Cultura e Lazer

200 anos da imigração alemã: como os germânicos chegaram e por quê

Nascido e estabelecido em Osório, no litoral norte gaúcho, área que teve participação relevante da colonização alemã e italiana em sua povoação, o historiador Rodrigo Trespach, 46 anos, é responsável por importante contribuição que permite compreender melhor as condições que envolveram a imigração europeia para o Brasil. No livro 1824, originalmente publicado em 2019, pela editora Leya, e reeditado ao final de 2023 pela Citadel, aborda o amplo panorama histórico e cultural que cercou essa migração para
o Sul da América.

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Trespach descende dos primeiros colonos que chegaram à atual São Leopoldo. Sua família paterna veio ao Rio Grande do Sul na quinta leva, em março de 1825. Rodrigo é casado e pai de dois filhos. Tem formação em História e mais de duas décadas de experiência como pesquisador. É membro do IHGRGS e autor de 17 livros, entre eles também Às margens do Ipiranga (2022). Trespach concedeu entrevista exclusiva à Gazeta do Sul.

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uma época de fortes mudanças na europa e também no brasil

O contexto histórico, econômico, social, político e cultural no qual os primeiros imigrantes alemães chegaram ao Rio Grande do Sul (ou ao Sul do Brasil) ocupa a atenção do historiador e pesquisador Rodrigo Trespach. Um de seus livros, cujo título é justamente 1824 (o ano da fixação dos primeiros colonos em São Leopoldo, há dois séculos), disponível nas livrarias em edição da Citadel, é leitura referencial sobre essa temática.

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Ele próprio descende de imigrantes alemães (cujo sobrenome originalmente era grafado como Dressbach, e oriundos de Hessen) que se fixaram na Colônia de São Leopoldo, à margem do Rio dos Sinos, em 1825, já no ano seguinte à fixação das primeiras famílias germânicas naquela área. Dez anos depois eles se transferiram para a região de Torres, que na época pertencia a Osório, como ele recorda, e que também acolheu levas de imigrantes alemães.

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Em 1826, toda aquela área pertencia a Santo Antônio da Patrulha, um dos primeiros quatro municípios gaúchos, criados em 1809 (junto com Rio Grande, Porto Alegre e Rio Pardo). Osório, que então se chamava Conceição do Arroio, se desmembrou de Santo Antônio da Patrulha, e Torres por sua vez se desmembrou de Osório.

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Três Forquilhas, outro ambiente de colonização alemã, ficava ao lado de Osório e passou a pertencer a Torres, enquanto Itati, do outro lado do Rio Três Forquilhas, permaneceu com Osório, e hoje é município autônomo.

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A família de Trespach fixou-se em região na qual predominavam protestantes (evangélicos luteranos), em Irati e Três Forquilhas, depois se transferiu a Maquiné e, por fim, para Osório, que foi onde ele nasceu. A sua cidade natal, comenta, praticamente não possui mais ligações fortes ou efetivas com a colonização germânica ou com entidades e organizações alemãs, havendo basicamente famílias de descendentes nessa comunidade. “Já não se tem um núcleo colonial com alemães, por exemplo”, salienta.

Hoje, frisa, há no município núcleos coloniais com italianos, que chegaram a partir do final do século 19, e com poloneses. “Mas não com alemães. Os que estão aqui, ou vieram de forma independente, ou são descendentes dos estabelecidos em outras localidades.” É a partir desse ambiente familiar que ele passou a dimensionar o grande mosaico que constitui a imigração europeia no Brasil.

Fatos e personagens que compuseram essa odisseia

A proposta lançada por Rodrigo Trespach em 1824 é a de elucidar como e por que os alemães vieram para o Brasil, criando aqui as primeiras colônias. Estas, a partir de seu desenvolvimento e da imigração para novas áreas, vales e regiões, mudaram para sempre a socioeconomia do Sul do Brasil (e talvez de todo o País).

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Em sua obra específica centrada nos primórdios da colonização, ele enfatiza, por exemplo, a relevância no processo dos evangélicos luteranos, que promoveram o próprio surgimento da igreja protestante no Brasil, em um cenário de total domínio católico. Também não escapa ao leitor o fato de o imperador brasileiro, D. Pedro I, ser casado com dona Leopoldina da Áustria, descendente dos Habsburgos, circunstância que, em parte, pesou para que houvesse o empenho e o convite a germânicos, a fim de que se transferissem ao Brasil.

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Parcela deles, no princípio, vieram para compor a Guarda Imperial, enquanto outros já chegaram efetivamente como colonos. Destes, alguns permaneceram no Sudeste, em diferentes localidades, incluindo o Rio de Janeiro, sede do reino; outros logo foram encaminhados para iniciar as primeiras colônias imperiais oficiais no Rio Grande do Sul.

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Em seu relato, Trespach igualmente resgata variadas situações nas quais colonos alemães e seus descendentes estiveram implicados. Um deles, referido no subtítulo da obra, envolveu um mirabolante plano para assassinar D. Pedro I. Uma infinidade de outros personagens essenciais na odisseia da colonização é referida por Trespach, em uma leitura elucidativa sobre diferentes épocas.

Entrevista – Rodrigo Trespach | Pesquisador e escritor

“Os brasileiros precisam conhecer mais as suas raízes”

  • Gazeta do Sul – Em relação à colonização alemã no Brasil, foram diferentes momentos e diferentes correntes migratórias, bem como diferentes modelos de projetos, não é? Como o senhor avalia esse cenário? Sim, o que celebramos em 2024 são os 200 anos do primeiro projeto de imigração do Brasil como país independente, do governo imperial, dentro do contexto do Primeiro Reinado. Mas tivemos experiências anteriores, por iniciativas privadas e do governo português, com colônias na Bahia e no Rio de Janeiro. Mais tarde tivemos projetos distintos, coordenados pelas províncias. Cada período imigratório tem características próprias. É preciso entender que os fatores políticos e econômicos nem sempre foram os mesmos. Quem chegou em 1824 veio dentro de um contexto diferente, por exemplo, daqueles que vieram na década final do império ou no período entre as duas guerras mundiais.
  • Além disso, houve projetos muito bem-sucedidos e outros nem tanto. O que, no entendimento do senhor, mais pesou a favor daqueles que tiveram sucesso? Como eu disse antes, cada projeto e empreendimento teve suas particularidades. As primeiras experiências na Bahia, com alemães, e mesmo em Nova Friburgo, com os suíços, não obtiveram o resultado esperado, mas foram fundamentais para o sucesso das colônias posteriores. As colônias do Primeiro Reinado sofreram com a má organização do governo e muitos problemas foram corrigidos depois. De modo geral, durante o Segundo Reinado os projetos coloniais foram mais bem-sucedidos.
  • No caso da colônia pioneira, de São Leopoldo, a proximidade com Porto Alegre e a região metropolitana foi algo fundamental, não é? Sim, São Leopoldo cumpriu bem o papel que era esperado de uma colônia para aquela época. José Bonifácio havia delineado um projeto de colônias “rural-militares”, que desenvolvessem a indústria e a agricultura, além de guarnecerem áreas de fronteira. Nenhum empreendimento anterior havia obtido o sucesso que São Leopoldo alcançou. Por isso, é considerada o “berço da imigração alemã” no Brasil.
  • No contexto da imigração, como o senhor analisa o caso de Santa Cruz do Sul, enquanto colônia provincial, e já após a Revolução Farroupilha? Santa Cruz do Sul foi criada dentro de um outro contexto. Tanto brasileiro quanto alemão. Na década de 1840, a direção dos projetos coloniais no Brasil cabia às províncias e não mais ao governo imperial. A extensão das propriedades era menor e também houve mudança quanto aos subsídios. Por outro lado, no contexto econômico, a Alemanha passava por um rápido avanço tecnológico na indústria. Além disso, o país havia iniciado um processo político que acabaria criando o Império Alemão, em 1871.
  • A contribuição germânica na própria capital, Porto Alegre, parece um caso à parte. O que mais foi decisivo para tamanha afluência e inserção econômica, social e cultural nessa cidade? Quando os primeiros alemães chegaram ao Rio Grande do Sul, Porto Alegre tinha menos de 10 mil habitantes. Até o fim do Primeiro Reinado, mais de 5 mil imigrantes passaram pela cidade com destino a São Leopoldo. Outros tantos se instalaram em Porto Alegre nas décadas seguintes. É inegável o impacto econômico e social que eles causaram. Como capital, Porto Alegre era o ponto de encontro de viajantes, empresários e empreendedores nas mais diversas áreas. Os alemães e seus descendentes fundaram casas comerciais e indústrias, criaram jornais e sociedades culturais, religiosas e esportivas. Contribuíram significativamente para o desenvolvimento da cidade e deixaram sua marca.
  • O que o senhor entende como mais relevante a diferenciar a colonização no Rio Grande do Sul daquela de outros estados brasileiros? Teria sido o fato da necessidade e urgência em povoar uma província muito despovoada? Sim, a ideia da criação de São Leopoldo era geopolítica; povoar e garantir posse de uma vasta região que havia sido motivo de disputas históricas entre as coroas portuguesa e espanhola. Em 1824, o Rio Grande do Sul era quase despovoado, contava com menos de 100 mil habitantes.
  • O senhor é natural de Osório. Como foi a fixação e a permanência do elemento germânico nessa colônia, do litoral, o que a particulariza em relação a outras colônias e quais marcas seguem mais nítidas nessa área? Os alemães chegaram em Torres, no Litoral Norte, em novembro de 1826. Foi a segunda colônia do RS. Também foi projetada pelo visconde de São Leopoldo. A característica marcante da colônia foi a divisão por credo. A primeira leva, com mais de 420 pessoas, foi dividida entre católicos e protestantes. Estes, luteranos em sua maioria, foram instalados nas margens do Rio Três Forquilhas, em 1827 (atuais municípios de Três Forquilhas e Itati). Os católicos foram instalados entre as lagoas do Morro do Forno e do Jacaré (atuais municípios de Dom Pedro de Alcântara e Morrinhos do Sul), em 1828. O alemão não é mais falado na região, mas os sobrenomes das famílias e a arquitetura de algumas casas são marcas da presença germânica.
  • Seria possível imaginar afluência de germânicos como a que houve para o Brasil se não tivesse existido a figura de Dona Leopoldina? Ela parece ter sido uma personagem essencial nesse processo, não é mesmo? Na verdade, o papel de dona Leopoldina foi menor do que o senso comum imagina. Ela teve grande influência na independência do País, mas tinha muitos receios quanto ao projeto de imigração idealizado por José Bonifácio. Principalmente porque envolvia soldados. É preciso lembrar que dona Leopoldina era filha do imperador austríaco e o Brasil ainda não havia obtido o reconhecimento internacional de independência. Seu esposo, Dom Pedro I, não era bem-visto na Áustria, por ser admirador de Napoleão e por romper com o pai, o rei de Portugal. Em cartas ao pai, dona Leopoldina revela não concordar com o projeto brasileiro. É inegável, porém, que ela deu apoio ao esposo. O major Schaeffer, responsável brasileiro pelo agenciamento dos imigrantes na Europa, era seu amigo e secretário particular. Além disso, ela recebeu muitos navios de imigrantes no Rio de Janeiro e ajudava Dom Pedro como intérprete. Para os colonos, era algo marcante. Ouvir a língua materna tão longe de casa e na boca da imperatriz.
  • Como o senhor analisa as celebrações envolvendo o Bicentenário da imigração? Há algo que, no seu entender, ainda merecia ser mais ou melhor contemplado? Efemérides são sempre importantes. Elas costumam despertar curiosidade e interesse pela história. E é fundamental para um país que seu povo conheça a própria história. Os brasileiros precisam conhecer mais suas raízes e compreender os processos históricos pelos quais passamos. No caso da imigração, é importante que as novas gerações saibam as dificuldades enfrentadas por seus ancestrais. As viagens eram difíceis. Era doloroso deixar parentes, sabendo que nunca mais os veriam. Para sobreviver, era preciso desbravar a mata, plantar e caçar. Quase não havia remédios, tampouco médicos. Não existia televisão, rádio ou internet. A informação era escassa e a comunicação precária. Podemos aprender muito com o passado. Valorizar os acertos e corrigir os erros é o melhor caminho para encontrar soluções para o futuro. Quanto às celebrações, há muitos desencontros. Cada cidade ou região tem celebrado de forma independente, de acordo com a própria história. Não é errado, mas poderia haver uma coordenação melhor.

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Romar Behling

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