Cultura e Lazer

200 anos da imigração alemã: o legado luterano que marcou a educação

Uma plateia formada por mais de 150 professores do Colégio Mauá observa a chegada da pastora Silvia Genz ao palco. Ela carrega uma mala utilizada pelos imigrantes alemães durante a viagem ao Brasil, atraindo a curiosidade dos educadores. A bagagem estampava os nomes das primeiras famílias que chegaram em São Leopoldo, em 1824. Iniciava, assim, uma palestra sobre os princípios luteranos na educação.

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A visita foi marcante para a atual presidente da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). Santa-cruzense, natural de Linha Nova, estudou na instituição durante a década de 1970, da quinta à oitava série.

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A partir de 1980, começou a atuar na atividade paroquial. Três décadas depois, ingressou na gestão da IECLB. Até que, em 2019, foi eleita para assumir o posto de presidente da igreja. Em sua passagem mais recente por Santa Cruz, Silvia analisou passado, presente e futuro da igreja, assim como a participação dos luteranos na imigração alemã.

A educação sob os olhos da iECLB

No dia em que palestrou aos educadores do Colégio Mauá, a presidente da IECLB, pastora Silvia Genz, acompanhada do diretor da escola, Nestor Raschen, recebeu a imprensa de Santa Cruz para uma conversa. Raschen salientou o fato de a igreja ser presidida por uma mulher, o que demonstra a importância da representatividade.

“É uma ex-aluna da nossa escola, e que desenvolve esse papel muito importante. A nossa igreja, já há bastante tempo, abriu a possibilidade de formar pastoras, algo que outras não tinham e foram se adaptando ao longo do tempo.”

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Na visão da pastora, a imprensa desempenha um papel fundamental na sociedade, ressaltando ainda a importância de os cidadãos se manterem bem informados. “O jornal sempre foi um objeto sagrado para a minha família. Precisamos valorizar a imprensa e sua função de nos levar as notícias. E, sejam elas boas ou não, é importante que a gente saiba avaliar as informações que chegam até nós”, afirmou Silvia.

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Ao falar sobre Santa Cruz, frisou a força da educação no município, citando o Colégio Mauá como exemplo, pela formação de lideranças que atuam em diversos setores da sociedade não somente na região, mas pelo Brasil.

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“Ele tem uma organização diferente de outras cidades, com uma forte influência na área da educação. Hoje há pessoas de destaque, em todo o país, que começaram a estudar em alguma escola de Santa Cruz”, afirmou.

Embora tenha abordado o legado do luteranismo nas escolas – que se faz presente nas 51 instituições da Rede Sinodal –, Silvia acredita que é necessário refletir sobre como o ensino religioso pode ser desenvolvido em sala de aula. Para a pastora, o tema é complexo, uma vez que há uma grande diversidade de práticas religiosas no Brasil.

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“Não podemos afirmar que somente a doutrina luterana é a correta. Poderíamos demonstrar os valores para a educação, como a paz – que é um tema bíblico – e a justiça – abordada no Novo Testamento – para a vida em comunhão, mas sem falar de nenhuma igreja”, avaliou.

Para além da análise pedagógica, a presidente da IECLB avaliou a participação e a presença dos jovens nas igrejas. Conforme Silvia, é necessário abrir as portas para as novas gerações e convidá-las a se envolver nas decisões.

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“Acho que falhamos nesse sentido, mas estamos tentando correr atrás. Vou continuar a insistir que os jovens participem. Eu disse a eles em um vídeo que nem sempre todos vão ouvir, mas reforcei que eles devem continuar insistindo e contribuindo com ideias”, admitiu.

E, mesmo que a IECLB esteja envolvida e celebre o bicentenário da imigração alemã ao Brasil, defendeu a ideia de que a igreja não está limitada somente aos alemães. Presente em diferentes cantos do Brasil, as paróquias contam com a presença de fiéis com diferentes origens, de japoneses a quilombolas. Com isso, a instituição quer aceitar e acolher a todos. “Vamos continuar dando apoio à educação e à valorização de cada indivíduo, para que ele tenha espaço para aprofundar a sua fé”, afirmou.

Entrevista – Silvia Genz – Presidente da IECLB

Como o luteranismo esteve envolvido no processo da imigração alemã no Brasil?

  • Gazeta – O ano de 2024 é marcado pelo bicentenário da presença luterana e da imigração alemã no Brasil. De que maneira o luteranismo esteve envolvido nesse processo? O luteranismo fez parte da vida de fé de um grande grupo de europeus que veio ao Brasil e queria continuar a exercê-la no Brasil. Em suas malinhas, os imigrantes trouxeram suas Bíblias na intenção de viverem sua fé no novo lar. Considero um elemento determinante para o enfrentamento das diferentes dificuldades que eles encontraram aqui nessa nova terra. E, com isso, tiveram toda a força para enfrentá-las e superá-las. Foi uma forma de suprir, por exemplo, a questão material, porque os imigrantes chegaram aqui com poucos bens e precisavam conquistá-los.
  • Durante a visita ao Colégio Mauá, a senhora afirmou que a educação foi um dos grandes legados dos luteranos nas colônias. Por que ela foi tão marcante? Os imigrantes trouxeram da Alemanha uma ideia importante sobre o ensino. Havia, entre eles, uma visão em torno da importância da educação e do seu papel na formação de cidadãos e para o desenvolvimento social, cultural e econômico. Quando os primeiros imigrantes chegaram ao Brasil, não havia escolas para a população em geral. Na época, a educação era limitada às autoridades ou a pessoas com propriedades. E foi nesse contexto que os protestantes iniciaram a construção de instituições de ensino. Isso é algo que Lutero incentivou quando realizou a reforma: aprender a ler e a escrever, por meio da leitura da Bíblia e de hinos, para poderem participar. Essa foi a grande diferença. Os católicos, que estavam aqui antes, não tinham construído escolas para o povo. Por isso, depois que os protestantes abriram as escolas, os católicos puderam participar. Vale lembrar que, há 200 anos, não havia igrejas luteranas, somente se tinha escolas. Os protestantes ficaram isolados, e depois isso chamou a atenção. E, a partir de 1889, puderam fazer as suas igrejas com torre e aparecer publicamente. Em muitas colônias, o que surgiu primeiro foi escola, e depois a igreja. E elas serviram como igrejas escondidas, porque não poderia haver uma pública.
  • Além da educação, quais foram os principais legados da igreja no processo de imigração no Brasil? Há muitos, mas vou destacar um: o cuidado com a saúde. As mulheres se preocupavam em criar um espaço para a saúde. Por isso vendiam alguns produtos – ovos e manteiga, por exemplo – e usavam o dinheiro para construir uma casa voltada ao cuidado das famílias. Eram espaços simples, mas foi a partir disso que surgiram os hospitais. Isso aconteceu em Porto Alegre, Santa Cruz do Sul – com o Hospital Ana Nery – e em outras localidades. Essa era a ideia: cuidar da saúde, atenção às gestantes – tinham parteiras – e o incentivo à boa alimentação. Na época, não havia remédios. Então, usavam-se plantas e chás. E com isso surgiram espaços voltados à alimentação, como o Centro de Apoio e Promoção da Agroecologia (Capa) de Santa Cruz.
  • De que maneira a IECLB se faz presente nas comemorações do bicentenário da imigração alemã no Brasil? Pelo apoio e pela presença nos inúmeros eventos que acontecem durante o ano. Não só dentro da igreja, mas também na sociedade. E hoje, cabe ressaltar, nem todas as pessoas da IECLB são de origem alemã. Também temos famílias que vieram há 200 anos da Holanda e da Suíça, por exemplo, que antigamente faziam parte da Alemanha. E, mais tarde, pessoas de outras etnias se agregaram, como os japoneses, por exemplo. Hoje temos pessoas de vários países fazendo parte, por sermos uma igreja aberta e acolhedora. Neste Brasil somos tão diversos, e isso nos enriquece.
  • Quais os grandes temas contemporâneos para a IECLB? E como eles se encaixam nas comemorações do bicentenário? Continuar o apoio à educação e à formação. E, dentro da igreja, valorizar a participação de cada pessoa, para que ela tenha espaço de capacitar e aprofundar a sua fé. Especialmente, de ser uma igreja aberta, bem conduzida, democrática, transparente, e que possa abrir as portas para todos. Ela não é uma igreja alemã, ela é uma igreja no Brasil que quer aceitar e acolher as pessoas.
  • E quais os grandes desafios da IECLB na atualidade? Mesmo falando que somos uma igreja aberta e acolhedora, queremos ainda mais adesão. Parece que temos um grande desafio: como fazer com que as pessoas se sintam acolhidas e participem? Acredito que esse é o nosso grande desafio. Somos uma igreja com comunidades em Rondônia, na Amazônia, em Mato Grosso, em vários lugares. Queremos estar próximo das pessoas que deixam um lugar – seja uma cidade ou um estado – e vão para outro.

Uma programação voltada à celebração dos 200 anos

“A IECLB, de norte a sul, comemora os 200 anos da presença do luteranismo no Brasil”, afirmou a pastora Silvia Genz, ao falar sobre a programação com as atividades de 2024, voltadas para a celebração do bicentenário.

Ao longo de todo o ano, paróquias de diferentes estados festejam a data. Em maio, no Rio de Janeiro, a IECLB estará reunida com representantes da Igreja da Baviera, na Alemanha, em Nova Friburgo. “Fizemos vários convites para pessoas da Europa que vão vir até o Brasil celebrar conosco”, enfatizou a presidente. No mesmo mês, o Dia da Igreja será comemorado em diversas cidades, incluindo Santa Cruz.

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Já no dia 25 de julho ocorrem as festividades dos 200 anos da presença dos luteranos em São Leopoldo, berço da colonização alemã. A IECLB na cidade também irá sediar, no dia 22 de dezembro, outro evento de comemoração, na Casa do Imigrante.

Conforme a pastora Genz, outro grande momento será em outubro, quando a IECLB reúne as lideranças para o concílio. Durante cinco dias, serão debatidos a missão e o futuro da igreja. “Será um grande encontro onde se decidem as próximas metas missionárias e os trabalhos da igreja para 2025”, explicou.

Livro narra a história da igreja luterana no Brasil

Para marcar a data, a Editora Sinodal lançará o livro Presença luterana no Brasil: história e testemunho, dos autores Martin Dreher, Osmar Witt e Wilhelm Wachholz. Em 368 páginas, o trio explora, com detalhes, as origens e a história da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. “Este livro terá um conteúdo fantástico”, garantiu a presidente da IECLB, Silvia Genz. A publicação deverá ser lançada em breve.

Ele também narra o papel dos ministros e ministras que ajudaram a igreja a chegar ao bicentenário. Dedica ainda espaço para a Irmandade Evangélica Luterana, a Ordem Auxiliadora de Senhoras Evangélicas (Oase), o canto coral e a juventude evangélica.

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“O livro vai trazer uma mensagem importante, a história da IECLB desde o começo, antes de ser a igreja que conhecemos, e ainda fala de como ela é hoje. Somos muito gratos a esses autores, pois vai ser um material especial, um grande presente para cada pessoa que faz parte da IECLB mas também para a história do Brasil, pois somos a presença luterana neste país”, destacou.

Ainda de acordo com a pastora, mais publicações em alusão ao bicentenário deverão ser lançadas. “Há muitos livros surgindo nas comunidades, falando da sua história. Em breve devemos ter um na comunidade de Alto Linha Santa Cruz, sobre um cemitério que será restaurado”, enfatizou.

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Julian Kober

É jornalista de geral e atua na profissão há dez anos. Possui bacharel em jornalismo (Unisinos) e trabalhou em grupos de comunicação de diversas cidades do Rio Grande do Sul.

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