários títulos que ela assinou. Em outra de suas frentes de investigação, escreve sobre partidos e coligações eleitorais no Brasil, e nessa área inclusive lançará novo volume, em colaboração com outros cientistas sociais, ao longo de 2024.
Quando lecionava junto à Unisc, Silvana em simultâneo era também professora na Ulbra e da PUCRS, em especial em disciplinas como Sociologia e Ciência Política. Em 1994, passou em concurso na Universidade Federal de Goiás e se mudou para Goiânia; de lá, em 1996, foi ao exterior, para fazer o doutorado em Ciência Política na Katholische Universität Eichstätt-Ingolstadt, na Baviera, na Alemanha. Mais uma vez, a fluência no alemão, treinada em suas conversas com o avô Edmund, na infância, e os conhecimentos em cultura alemã foram determinantes. Hoje, é cidadã alemã e visita o país de seus antepassados com muita frequência.
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De volta ao Brasil, em 2000, seguiu atuando em Goiânia. E então, em 2011, transferiu-se para a Ufrgs, na qual segue lecionando, na pós-graduação. Em paralelo, é pesquisadora da prestigiosa Fundação Konrad Adenauer. Ocupa-se principalmente dos seguintes temas: partidos e novos partidos, coligações eleitorais, financiamento partidário, comportamento eleitoral e estratégias de campanha. E, claro, de tempos em tempos visita seus familiares (em especial as duas irmãs) em Santa Cruz.
Gazeta do Sul – Quais foram as principais temáticas com as quais a senhora se envolveu sobre colonização ou imigração alemã?
Pesquisar a colonização e imigração alemã é, sem dúvida, um campo de muitas frentes, com diversas dimensões a serem ainda desbravadas. Desde as investigações das diferentes ondas de imigração e suas distintas fases, que impactam as expectativas e formas de adaptação do imigrante em seu novo ambiente, até os desafios nos contextos históricos do Brasil que as regiões de imigração alemã enfrentaram.
Quando ingressei no programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Ufrgs, muitas perguntas me instigavam. Duas especialmente: de que forma a religião influenciou o comportamento político e econômico nos municípios de imigração alemã e como as elites econômicas e políticas articularam suas demandas na política gaúcha.
A motivação de pesquisar o período da Primeira República em Santa Cruz do Sul também foi muito baseada em avaliar a perspectiva de uma “crença comum” de que “os alemães trabalhavam e eram ativos economicamente” e não se “metiam” na vida política do País e do Rio Grande do Sul.
A Primeira República foi um momento singular no Brasil, pois durante o Império a religião oficial do Estado era a católica. Com a instalação da República o Estado se torna oficialmente laico, abrindo “janelas de oportunidade” para um campo de manifestações plurais nos municípios de imigração. Minha dissertação sobre Santa Cruz trouxe resultados que indicaram uma outra perspectiva sobre a “apatia” dos municípios de imigração alemã no Rio Grande do Sul. Foi possível observar uma vida política ativa, com disputas, conflitos e posicionamentos de oposição e descontentamento em relação ao governo estadual. Ou seja, a “política” local não era reduzida a uma perspectiva meramente governista e apática.
A pesquisa que resultou em Migrantes do tempo foi também uma forma de a senhora se ocupar mais diretamente com o passado de sua própria terra natal?
Sim, sem dúvida, pesquisar a cidade de Santa Cruz do Sul foi também uma forma de desvendar a minha raiz. Uma análise sobre o município traz luzes e ferramentas para um maior distanciamento sobre a cultura a que se pertence. Promove maior facilidade de conviver com o que não é a sua própria formação originária. Também traz a possibilidade de entender o “outro desconhecido” e, da mesma forma, oferece ao “outro desconhecido” o conhecimento da cultura em que fui socializada. Ou seja, em tempos de polarização, estranhamentos, segmentação de culturas distintas, é uma ferramenta que contribui para facilitar o convívio entre os “diferentes”.
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Como a senhora avalia que foi o choque de culturas entre os imigrantes e os que já residiam no Rio Grande do Sul? Foi mais de estranhamento ou de integração?
Quanto ao “choque de culturas”, ele pode ser saudável se visto como uma importante fonte de riqueza da vida. Cito um exemplo: a “crença” de que o trabalho é uma identidade nas zonas coloniais alemãs traz uma perspectiva de que o “trabalho liberta”. No entanto, numa cultura brasileira de tradição de trabalho escravo, o “trabalho”, obviamente, não é o local da autonomia, da libertação, da construção e do autoconhecimento. Essas diferentes trajetórias, sem dúvida, impactam atitudes e comportamentos e trazem desafios para o convívio e a construção de uma vida pública comum. O Brasil tem uma longa experiência nisso, trágica, mas também muito enriquecedora. Em tempos de despertencimentos, desintegração e nacionalismos exacerbados, a experiência brasileira pode trazer interessantes ensinamentos.
Que marcas a senhora entende como as mais visíveis no que tange ao legado da colonização alemã no Estado e no Brasil?
Difícil indicar “marcas mais visíveis” no que diz respeito ao legado da colonização alemã no Estado e no Brasil. O estereótipo na opinião pública brasileira é de que o cidadão das regiões de imigração alemã é “sério”, “confiável”, “transparente”, “não corrupto”, apto para construção de compromissos. No contexto contemporâneo, creio que são construções que refletem reforços de identidades na busca da diferenciação e de autoestima. Estereótipos que são seguidamente usados como ferramentas de manipulação em disputas políticas polarizadas, reforçam distanciamentos e movimentos excludentes e extremistas.
Mas, claro, é preciso destacar a impressionante capacidade de iniciativas comunitárias nas regiões. Ou seja, formas de resolver a vida pública que não perpassem pela tradição de iniciativas do Estado. Pergunto-me em que medida essa dimensão pública não estatal estaria, lamentavelmente, fragilizada.
A senhora tem projeto ainda em vista em relação a esse tema? Quais são seus temas centrais de investigação na atualidade?
Meus temas de pesquisa ficaram centrados no sistema político brasileiro: partidos, financiamento político, sistema eleitoral, estratégias de campanhas eleitorais etc. No entanto, creio ter uma “missão”. Pesquisei sobre uma região de colonização alemã, trazendo elementos para que estes sejam mais conhecidos no Brasil e, de outra forma, nas últimas décadas, a ponte que faço é inversa. Trazer conhecimento sobre o Brasil na academia alemã, estreitando laços e incentivando o diálogo entre esses dois países.
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