Ao longo de todo o século 19, num tempo muito anterior à implementação das comunicações de massa, a decisão de alemães (e de outras etnias) de emigrar para o distante sul do Brasil era quase como romper, para sempre, o contato com as pessoas de suas relações na região em que até então viveram. A ampla maioria dos que se fixaram em colônias no Rio Grande do Sul vieram para nunca mais retornar, e tinham plena consciência disso.
Por essa razão, as raras cartas que enviavam de volta para seus familiares, quando já estavam fixados na “nova terra”, constituíram o único elo que ligou, a distância, os que foram e os que ficaram. E isso que não havia qualquer garantia de que as palavras escritas efetivamente chegassem ao destino, ou quando e como isso ocorreria. Do mesmo modo, era incógnito, portanto, que houvesse resposta.
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A odisseia (e as histórias) das cartas enviadas ou recebidas por imigrantes ocupou, entre outros, a atenção de um pesquisador, Roger Stoltz, em livro lançado pela Edições EST, de Porto Alegre.
Ao longo do século 19, mal teriam se afastado alguns quilômetros, e mesmo poucos dias, de sua terra natal e certamente os imigrantes europeus foram tomados pela saudade. Ou, como se diz em alemão, pela Heimweh! Que, em uma tradução aproximada para o português, seria “saudade de casa, saudade do lar, ou saudade das pessoas e das coisas queridas”.
E, à medida que se firmava a consciência ou a realidade do passo que estava sendo dado na vida (uma viagem para nunca mais voltar ou para nunca mais ver a sua terra), vinha a ânsia de estabelecer contato. Muitos ainda viajavam acompanhados de familiares, mas outros tantos aventuravam-se nessa jornada sozinhos.
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E, em um tempo muito, mas muito anterior aos meios contemporâneos de comunicação, só havia uma coisa a fazer: escrever uma carta, enviá-la pelas vias disponíveis e, claro, torcer para que aquelas palavras em algum momento chegassem ao destino.
Quanto mais o imigrante se afastava de sua terra natal, sem dúvida mais a saudade apertava. E mais ele sentia necessidade (ou angústia) de se conectar com os seus. Os alemães, em especial, que, tão logo estivessem minimamente alfabetizados, tinham forte relação com a leitura e a escrita, comunicavam-se com regularidade através de correspondências.
E haveria muito a contar: o longo e penoso percurso até o porto, ainda na Europa; a viagem em navios e as agruras do caminho, às quais muitos não resistiram, perecendo ainda durante a travessia; a expectativa e a imaginação de como seria a terra à qual se dirigiam; a chegada à América; as atribulações do deslocamento até o destino final e a surpresa com o inóspito das regiões nas quais lhes ofereciam uma área de terra.
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E, a cada nova surpresa que a longa viagem apresentava, maior devia ser a saudade dos que haviam ficado para trás. E, certamente, para sempre. Estes, por sua vez, também estariam ansiosos por notícias daqueles que haviam partido. Por essa razão, desde os primeiros momentos da colonização europeia no Sul do Brasil, milhares e milhares de cartas cruzavam o Atlântico em diversas direções. Muitas certamente jamais chegaram ao destino.
Mas das que chegaram, muitas igualmente foram guardadas e conservadas com zelo, porque representavam, concretamente, em forma de letra, de texto, a lembrança viva das pessoas queridas que já não se viam e não mais se veriam em vida.
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No entanto, junto com as primeiras descrições do “novo mundo” que o imigrante agora habitava, entre depoimentos eufóricos e entusiasmados, ou outros nem tanto, carregados de frustração, vinha também uma palavra de incentivo, ou de convencimento, para que os familiares ou conhecidos emigrassem. Não foram poucas as cartas enviadas a partir do Sul do Brasil que buscavam convencer a quem havia ficado de que a decisão tomada, de ir embora, havia sido acertada.
Diante da passagem do tempo, cartas escritas ou enviadas no contexto da colonização europeia no Sul do Brasil são cada vez mais raras de serem localizadas. As que ficaram no acervo de famílias ou entidades muitas vezes pereceram, ou até mesmo foram descartadas. Assim, o conjunto que está aos cuidados do Centro de Documentação (Cedoc) da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), e estabelecido no prédio do Memorial, oferece uma das poucas oportunidades para apreciar tais documentos.
Por lá, quem atua como guardião desse material é o estudante Guilherme Eduardo Gründling, 21 anos, do curso de História. Bolsista, trabalha ao lado do professor José Antonio Moraes do Nascimento, coordenador do setor, no atendimento ao público acadêmico ou à comunidade. Entre os materiais conservados no Cedoc estão dezenas de cartas em língua alemã, em sua maioria originais, trocadas ao longo das décadas da colonização de Santa Cruz do Sul.
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São correspondências escritas na região e enviadas aos mais diversos destinatários, ou ainda recebidas da Europa, destinadas a residentes na área colonial. É um acervo que preserva, para as atuais e as futuras gerações, os relatos de próprio punho, carregados de emoção, dos personagens que ajudaram a construir a região.
A Gazeta do Sul procurou compartilhar o conteúdo de uma carta escrita no contexto da colonização regional. Do acervo do Cedoc, selecionamos o original abaixo, e solicitamos auxílio da professora Lissi Bender na tentativa de traduzi-la. Em razão do tipo de letra e da caligrafia adotada, Lissi mencionou dificuldades para captar o conteúdo. Então buscou apoio em Sabine Heinle, na Alemanha, sua amiga, coordenadora aposentada do Centro Brasil-Alemanha do Estado de Baden-Württenberg.
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Esta transcreveu a carta para o alemão padrão, ainda que também com algumas dificuldades por conta das dobras do papel ou de termos já quase apagados. A partir da tradução de Sabine, obteve-se versão que apresentamos à direita. Agradecemos a Lissi e a Sabine pela gentil contribuição. Lissi fez a tradução do alemão normal para o português.
Meu querido Paul!
Desta vez, querido Paul, deves certamente ter pensado: no final eu não receberei nenhuma resposta para as minhas cartas, pois já espero há tanto tempo por elas, e ainda estou sem uma resposta, …. faltou/falhou, querido Paul, somente o triste evento, que nos causou muita dor…
Conforme pude ler em tua amável carta, que muito me alegrou, também te correspondes com teus queridos parentes em Ijuí e, assim, deve ser de teu conhecimento que a esposa de Heinrich Metzens faleceu após uma doença curta, mas muito grave, depois de ter ainda dado vida a um pequeno, adorável menino, Eitel Friedrich Heinrich. Este (a morte) foi com certeza um fato muito triste, e todos os parentes e amigos de Heinrich partilham com ele, sinceramente condoídos, a sua dor pela perda, e, possivelmente, Heinrich não teria sobrevivido à sua grave doença.
Mas Deus, o bom e fiel assistente nas adversidades, enviou ajuda a tempo, e ele finalmente voltou a convalescer, também por receber cuidados atenciosos e permanentes de seus parentes. Como ele mora duas horas distante de seus pais, eles o convidaram a vir morar, por algum tempo, com eles e trazer consigo seu querido filho, que era seu único consolo e alegria. E a tia Mathilda quer cuidar dele, alimentá-lo e o criar. Mas Heinrich permaneceu mal uma semana e quis novamente voltar para casa, para cuidar de sua propriedade, uma vez que havia posto lá uma pessoa que deveria cuidar de sua roça, mas ele aguentou somente três dias na casa, novamente, a lembrança de sua Ana….
Mas vou parando por aqui, querido Paul, e desejo que tu sempre permaneças bem de saúde e que, além disso, também possas te alegrar em teu bem-estar. Peço tua gentileza de transmitir nosso abraço à família…. De teus queridos aqui posso te relatar somente coisas boas, eles se encontram bem e te enviam abraços. Adeus, fica bem e lembra também… com carinho …
De tua avó, que te ama, Emilia Greßler
As correspondências trocadas no contexto da colonização alemã no Sul do Brasil constituem matéria-prima valiosa para historiadores. Estão ali, gravados no papel, depoimentos de pessoas que estiveram profunda e diretamente envolvidas no processo de ocupação territorial do interior do Rio Grande do Sul e, na sequência, de inúmeras localidades do Sul do Brasil e mesmo de outros estados.
Entre os que se ocuparam dessas correspondências está o pesquisador e historiador Roger Stoltz, nascido em Porto Alegre em 1962, e que em 1997 lançou, pelas Edições EST, o livro Cartas de imigrantes. Além de lançar mão de bibliografia para contextualizar o processo de colonização, Stoltz traduziu cartas elaboradas por colonos, em alemão e em italiano, a partir de suas localidades de origem no interior gaúcho.
“Com uma folha na mão e uma pena de escrever na outra, os muitos colonos imigrantes de nações diferentes escreviam debaixo de fracas luzes de vela as primeiras letras aos entes queridos”, salienta Stoltz. “Da ponta da pena do século XIX imergida no tinteiro para o papel, iniciava-se o relato de uma longa aventura marítima e terrestre, sendo que a principal narração era a chegada e instalação na terra desconhecida onde a grande maioria iria viver até o fim de seus dias.”
Stoltz é filho de pai holandês e de mãe alemã. Para ele, manusear essa matéria-prima em forma de cartas foi um meio para se aproximar mais do contexto em que germânicos, da nacionalidade de sua mãe, vieram desbravar o Sul do Brasil. “Cada carta é uma aula de história. Cada imigrante descreve a sua chegada e o trabalho duro nas colônias, detalhando as suas alegrias, tristezas, esperanças e saudades. Suas observações, sejam certas ou erradas, e o interesse pela terra nova são evidentes e há sempre um tom de saudade em cada linha traçada”, refere.
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Por conta dessa abordagem, em que cada carta condensa uma carga emotiva e existencial imensa, de alegria ou de frustração, de esperança ou desesperança, as linhas grafadas com as letras que são marca registrada de cada pessoa eternizam um novo mundo que nasce, um mundo que até então não existia, e que, na prática, se concretizou no espaço que hoje habitamos.
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